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Processo n.º 1260/13
Plenário
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Presidente da República, por requerimento entrado no Tribunal Constitucional em 23 de novembro de 2013, vem, ao abrigo, do n.º 1 do artigo 278.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como do n.º 1 do artigo 51.º e n.º 1 do artigo 57.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, submeter ao Tribunal Constitucional, em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, a apreciação das normas constantes das alíneas a), b), c) e d) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto da Assembleia da República n.º 187/XII, que foi recebido na Presidência da República no dia 15 de novembro de 2013 para ser promulgado como lei.
Fundamenta o seu pedido, em síntese, na seguinte ordem de considerações:
- A norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto sindicado, sem prejuízo das exceções previstas no n.º 2 do mesmo diploma, determina uma redução em 10% nas pensões de aposentação, reforma e invalidez de valor ilíquido mensal superior a €600, fixadas pelas fórmulas de cálculo sucessivamente em vigor do Estatuto da Aposentação aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de dezembro, bem como as fixadas noutras disposições estatutárias, legais e convencionais, afetando esta medida as pensões atribuídas no período anterior à entrada em vigor do regime de convergência aprovado pela Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro.
- Identicamente, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 7.º do mesmo decreto, sem prejuízo das exceções previstas no n.º 2 do artigo mencionado, impõe uma redução em 10% no valor global ilíquido das pensões de sobrevivência cujo valor ilíquido mensal seja superior a 600 euros e que tenham sido fixadas de acordo com o Estatuto das Pensões de Sobrevivência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/73, de 31 de março.
- Embora no plano contabilístico as normas descritas possam ser entendidas como medidas de redução de despesa, já sob um ponto de vista substancial, a redução coativa, unilateral e definitiva de pensões, feita através da fixação de um percentual sobre o respetivo valor ilíquido, deve ser qualificada como um imposto, à luz dos atributos constitutivos desta mesma figura na doutrina e jurisprudência portuguesas, dado que implica um esforço acrescido exigido aos pensionistas para, mediante uma supressão parcial do seu rendimento mensal, realizarem fins públicos, financiando o Estado.
- Mesmo que se qualifique a medida impugnada como uma figura tributária especial reconduzível à parafiscalidade, o facto é que setores relevantes da doutrina entendem que esse tributo deve estar sujeito às mesmas regras constitucionais dos impostos, pois um entendimento diverso poderia legitimar condutas furtivas do legislador das quais possa resultar a criação de tributos sobre o rendimento, em tudo idênticos aos impostos, mas desviados do enquadramento constitucional destes últimos e do princípio da legalidade fiscal.
- Na medida em que as normas que reduzem em 10% o valor das pensões referidas supra sejam materialmente qualificadas como atos de criação de um imposto ou de uma figura parafiscal de natureza análoga, elas tributariam o rendimento pessoal de uma categoria específica de pessoas em eventual desconformidade com disposições constitucionais que regem o regime dos impostos sobre o rendimento, como seria o caso:
a) Do princípio do caráter único ou unitário do imposto sobre o rendimento (n.º 1 do artigo 104.º da CRP), na medida em que se fragmentaria a tributação do rendimento oriundo da pensão, dado que a redução de 10% viria a ser cumulada com a taxa do IRS que incidiria sobre esse e sobre outros rendimentos do titular;
b) Do princípio do caráter pessoal do imposto sobre o rendimento (n.º 1 do artigo 104.º da CRP), já que se criaria um tributo que desconsideraria a capacidade contributiva do sujeito passivo, ou seja, as necessidades e os rendimentos do próprio e do seu agregado familiar, não prevendo a realização de deduções à coleta;
c) Do princípio da progressividade do imposto sobre o rendimento (n.º 1 do artigo 104.º da CRP), mediante a fixação de um corte de teor equivalente a uma taxa única de 10% sobre o valor ilíquido do rendimento oriundo da pensão, não se garantindo o imperativo constitucional de redução de desigualdades que inere a essa progressividade;
d) Do princípio da natureza universal do imposto sobre o rendimento, através da criação de um imposto especial dirigido, em cumulação com o IRS, a uma categoria específica de pessoas, qualificadas como sujeitos passivos em razão da sua condição de pensionista da Caixa Geral de Aposentações I.P. (CGA), o que envolveria uma discriminação potencialmente arbitrária, porque não cabalmente justificada, já que se trataria de forma diferente e mais onerosa esses pensionistas em relação aos do regime geral da segurança social e em relação aos não pensionistas, titulares de idênticos rendimentos, vulnerando-se o princípio da igualdade (n.º 2 do artigo 13.º da CRP).
- Na medida em que não se qualifique de imposto o ato de redução em 10% das pensões de aposentação, reforma, invalidez e sobrevivência de valor superior a 600 euros ilíquidos mensais, considera-se, ainda assim, que as normas em epígrafe, ao determinarem com efeitos futuros essa redução, afetam desfavoravelmente relações jurídicas, direitos e factos consolidados que foram constituídos no passado, ao abrigo da legislação vigente ao tempo em que os beneficiários das pensões da CGA realizaram toda a sua carreira contributiva.
- Normas que reduzam com efeitos futuros o valor de pensões em pagamento, que resulte da aplicação de fórmulas de cálculo fixadas no passado por lei válida e vigente ao tempo em que foi definido o direito à pensão, assumem a natureza de legislação portadora de retroatividade inautêntica, pois afetam retrospetivamente as expectativas de continuidade de fruição de um direito social já constituído (a aquisição concreta do direito à segurança social, constante do artigo 63.º da CRP), colocando-se a necessidade de as confrontar com o princípio da tutela da confiança.
- A liberdade de conformação do legislador não deixa de se encontrar sujeita a limites fixados por princípios estruturantes do sistema de direitos fundamentais, como é o caso do princípio da proteção da confiança, deduzido do artigo 2.º da CRP, o qual censura normas dotadas de eficácia retroativa, autêntica e inautêntica, que, sacrificando interesses legalmente protegidos e direitos fundamentais, como o direito à segurança social, não sejam previsíveis e sejam portadoras de uma oneração excessiva que frustre legítimas expectativas dos seus titulares na continuidade dos regimes onde se sustentou a constituição desses direitos e interesses.
- Nas normas questionadas, estão em causa “direitos constituídos”, tendo o Estado criado, junto dos pensionistas abrangidos, expectativas da continuidade do direito ao pagamento de pensões fixado na base de critérios determinados (nas alíneas a) e c), através de lei vigente desde o ano de 1972 e, nas alíneas b) e d), através do regime de cálculo das pensões introduzido pela reforma de 2005).
- Tais expectativas devem ser consideradas legítimas, já que, nas alíneas a) e c) do artigo 7.º, o direito foi constituído no passado de forma plena e, nas alíneas b) e d), os pensionistas confiaram na continuidade das regras que definiram o cálculo das suas pensões, tendo, em ambas as situações, confiado na manutenção das mesmas e, por isso, feito planos de vida que já não podem ser alterados.
- Perante os critérios legais, os trabalhadores puderam, fundados em boas razões radicadas na preparação previdente do respetivo futuro e do dos seus cônjuges, fazer os seus cálculos, ponderar o tempo de serviço e as condições detidas para a reforma e fazer um juízo sobre o seu futuro;
- Os trabalhadores com mais anos de serviço e já com os requisitos para a reforma antecipada puderam tomar decisões sobre qual seria a melhor opção para obterem a melhor pensão possível no futuro, optando muitos cidadãos por se reformar antecipadamente, ao considerarem que a penalização sofrida pela antecipação da idade compensaria o facto de o peso relativo da parcela P1 ser predominante;
- O modo como a reforma legal de 2005 regulou a transição do regime de convergência, muito em particular ao fixar duas parcelas, uma fixa e outra dinâmica, levou os funcionários a fazer escolhas definitivas para a sua vida, mesmo sofrendo penalização, e tanto assim foi que se registou um grande afluxo às reformas antecipadas.
- Está em causa uma transição de regimes que pretende acelerar e consumar com efeitos imediatos (solução designada na doutrina por “one shot”) a convergência entre dois subsistemas de segurança social, através de uma afetação desfavorável das pensões dos beneficiários da CGA, a qual, pelo facto de ter como efeito um encurtamento súbito da projeção futura da vertente temporal da segurança jurídica desses pensionistas, reclama um juízo de proporcionalidade, nomeadamente à luz do critério da necessidade, o qual recai sobre a exigência e a suficiência do direito que regule essa transição e sobre o nível de onerosidade do sacrifício.
- A confiança da pessoa afetada deve ser tida em consideração através da decretação de regulamentações de transição que eliminem ou suavizem a dureza da mudança do antigo para o novo direito, e, nomeadamente, quando seja julgada necessária uma “redução” no “quantum” pré-definido da fruição do direito à segurança social, essa redução deve ser “realizada de forma suave”, ou seja, através de uma “redução progressiva”, que confira aos cidadãos tempo e fatores circunstanciais que lhes permitam ajustar o seu plano de vida às novas imposições sacrificiais que determinam uma diminuição de rendimento.
- Suscitando-se, assim, dúvidas de constitucionalidade, solicita-se ao Tribunal Constitucional que examine, em sede de fiscalização preventiva de constitucionalidade:
a) A conformidade das normas das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto n.º 187/XII com os princípios da unidade do imposto sobre o rendimento, da capacidade contributiva, da progressividade e da universalidade constantes da norma do n.º 1 do artigo 104.º, da CRP bem como com o princípio da igualdade, tal como se encontra enunciado no n.º 2 do artigo 13.º da Lei Fundamental.
b) A conformidade das normas das alíneas a), b), c) e d) do n.º 1 do artigo 7.º do mesmo Decreto com o princípio da protecção da confiança em associação com o princípio da proporcionalidade, tal como decorre do artigo 2.º da CRP.
2. Por despacho do Presidente do Tribunal, datado de 25 de novembro de 2013, foi o pedido admitido e ordenada a notificação do órgão autor das normas impugnadas. Na mesma data, foi o processo distribuído e, subsequentemente, concluso ao relator para elaboração do memorando a que alude o artigo 59.º da LTC.
3. A Assembleia da República, na pronúncia ao abrigo do artigo 54.º da LTC, remetida ao Tribunal, em 25 de novembro de 2013, com registo de entrada no dia seguinte, ofereceu o merecimento dos autos.
4. O Governo, enquanto autor da Proposta de Lei n.º 171/XII, que esteve na origem do Decreto n.º 187/XII, apresentou, em 26 de novembro de 2013, um “dossier” intitulado “Elementos de suporte à fundamentação da proposta de lei” e, em 29 de novembro de 2013, uma “Nótula da Presidência do Conselho de Ministros”, documentos que foram anexados ao processo por despacho do Relator.
Discutido o memorando apresentado, cumpre formular a decisão em conformidade com a orientação definida.
II – Fundamentação.
A – Normas objeto de fiscalização.
5. As normas questionadas são as alíneas a), b), c) e d) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto n.º 187/XII, que “Estabelece mecanismos de convergência de proteção social, procedendo à quarta alteração à Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro, à terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, à alteração do Decreto-Lei n.º 478/72, de 9 de dezembro, que aprova o Estatuto da Aposentação, e revogando normas que estabelecem acréscimos de tempo de serviço para efeitos de aposentação no âmbito da Caixa Geral de Aposentações”.
É o seguinte o teor das normas em causa:
«Artigo 7.º
Norma transitória e de adaptação
1 - As pensões atribuídas pela CGA, até à data da entrada em vigor da presente lei, são alteradas, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2014, nos seguintes termos:
a) As pensões de aposentação, de reforma e de invalidez de valor mensal ilíquido superior a € 600,00, fixadas de acordo com as fórmulas de cálculo sucessivamente em vigor do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de dezembro, bem como as fixadas de harmonia com regimes especiais previstos em estatutos próprios ou noutras disposições legais ou convencionais, têm o valor ilíquido em 31 de dezembro de 2013 reduzido em 10%;
b) As pensões de aposentação, de reforma e de invalidez de valor mensal ilíquido superior a € 600,00, fixadas com base nas fórmulas de cálculo sucessivamente em vigor do artigo 5.º da Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro, alterada pelas Leis n.ºs 52/2007, de 31 de agosto, 11/2008, de 20 de fevereiro, e 66-B/2012, de 31 de dezembro, têm o valor ilíquido do P1 recalculado por substituição da remuneração (R), inicialmente considerada, pela percentagem de 80% aplicada à mesma remuneração ilíquida de quota para aposentação e pensão de sobrevivência;
c) As pensões de sobrevivência de valor global mensal ilíquido superior a € 600,00, fixadas de acordo com o Estatuto das Pensões de Sobrevivência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/73, de 31 de março, têm o valor global ilíquido em 31 de dezembro de 2013 reduzido em 10%;
d) As pensões de sobrevivência de valor global mensal ilíquido superior a € 600,00, fixadas simultaneamente de acordo com o Estatuto das Pensões de Sobrevivência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/73, de 31 de março, e com as regras do regime geral de segurança social, são recalculadas por aplicação do disposto na alínea b) ao valor ilíquido do P1 da pensão de aposentação, reforma ou de invalidez que têm por referência».
O requerente suscita duas questões de constitucionalidade, a saber:
a) A conformidade das normas das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto n.º 187/XII com os princípios da unidade do imposto sobre o rendimento, da capacidade contributiva, da progressividade e da universalidade, constantes da norma do n.º 1 do artigo 104.º da CRP, bem como com o princípio da igualdade, tal como se encontra enunciado no n.º 2 do artigo 13.º da Lei Fundamental;
b) A conformidade das normas das alíneas a), b), c) e d) do n.º 1 do artigo 7.º do mesmo Decreto com o princípio da protecção da confiança em associação com o principio da proporcionalidade, tal como decorre do artigo 2.º da CRP.
B. Delimitação do objeto do pedido
6. O requerente solicita a apreciação da conformidade com a CRP das normas extraíveis das quatro alíneas do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto n.º 187/XII.
As alíneas a) e c) preveem uma redução em 10% do valor das pensões de reforma e de invalidez de valor mensal ilíquido superior a € 600,00, que foram fixadas de acordo com as fórmulas de cálculo sucessivamente em vigor da CGA (bem como as fixadas de harmonia com regimes especiais previstos em estatutos próprios ou noutras disposições legais ou convencionais) e das pensões de sobrevivência fixadas de acordo com o Estatuto das Pensões de Sobrevivência.
E as alíneas b) e d) estabelecem um “recálculo” do valor ilíquido da parcela um (P1) das pensões de reforma e de invalidez de valor mensal ilíquido superior a €600,00, fixadas com base na fórmula de cálculo sucessivamente em vigor do artigo 5.º da Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro (alterada pelas Leis n.ºs 52/2007, de 31 de agosto, 11/2008 de 20 de fevereiro, e 66-B/2012, de 31 de dezembro), e das pensões de sobrevivência fixadas simultaneamente de acordo com o Estatuto das Pensões de Sobrevivência e as regras do regime de segurança social, substituindo em ambos os casos a remuneração inicialmente considerada pela percentagem de 80% aplicada à mesma remuneração ilíquida de quota para a aposentação e pensão de sobrevivência.
A diferença entre os dois grupos de normas localiza-se sobretudo na esfera da respetiva eficácia subjetiva: enquanto as normas das alíneas a) e c) se aplicam aos pensionistas inscritos até 31 de agosto 1993 que se aposentaram até 31 de dezembro de 2005, as normas das alíneas b) e d) aplicam-se aos pensionistas inscritos até 31 de agosto de 1993 que se aposentaram a partir de 1 de janeiro de 2006.
A separação entre os dois grupos de beneficiários da CGA foi introduzida pela Lei n.º 60/2005 de 29 de dezembro que, ao estabelecer mecanismos de convergência de proteção social da função pública com o regime geral da segurança social no que respeita às condições de aposentação e cálculo de pensões, salvaguardou a aplicação da anterior fórmula de cálculo da pensão de aposentação ao tempo de serviço prestado até à data da entrada em vigor da nova fórmula, ou seja, até 31 de dezembro de 2005.
Quanto ao montante de redução, apesar do enunciado das normas do primeiro grupo se referir a «redução» e o das do segundo aludir a «recálculo», a diferença que se nota é a seguinte: as primeiras – as reconhecidas antes de 1 de janeiro de 2006 – sofrem uma redução de 10% no valor ilíquido em 31 de dezembro de 2013; as segundas – as constituídas após 1 de janeiro de 2006 – sofrem uma redução apenas na primeira parcela (P1) da nova fórmula de cálculo da pensão, substituindo-se a remuneração mensal relevante inicialmente considerada por 80% dessa mesma remuneração ilíquida da quota para aposentação e pensão de sobrevivência.
O requerente confronta o primeiro grupo de normas com as normas constitucionais que regem o regime de impostos sobre rendimentos – o n.º 1 do artigo 104.º e o artigo 13.º da CRP – por qualificar tais normas, sob o ponto de vista material, como um “imposto especial” ou uma “figura tributária especial” que não se deve furtar ao enquadramento constitucional dos impostos. Dessa qualificação extrai o vício de inconstitucionalidade das normas impugnadas por desconformidade com o caráter único ou unitário, pessoal, progressivo e universal do imposto sobre o rendimento e também do princípio da igualdade.
Para além dessa inconstitucionalidade, imputa ainda a todas as normas questionadas a desconformidade com o princípio constitucional da proteção da confiança, numa forma articulada que autonomiza o primeiro grupo – as alíneas a) e c) – do segundo grupo de normas – as alíneas b) e d) – embora no pedido de inconstitucionalidade se prescinda dessa distinção.
Sendo a norma parâmetro a mesma – o princípio da proteção da confiança em associação com o princípio da proporcionalidade – não há qualquer interesse em escrutinar separadamente as normas em apreciação, até porque a linha argumentativa exposta no requerimento para todas elas é substancialmente idêntica. Assim, refere expressamente o requerente, quando no artigo n.º 39.º do requerimento remete a fundamentação da inconstitucionalidade das normas das alíneas b) e d) para a argumentação exposta a propósito das alíneas a) e c): «na medida em que o recálculo fixado pelas normas questionadas pode, numa pluralidade de casos, equivaler à redução significativa da pensão em pagamento justifica-se que aqui se reproduza, com adaptações, os argumentos enunciados nos nºs 19 a 28 deste requerimento, que questionaram o sacrifício imposto com eficácia retrospetiva a um direito social à luz do princípio da proporcionalidade».
É certo que, na ponderação de expectativas dos pensionistas, pode haver diferenças no grau de afetação da confiança na manutenção de um determinado regime, até porque a mudança da fórmula de cálculo das pensões, com subsistência parcial da anterior, não deixa de ser um elemento a considerar na avaliação do “peso” dessas expectativas. Todavia, as diferenças existentes entre os dois grupos de normas, quer quanto ao âmbito de aplicação quer quanto ao conteúdo, incluindo as diferentes modalidades de pensão, o grau de retroatividade e a intensidade da afetação de expectativas legítimas, mesmo que impliquem dimensões valorativas distintas, podem ser objeto de apreciação conjunta na aferição do parâmetro constitucional da proteção da confiança.
Deste modo, conhecer-se-á em primeiro lugar da conformidade das normas das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto n.º 187/XII com os princípios da unidade do imposto sobre o rendimento, da capacidade contributiva, da progressividade e da universalidade, constantes da norma do n.º 1 do artigo 104.º da CRP, bem como com o princípio da igualdade enunciado no n.º 2 do artigo 13.º da Lei Fundamental; procedendo-se de seguida à apreciação da conformidade das normas das alíneas a), b, c) e d) do n.º 1 do artigo 7.º do mesmo Decreto com o invocado princípio da proteção da confiança, conjugado com o princípio da proporcionalidade.
Naturalmente, para melhor avaliação desses parâmetros não se poderá deixar de considerar a evolução histórico-jurídica da convergência de pensões e o contexto em que surgem as normas agora questionadas.
C. Enquadramento geral da convergência de pensões
7. De acordo com a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 171/XII, o Decreto n.º 187/XII da Assembleia da República insere-se na reforma geral destinada à convergência de pensões entre o sistema geral da segurança social e o da proteção dos funcionários da Administração Pública.
A ideia de convergência ou integração entre os diferentes sistemas de segurança social é quase tão antiga como a própria CGA, a qual, abrangendo todo o funcionalismo público, começou a funcionar em 1 de maio de 1929 (artigo 6.º do Decreto n.º 16 669 de 27 de março de 1929). De facto, o primeiro diploma que estabeleceu os princípios fundamentais para a organização e o funcionamento das instituições de previdência social – Lei n.º 1884, de 16 de março de 1935 – integrava na 4ª categoria as instituições privativas do funcionalismo público, civil ou militar, e demais pessoal ao serviço do Estado ou dos corpos administrativos, mas logo no § 5.º do artigo 1.º prescreveu que «as instituições abrangidas na 3ª e 4ª categorias, nos termos dos parágrafos anteriores, continuam a reger-se pela respetiva legislação especial, sem prejuízo da sua gradual integração no plano de previdência social, que ao Estado incumbe estabelecer». Como se vê, já desde então, a lei queria integrar, de forma gradual, o público e o privado no mesmo “plano de previdência social”.
Mas essa intenção foi sucessivamente abandonada na legislação de previdência social entretanto publicada, desde o diploma que regulamentou aquela Lei (Decreto n.º 25 935 de 12, de outubro de 1935), passando pela lei de bases da reforma de previdência social (Lei n.º 2115, de 18 de junho de 1962), pelo novo regulamento das Caixas Sindicais de Previdência (Decreto n.º 45 266, de 23 de setembro de 1963) e pelo Estatuto da Aposentação ainda vigente (Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de dezembro).
É com a CRP que a questão da convergência volta a surgir, mas agora no patamar mais elevado de requisito do sistema público de segurança social: “incumbe ao Estado” organizar um «sistema de segurança social unificado» (n.º 2 do artigo 63.º da CRP). O cumprimento desta atribuição, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, «afasta a possibilidade de sistemas privativos diferenciados, como sucedeu até agora, com o sistema de segurança social próprio dos funcionários públicos” (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed. revista, Coimbra, 2007, Vol. I, pág. 816).
A ideia de um sistema de segurança social unitário, erigida agora em atribuição do Estado, tem sido sucessivamente inscrita nas diversas leis de bases da segurança social que se sucederam no tempo.
A primeira lei de bases (Lei n.º 28/84, de 14 de agosto), dispunha, no n.º 1 do artigo 70.º, que os regimes especiais de proteção da função pública se manteriam «até serem integrados com o regime geral de segurança social num regime unitário», acrescentando o n.º 2 que tal integração poderia ser feita «gradualmente, através da unificação das disposições que regulam os esquemas de prestações correspondentes às diversas eventualidades, sem prejuízo de disposições mais favoráveis». Na mesma linha, as sucessivas Leis n.º 17/2000, de 8 de agosto e n.º 32/2002, de 20 de dezembro, reforçaram a ideia de que os regimes de proteção social da função pública deverão ser regulamentados por forma a convergir com os regimes de segurança social quanto ao âmbito material, regras de formação de direitos e atribuição das prestações.
A atual lei de bases da segurança social, aprovada em 2007 (Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro), mantém, a exemplo das leis anteriores, a ideia de que o regime de proteção social da função pública deverá prosseguir a convergência com os regimes do sistema de segurança social, dispondo que «deve ser prosseguida a convergência dos regimes da função pública com os regimes do sistema de segurança social» (artigo 104.º).
O objetivo de convergência dos dois sistemas referidos foi sendo paulatinamente desenvolvido através de vários diplomas, a par de reformas introduzidas, quer no sistema geral da segurança social (no que toca à fixação da idade de pensão de velhice, à forma do método de cálculo das pensões, e, finalmente, à introdução da aplicação, na determinação do montante das pensões de velhice, de um fator de sustentabilidade, com o Decreto-Lei n.º 187/2007, de 5 de abril), quer no sistema específico dos trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado.
Este último sistema, criado pelo já referido Decreto-Lei n.º 16 667, de 27 de março de 1929, continua a ser gerido pela CGA, um instituto público de regime especial regulado pela lei orgânica aprovada pelo Decreto-Lei n.º 131/2012, de 25 de junho. O complexo de direitos e deveres que formam a situação jurídica de aposentação – Estatuto da Aposentação – foi sucessivamente alterado por vários diplomas que, numa primeira fase, previam regimes diferentes do sistema geral da segurança social, quer no que toca ao tempo de serviço necessário para a aposentação, quer no que respeita à forma de cálculo da pensão (Decreto-Lei n.º 191-A/79, de 25 de junho e Decreto-Lei n.º 116/85, de 19 de abril). Numa segunda fase, marcada pelas Leis n.º 1/2004, de 15 de janeiro e n.º 11/2008, de 20 de fevereiro, estabeleceram-se novas regras no que respeita a esses dois elementos, de forma a aproximar os sistemas e a garantir a respetiva sustentabilidade, designadamente a sujeição a novas regras da possibilidade de aposentação com 36 anos de serviço e novo cálculo do montante da pensão, passando de 100% para 90% da última remuneração mensal do subscritor.
8. A primeira medida estrutural para efeitos de convergência foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 286/93, de 20 de agosto, que criou dois regimes diferenciados de cálculo do valor da pensão: um, relativamente aos subscritores da CGA inscritos até 31 de agosto de 1993, em relação aos quais foi mantido o regime então em vigor; e outro, relativamente aos (novos) subscritores, inscritos a partir de 1 de setembro de 1993, em relação aos quais foi determinada a aplicação das regras de cálculo do regime geral da segurança social.
A Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro, veio desenvolver a convergência do regime de proteção social da função pública com o regime geral da segurança social, tendo nisso sido seguida pelos Decretos-Leis n.ºs 157, 159, 166, 219, 220, 221, 229 e 235, todos do mesmo ano, no que respeita aos regimes especiais de aposentação da Administração Pública.
Estabeleceu-se, desde logo, que a CGA deixava, a partir de 1 de janeiro de 2006, de proceder à inscrição de novos subscritores. Por outro lado, determinou-se que quem iniciasse funções a partir dessa data, era obrigatoriamente inscrito no regime geral da segurança social.
Esta lei veio ainda alterar as condições de aposentação ordinária e de aposentação antecipada, no que respeita ao tempo de serviço e à idade exigida para a aposentação, procedendo a uma convergência gradual entre o regime dos subscritores da CGA e o regime geral da segurança social, no que respeita à idade exigida para aposentação, aumentada de 60 para 65 anos, na progressão de 6 meses por ano. No que respeita ao tempo de serviço correspondente a uma carreira completa, este foi aumentado de 36 para 40 anos, também na progressão de 6 meses por ano. E relativamente ao cálculo das pensões, estabeleceu-se um regime diferenciado em função da data da inscrição na CGA. Assim, para os inscritos a partir de 1 de setembro de 1993, o regime de cálculo era feito de acordo com as regras aplicáveis ao regime geral da segurança social. Para os inscritos até 31 de agosto de 1993, a pensão passou a ser calculada através da soma de duas parcelas: a primeira, designada na lei por “P1”, corresponde ao tempo de serviço prestado até 31 de dezembro de 2005, é calculada com base nas regras do Estatuto de Aposentação; a segunda, denominada “P2”, relativa ao tempo de serviço posterior, é calculada por aplicação das regras do regime geral da segurança social.
A Lei n.º 52/2007, de 31 de agosto, passou a determinar a aplicação, ao cálculo do valor da pensão de aposentação dos subscritores da CGA inscritos até 31 de agosto de 1993, o fator de sustentabilidade estabelecido para o regime geral, apurado com base na esperança média de vida aos 65 anos verificada em 2006 e no ano anterior ao da aposentação; introduziu um limite máximo, correspondente a 12 vezes o indexante dos apoios sociais (IAS), à remuneração mensal relevante no cálculo do P1; e procedeu à alteração do regime de aposentação antecipada, que passou a depender de 30 anos de serviço aos 55 anos de idade.
A Lei n.º 4/2009, de 29 de janeiro, veio introduzir novas medidas destinadas à convergência dos dois sistemas. A proteção social passou a concretizar-se pela integração dos trabalhadores num de dois regimes: no «regime geral da segurança social» ou no «regime de proteção social convergente». No primeiro, foram integrados os trabalhadores titulares de relação jurídica de emprego público, independentemente da modalidade de vinculação, constituída a partir de 1 de janeiro de 2006 e os demais trabalhadores, com relação jurídica de emprego constituída até 31 de dezembro de 2005 e já enquadrados no regime geral de segurança social (artigo 7º); no segundo, os demais trabalhadores que sejam titulares de relação jurídica de emprego constituída até 31 de dezembro de 2005 e não enquadrados no regime geral da segurança social (artigo 11.º). Para estes, o regime de proteção social convergente constitui, a partir de 1 de janeiro de 2006, um regime fechado a novos subscritores.
A Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (que aprovou o Orçamento do Estado para 2013), veio estabelecer, para os pedidos de aposentação entrados após a data da entrada em vigor da lei, a convergência imediata, no que respeita às condições de aposentação e de reforma (65 anos de idade e 15 anos de serviço); aditou ao Estatuto da Aposentação o artigo 6.º-B, através do qual o conceito de remuneração ilíquida – que constitui a base de incidência contributiva para a CGA, passou a coincidir com o estabelecido no Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social; e introduziu novas alterações ao conceito de remuneração mensal relevante para o cálculo da primeira parcela (P1) da pensão dos subscritores da CGA, relativa ao tempo de serviço prestado até 31 de dezembro de 2005, que passou a ser a remuneração percebida nessa data e não a recebida na data da aposentação.
9. As pensões de sobrevivência estiveram, por seu turno, também sujeitas a um regime diferenciado, consoante o beneficiário falecido estivesse inscrito na CGA, ou no regime geral da segurança social. No primeiro caso, era aplicável o Estatuto das Pensões de Sobrevivência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/73, de 31 de março. A primeira grande alteração ao Estatuto das Pensões de Sobrevivência foi efetuada pelo Decreto-Lei n.º 191-B/79, de 25 de junho, aproximando este regime do regime geral da segurança social. Vários foram os diplomas que se sucederam e que alteraram o referido Estatuto. Merece particular destaque o Decreto-Lei n.º 78/94, de 9 de março, que, com o objetivo de harmonização do regime da função pública com os demais trabalhadores, aumentou os descontos para efeito da pensão de sobrevivência para 2,5%.
Por fim, a Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro, veio determinar que a titularidade e as condições de atribuição das pensões passavam a reger-se pelas regras definidas no regime geral da segurança social. A forma de cálculo da pensão de sobrevivência foi também alterada tendo em vista a almejada convergência, prevendo-se dois sistemas: no que respeita às pensões atribuídas por óbito de subscritores inscritos a partir de 1 de setembro de 1993, as mesmas eram calculadas nos termos das normas legais aplicáveis ao cálculo das pensões dos beneficiários do regime geral da segurança social; já no que toca às pensões atribuídas por óbito de subscritor aposentado a partir de 1 de janeiro de 2006, as mesmas corresponderia à soma de 50% de P1 com o valor que resultar da aplicação a P2 das regras do regime geral da segurança social.
10. Na sequência destes diplomas, o Decreto n.º 187/XII da Assembleia da República é mais um diploma que, segundo a mencionada exposição de motivos, visa aprofundar os mecanismos de convergência da proteção social, introduzindo medidas respeitantes às pensões de velhice, reforma, invalidez e sobrevivência atribuídas pela CGA, de valor mensal ilíquido superior a € 600,00. Por um lado, procede à redução do montante das pensões sujeitas ao regime do Estatuto da Aposentação no valor de 10%. Por outro, prevê a aplicação de nova fórmula de cálculo das pensões fixadas com base nas fórmulas sucessivamente introduzidas pelas Leis n.º 60/2005, de 29 de dezembro, n.º 52/2007, de 31 de agosto, n.º 11/2008, de 20 de fevereiro, e n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, bem como das pensões fixadas simultaneamente de acordo com o Estatuto das Pensões de Sobrevivência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/73, de 31 de março, e com as regras do regime geral de segurança social.
Posto isto, vejamos se a medida legislativa constante das normas impugnadas – redução das pensões dos atuais beneficiários – é uma medida que se insere no domínio da fiscalidade ou da parafiscalidade.
D. A redução de pensões como um “imposto especial”.
11. O pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade pretende ver fiscalizada a conformidade das normas das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto n.º 187/XII com os princípios da unidade do imposto sobre o rendimento, da capacidade contributiva, da progressividade e da universalidade, constantes da norma do n.º 1 do artigo 104.º da CRP, bem como o princípio da igualdade enunciado no n.º 2 do artigo 13.º da Lei Fundamental.
Na fundamentação deste pedido argumenta-se que, embora no plano contabilístico as normas descritas possam ser entendidas como medidas de redução da despesa, sob o ponto de vista substancial, a redução coativa, unilateral e definitiva de pensões, feita através da fixação de um percentual sobre o respetivo valor ilíquido, deve ser qualificada como um imposto, à luz dos atributos constitutivos desta mesma figura na doutrina e jurisprudência portuguesas, dado que implica um esforço acrescido exigido aos pensionistas para, mediante uma supressão parcial do seu rendimento mensal, realizarem fins públicos, financiando o Estado.
E de seguida, expõe as razões por que tal “imposto” viola os princípios do caráter único ou unitário, pessoal, progressivo e universal do imposto sobre o rendimento.
12. A primeira observação que se impõe fazer é de que o pedido de fiscalização por este fundamento vem direcionado apenas às normas das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto 187/XII e não às normas das alíneas b) e d) do mesmo artigo.
Como acima se referiu (n.º 7), as quatro normas do preceito têm em comum a redução do montante da pensão auferida pelos atuais beneficiários da CGA, inscritos até 31 de agosto de 1993, mas na previsão e na estatuição apresentam diferenças quanto ao âmbito de aplicação e quanto ao modo como se processa a redução da pensão: enquanto as alíneas a) e c) se aplicam a todos os pensionistas cujas pensões foram atribuídas antes de 31 de dezembro de 2005, as alíneas b) e d) aplicam-se a todos os pensionistas cujas pensões foram atribuídas após 1 de janeiro de 2006; enquanto as normas daquelas alíneas impõem a «redução» em 10% no valor ilíquido da pensão, em 31 de dezembro de 2013, estas estatuem o «recálculo» do valor ilíquido do P1, substituindo a remuneração inicialmente considerada, pela percentagem de 80% aplicada à mesma remuneração ilíquida de quota para aposentação e pensão de sobrevivência.
Apesar destas diferenças, para efeito de qualificação jurídico-dogmática, não parece que tenham relevo suficiente para serem categorizadas de forma distinta. A única razão pela qual surgem autonomizadas no preceito prende-se com a diferença existente na “remuneração de referência” a considerar na fórmula de cálculo da pensão: enquanto as pensões dos beneficiários abrangidos pelas alíneas a) e c) foram calculadas com base na última remuneração ou, após 1 de janeiro de 2004, com base na última remuneração deduzida da percentagem da quota para efeitos de aposentação e de pensão de sobrevivência (Lei n.º 1/2004, de 15 de janeiro): as pensões dos beneficiários abrangidos pelas alíneas b) e d) foram calculadas segundo uma fórmula composta por duas parcelas (P1 e P2), em que a remuneração relevante para o P1 é determinada nos mesmos termos em que foi calculada a pensão dos beneficiários incluídos nas alíneas a) e c), sem prejuízo das alterações introduzidas à Lei 60/2005, de 29 de dezembro, acima referidas.
Ao determinar uma redução no montante das pensões atribuídas até 1 de janeiro de 2014, sob pena de criar situações desiguais, o legislador não podia deixar de fazer a distinção entre beneficiários aposentados antes ou depois de 2006. É que, relativamente ao tempo de serviço prestado após esta data, a pensão já é calculada segundo as regras do regime geral (P2), ou seja, com uma taxa de formação de 2% ao ano, correspondente a 80% num período contributivo de 40 anos. Se pelo período prestado entre 2006 e 2013, as pensões já foram reduzidas em 2% por cada ano, a redução de 10% no total da pensão seria duplamente penalizadora, colocando em situação de desigualdade os aposentados antes e depois de 1 de janeiro de 2006.
Daí que o sentido normativo das quatro alíneas questionadas seja o mesmo: impor uma redução no valor da pensão aproximando-a da «taxa de substituição» existente no regime geral para um tempo completo de serviço, ou seja, 80% da remuneração de referência. É claro que, as pensões que foram calculadas sem redução da percentagem da quota para efeitos de aposentação (10% até 31 de dezembro de 2010 e 11% após essa data – Decreto-Lei n.º 137/2010 de 28 de dezembro), ficam, por esse efeito, com uma taxa de substituição de 90%, em situação diferente das pensões em que essa dedução foi feita – as atribuídas após 1 de janeiro de 2014 – cuja redução passará nuns casos de 90% e noutros de 89% para os 80%. Mas esta diferença, que decorre apenas da relevância que a contribuição para a aposentação, tem no cálculo da pensão, não dita um propósito diferente à medida restritiva imposta pelo Decreto n.º 187/XII, quer aos subscritores (artigo 2.º) quer aos atuais beneficiários (artigo 7.º).
13. Esta prévia observação abre já pistas para se poder localizar o domínio específico do direito em que as normas questionadas devem ser integradas. O seu conteúdo é matéria que indiscutivelmente se insere no direito da segurança social: diminui-se o valor das pensões de aposentação, reforma, invalidez e sobrevivência, eventualidades que o n.º 3 do artigo 63.º da CRP integra na segurança social. A intervenção restritiva do “quantum” da pensão afeta assim direitos de caráter social que fazem parte do conjunto de institutos jurídicos que formam a segurança social, e por conseguinte, é a partir desse domínio que a qualificação das normas deve ser realizada. E sendo os destinatários das normas pensionistas da CGA, que continuam vinculados à função pública (artigo 74.º da Estatuto da Aposentação – Decreto-Lei n.º 498/72 de 9 de dezembro), o direito administrativo social também poderá ser convocado à qualificação.
Todavia, a inserção das normas no âmbito do direito da segurança social só por si não lhes retira a natureza fiscal, até porque as entidades públicas que gerem os sistemas de segurança social podem liquidar e cobrar tributos parafiscais, eventualmente sujeitos aos princípios constitucionais que regulam os impostos.
14. No âmbito das normas jurídicas que regulam a atividade financeira do Estado – o direito financeiro público – os impostos e outros tributos fiscais ou parafiscais enquadram-se num dos setores do direito das receitas, mais propriamente no direito tributário ou direito das receitas coativas do Estado e demais entes públicos (cfr. José Casalta Nabais, Direito Fiscal, Almedina 6ª ed. págs. 5-6).
Neste enquadramento, é pertinente saber se, numa ótica financeira e orçamental, a redução das pensões é uma medida que atua pela lado das «receitas» ou pelo lado das «despesas», pois, para aplicação dos parâmetros jurídico-constitucionais do sistema fiscal e dos impostos – artigos, 103.º, 104.º, e alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP – pode não ser indiferente a opção de se intervir por um ou por outro lado.
Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 171/XII essa questão é amplamente analisada, considerando-se que as medidas propostas pretendem aprofundar a convergência de pensões pelo lado da despesa: «Ao nível da redução da despesa, via que o PAEF privilegia, a solução mais equitativa e viável passa por alterar a fórmula de cálculo da parcela da pensão dos subscritores da Caixa inscritos até 31 de agosto de 1993 relativa ao tempo de serviço prestado até 2005 e reduzir ou recalcular a pensão ou primeira parcela da pensão dos aposentados por forma a aproximar-se – o que ainda assim apenas sucederá parcialmente - do valor que resultaria das regras aplicadas no regime geral e na Caixa aos subscritores inscritos desde 1 de setembro de 1993. Alterar a fórmula apenas para o futuro significaria que nenhum efeito positivo na sustentabilidade seria sentido no curto e no médio prazo. A configuração da despesa também limita fortemente a capacidade de o legislador definir níveis de isenção para as reduções e recálculos sem comprometer a utilidade da medida».
A Constituição, apesar de se referir a «despesas» e «receitas» (cfr. artigos, 105.º e 106.º), não define tais conceitos, sendo razoável supor que os assumiu com o sentido que têm no direito financeiro. Nesse sentido, despesas são gastos ou custos que os serviços precisam de fazer para criarem, adquirirem ou prestarem serviços suscetíveis de satisfazer necessidades (cfr. Teixeira Ribeiro, Finanças Públicas, Coimbra, 1977, pág. 48, e Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, 4ª ed, Coimbra, 1996, Vol. I, pág. 297). Assim sendo, pelo menos para efeitos orçamentais e contabilísticos, o pagamento de pensões constitui uma despesa da CGA, tal como se prescreve no artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 131/2012, de 25 de junho: «constituem despesas da CGA, I. P., as que resultem de encargos decorrentes da prossecução das respetivas atribuições, designadamente as resultantes do pagamento das prestações sociais».
Se as pensões são uma despesa e não uma receita, em princípio, as reduções de pensões constituem redução de despesa e não receita, pois um encargo reduzido não deixa de ser um encargo. Todavia, ainda assim se poderá questionar se a diminuição desse encargo não representará uma forma ou uma diferente técnica de tributar rendimentos dos pensionistas, o que recoloca a questão da fiscalidade ou parafiscalidade do «quantum» de diminuição.
15. A circunstância de se ver na redução das pensões características semelhantes aos impostos não a identifica ou sequer aproxima desta categoria clássica do direito fiscal.
Imposto define-se como «uma prestação pecuniária, coativa e unilateral, sem caráter de sanção, exigida pelo Estado ou por outros entes públicos, com vista à realização de fins públicos» (cfr. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2ª ed. Almedina, pág. 4). Se é certo que na redução da pensão se verificam algumas destas características, por se tratar de uma medida coativa e unilateral, a verdade é que lhe faltam elementos fundamentais para a categorizar com o imposto.
Desde logo, reduzido o conceito de imposto à expressão mais simples de prestação pecuniária, poderia dizer-se que a redução coativa e unilateral da pensão não constitui uma obrigação dare pecuniam, uma conduta específica de prestar ou pagar uma importância em dinheiro determinada através de determinadas operações técnicas. O que existe sim é uma irresistível sujeição do titular do direito à pensão imposta e concretizada por quem tem a obrigação de a pagar. Não há uma entrega direta do valor da importância reduzida, porque, na relação jurídica de aposentação, a entidade que tem o dever de pagar a pensão é a mesma que fica com o encargo de a reduzir. Mas, se o imposto é uma prestação patrimonial positiva que não depende de qualquer outro vínculo anterior, será difícil aceitar aquela sujeição como um imposto, pois a redução da pensão assenta necessariamente num vínculo jurídico que obriga ao seu pagamento.
Depois, porque o pressuposto legal de que cuja ocorrência depende a constituição da obrigação de pagar o imposto é alheio a qualquer relação entre o sujeito passivo e a administração. O imposto é uma prestação exigida a detentores de capacidade contributiva, no âmbito do relacionamento entre o Estado fiscal e todos os cidadãos. Pressuposto que está expresso no n.º 1 do artigo 4.º da Lei Geral Tributária (Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro): «os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património». Do princípio da capacidade contributiva resulta que sobre todos os cidadãos impende o dever fundamental de pagar impostos (princípio da generalidade), o que constitui expressão do princípio da igualdade no domínio dos impostos (artigo 13.º da CRP). Ora, a redução da pensão opera dentro de uma específica relação jurídica de aposentação – os aposentados inscritos até 31 de agosto de 1993 – e não no âmbito de uma relação geral como a postulada pelo princípio da capacidade contributiva.
A implicação que a subsistência daquela relação tem no imposto sobre o rendimento é a seguinte: se a pensão é reduzida por lei, isso só quer dizer que a taxa do imposto irá incidir sobre uma matéria coletável menor, mas não quer dizer que a parte da pensão que for reduzida seja convertida em novo imposto; não ficam a existir dois impostos paralelos, um sobre a pensão reduzida e outro coincidente com a parte reduzida da pensão; a capacidade contributiva que é tributada é o rendimento da pensão reduzida, pois a parte da pensão que foi cortada por lei não revela qualquer capacidade contributiva.
Por último, os impostos têm por finalidade o financiamento geral das despesas públicas e não o financiamento de despesas públicas determinadas. O financiamento de despesas específicas é feito através de figuras tributárias, como as taxas e contribuições financeiras, ancoradas em princípios diferentes da capacidade contributiva (v.g. princípio da equivalência, princípio da solidariedade), mesmo que lhe possam fazer algumas concessões. Ora, como a redução de pensões tem por finalidade específica a sustentabilidade do sistema previdencial público e a justiça intergeracional – de acordo com o exarado na exposição de motivos – não podendo ser utilizadas para financiar despesas gerais do Estado, afastado fica o seu enquadramento na categoria jurídica dos impostos.
16. Excluída da fiscalidade propriamente dita, o requerente considera que ainda assim a medida impugnada pode ser qualificada como uma “figura tributária especial”, reconduzível a uma parafiscalidade sujeita às mesmas regras constitucionais dos impostos.
E em boa verdade, dada a finalidade específica que lhe foi cometida, a de diminuir o encargo com as pensões, tal medida só poderia ser incluída no âmbito dos tributos parafiscais, pois nela verificam-se algumas características destes tributos: (i) tem natureza coativa e é exigida por via de autoridade; (ii) é cobrada por organismo que tem autonomia perante o Estado (artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 131/2012 de 25 de junho); (iii) está afeta ao fim específico de diminuição dos encargos com pensões; (iv) e situa-se no orçamento de um organismo dotado de autonomia administrativa e financeira (artigos, 1.º e 12.º do Decreto-Lei n.º 131/2012, de 25 de junho).
Tratando-se de prestações sociais incluídas no sistema previdencial, que é baseado no princípio contributivo ou do autofinanciamento (cfr. artigo 54.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro), a redução das pensões poderia ser configurada como uma contribuição para a segurança social, um esforço que os atuais pensionistas fariam para a autossustentabilidade do sistema. Apesar de aposentados, seria ainda a relação jurídica sinalagmática estabelecida entre a obrigação legal de contribuir e o direito à pensão que justificaria a possibilidade de redução da pensão, num contexto económico em que as contribuições dos atuais subscritores são insuficientes para autofinanciar o sistema previdencial. Se neste sistema as receitas devem provir, maioritariamente, dos beneficiários, então pode aceitar-se que, em caso de desequilíbrio entre contribuições e prestações, os atuais pensionistas também contribuam para garantir a sua solvabilidade, sob pena de se transformar em sistema não contributivo.
Acresce que, sendo o sistema previdencial um sistema de repartição, em que as pensões são suportadas pelas contribuições dos trabalhadores no ativo e respetivos empregadores (denominado pay-as-you-go), no caso das contribuições serem insuficientes para pagar as pensões, os princípios da solidariedade e da justiça intergeracional (cfr. artigo 8.º da Lei n.º 4/2007 de 16 de janeiro) também podem justificar o esforço contributivo dos atuais beneficiários. A desproporção que o sistema de repartição pode gerar entre contribuições e prestações poderia constituir fundamento para que os atuais pensionistas colaborassem, através da diminuição do montante das pensões, no reequilíbrio do sistema.
Assim, poderia concluir-se que a redução de pensões assumia a natureza de contribuição para a segurança social, um tributo de natureza idêntica às quotizações que efetuam os atuais subscritores e futuros pensionistas. Na falta de um regime geral das contribuições financeiras, a redução de pensões poder-se-ia reconduzir a essa categoria, prevista na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, mesmo que, do ponto de vista material, possa ter características próprias e diversas.
Mas mesmo nesta configuração, não deixaria de constituir uma medida inserida no regime geral da segurança social e não uma medida condicionada pelos princípios jurídico-constitucionais da tributação, como a unicidade, a capacidade contributiva, progressividade e a universalidade (artigo 104.º da CRP).
17. A redução de pensões, apesar de ser apresentada como medida estrutural, vem na linha de medidas semelhantes anteriormente tomadas no contexto de emergência económica e financeira em que o país se encontra, e que foram objeto de fiscalização pelo Tribunal Constitucional.
No que se refere aos trabalhadores da Administração Pública no ativo, o Tribunal pronunciou-se sobre as normas que impuseram a redução remuneratória dos vencimentos mensais ilíquidos no ano de 2011, que suspenderam os subsídios de férias e de Natal no ano de 2012, e que mantiveram a redução remuneratória e suspenderam total ou parcialmente o subsídio de férias ou equivalente no ano de 2013; e quanto aos pensionistas, pronunciou-se sobre a suspensão dos subsídios de férias e de Natal de 2012 e sobre a imposição da contribuição extraordinária de solidariedade (CES) em 2013 (cfr. Acórdãos n.º 396/2011, de 21 de setembro de 2011, n.º 353/2012, de 5 de julho de 2012 e n.º 187/2013, de 5 de abril de 2013).
A redução das pensões é uma medida legislativa que, pelos efeitos produzidos, se assemelha ou equivale aos “cortes” nas remunerações e subsídios. No pedido que deu origem ao último acórdão foi invocada a inconstitucionalidade da norma que impôs a suspensão dos subsídios de férias (artigo 29.º da Lei n.º 66-B/2012) com fundamento em que, por envolver a ablação do rendimento anual, constituía uma norma específica da chamada “constituição fiscal”, um imposto que viola o princípio da capacidade contributiva. Mas o Tribunal julgou que a norma do artigo 104.º da CRP não podia ser convocada como parâmetro autónomo de constitucionalidade, porque a intervenção do Estado ocorreu no âmbito de uma relação jurídica de emprego, agindo enquanto empregador (Estado empregador) e não enquanto titular do poder político soberano (Estado soberano), pelo que esta opção, apesar de não se situar em “terreno constitucionalmente neutro”, não pressupunha nem autorizava «a transmudação normativa da natureza da medida convertendo uma intervenção realizada no domínio da relação de emprego público numa intervenção fiscal ou parafiscal».
Esta jurisprudência, que retira natureza tributária às restrições ao direito à retribuição inerente à relação jurídica de emprego público, também se pode aplicar quando se trata de restringir o direito à pensão ligado à relação jurídica de aposentação. A situação jurídica de aposentado nasce com a extinção da relação jurídica de emprego público, permanecendo, todavia, o aposentado vinculado à Administração Pública através de uma nova relação jurídica (de aposentação) filiada naquela e constituída em seu benefício. No sistema previdencial, a pensão constitui uma prestação pecuniária substitutiva dos rendimentos de trabalho perdidos em consequência da extinção da relação jurídica de emprego público (cfr. artigo 50.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro). Por isso, a intervenção restritiva no complexo de direitos, deveres e incompatibilidades que formam o “estatuto do aposentado” mobilizam, no plano constitucional, os princípios materiais da segurança social (v.g. contributivo, solidariedade, justiça intergeracional) e os condicionantes de medidas restritivas (vg. igualdade, proporcionalidade, proteção da confiança), mas não os que conformam medidas fiscais ou parafiscais.
Ainda que se atribua à redução de pensões a natureza jurídica de contribuição para a segurança social, como acima se admitiu, o Tribunal Constitucional já se pronunciou, no Acórdão n.º 187/2013, na parte que se refere à CES, que esta contribuição não se conforma pelos parâmetros jurídico-constitucionais das medidas de matriz fiscal. O Tribunal considerou a CES como um “instrumento financeiro de redução de despesa pública”, com a natureza jurídica de contribuição para a segurança social, que «não está sujeita aos princípios tributários gerais, e designadamente aos princípios da unidade e da universalidade do imposto, não sendo para o caso mobilizáveis as regras do artigo 104.º, n.º 1, da CRP relativas ao imposto sobre rendimento pessoal». Independentemente da qualificação jurídico-dogmática da figura, o certo é que, ao reconduzi-la a «um encargo enquadrável no tertium genus das “demais contribuições financeiras a favor dos serviços públicos”» – categoria referida na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP – inscreveu-a no ordenamento da segurança social e não no ordenamento jurídico-fiscal.
18. A redução do montante das pensões imposta pelo Decreto n.º 187/XII é uma medida conformadora da relação jurídica de aposentação, em que se integra o direito à pensão.
No contexto do diploma, as normas questionadas pretendem determinar, para o futuro, o quantum da pensão dos beneficiários da CGA inscritos até 31 de agosto de 1993. O objetivo é fazer «convergir» para os atuais e futuros pensionistas o montante das pensões com a fórmula de cálculo vigente no regime geral, sendo concebido como mais uma etapa de um processo de convergência iniciado em 1993, com a inclusão no regime geral dos trabalhadores da Administração Pública, e que desde 2006 se vêm aproximando gradualmente através de vários instrumentos tendentes a repor a sustentabilidade do sistema.
De acordo com a exposição de motivos, a medida concreta que o Decreto n.º 187/XII quer introduzir na fórmula de cálculo das pensões, aproximando-a do regime geral da segurança social, é a «taxa de substituição» prevista no n.º 3 do artigo 63.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro. Em concretização do prescrito no artigo 104.º dessa lei, que determina o prosseguimento da convergência dos regimes da função pública com o regime do sistema de segurança social, o Decreto vem alterar a fórmula de cálculo da pensão, aproximando a taxa de substituição do regime da Caixa, que era de 100% (90% ou 89% a quem foi deduzida a percentagem da quota para efeitos de aposentação), da taxa do regime geral da segurança social, que é de 80%, num tempo completo de 40 anos.
Ora, ao introduzir a taxa de formação da pensão para os futuros beneficiários com períodos contributivos anteriores a 31 de dezembro de 2005 – artigo 2.º do Decreto n.º 187/XII – por razões de sustentabilidade financeira e de justiça intergeracional, pretende estender a mesma restrição, em igual medida, aos atuais beneficiários. Num e noutro caso a lógica da medida é a mesma: igualar ou aproximar a taxa de substituição das pensões atribuídas pela Caixa à taxa de substituição das pensões que são atribuídas pela Segurança Social. É uma lógica e uma intenção que seguramente se inscreve nos princípios materiais conformadores da segurança social e não no domínio da “constituição fiscal”.
Em suma: não existe fundamento para a invalidação constitucional das normas impugnadas como base nos artigos, 104.º e 13.º da CRP.
E – Direito à segurança social: normas constitucionais e configuração legislativa
19. Afastada que está a tese de que as normas questionadas se traduzem em medidas de caráter fiscal, importa prosseguir a análise com uma breve caracterização do direito à pensão como direito social jusfundamental, de forma a compreender-se em que medida pode estar sujeito à intervenção do Estado.
A segurança social, tal como a Constituição a prevê, reveste a finalidade específica de um sistema e objeto de um direito; num outro sentido, pode ser encarada, numa vertente objetiva, como incumbência do Estado, e numa vertente subjetiva, como um complexo de direitos e deveres das pessoas (cfr. António da Silva Leal, “O Direito à Segurança Social”, in AA.VV. Estudos sobre a Constituição, 2.º vol., coord. de Jorge Miranda, pág. 339; Jorge Miranda, “Breve Nota sobre a Segurança Social”, in AA.VV. Estudos em Memória do Doutor José Dias Marques, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 228).
A primeira – incumbência do Estado –, consiste na organização do sistema de segurança social (n.º 2 do artigo 63.º), de natureza pública e obrigatória, o qual deve ser universal, ou seja, abranger todos os cidadãos, independentemente da sua situação profissional, afastando assim o acolhimento de conceções exclusivamente laborísticas; ser geral ou integral, no sentido de incluir todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade de trabalho; e unificado, descentralizado e participado. (v., sobre as várias conceções, universalista, assistencialista e laborista, Ilídio das Neves, Direito da Segurança Social, Coimbra Editora, 1996, págs. 233 e ss).
A configuração constitucional da segurança social perspetiva-a ainda como um direito social, de natureza positiva, que tem como correspetivo verdadeiras obrigações de facere por parte do Estado. Conforme mais desenvolvidamente se explicitou no Acórdão n.º 187/2013, de 5 de abril, o sistema Português recortou autonomamente um “direito à segurança social”.
Como decorre do n.º 3 do artigo 63.º, o conteúdo desse direito pode reconduzir-se, numa perspetiva que não abrange prestações personalizadas e em espécie, ao “direito que os indivíduos e as famílias têm à segurança económica”. Direito este que se concretiza fundamentalmente em prestações pecuniárias destinadas a garantir as necessidades de subsistência derivadas de várias situações, como a interrupção, redução ou cessação de rendimentos do trabalho, com o objetivo de garantir, de “modo tanto quanto possível aproximado, rendimentos de substituição dos rendimentos de trabalho perdidos” (cfr. António da Silva Leal, ob. cit., pág. 344, Ilídio das Neves, ob. cit., pág. 230).
O direito à segurança social constitui uma realidade heterogénea, que inclui no seu âmbito, direitos, poderes e faculdades muito diversos e com força jurídica distinta. Quer dizer: o direito à segurança social, no sentido de “direito como um todo”, abrange várias faculdades concretas, designadamente, a proteção através de prestações pecuniárias nas situações de reforma, aposentação, invalidez e sobrevivência, mas também prestações em espécie, através, por exemplo, da prestação de cuidados (cfr. Jorge Reis Novais, Direitos Sociais, Coimbra Editora, 2010, pág. 34).
20. As normas de direitos sociais fundamentais apresentam diferenças também no que respeita ao grau de vinculatividade do legislador. Em geral, os preceitos constitucionais relativos ao direito à segurança social, incluindo os relativos às pensões, são pouco densificados, o que leva a doutrina a referir que “o programa constitucional em matéria de segurança social não pode deixar de assumir caráter aberto” (Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, pág. 641).
No entanto, ainda assim é possível discernir diferentes graus de “abertura” constitucional.
Algumas das normas sobre direitos sociais possuem natureza programática, remetendo para uma realização diferida no tempo, sendo, portanto, dotadas de vinculatividade jurídica mais atenuada. Outras, pelo contrário, impõem ao Estado a realização de tarefas concretas e definidas no âmbito da realização dos direitos sociais.
Essa diferente natureza das normas de direitos fundamentais sociais também se reflete na liberdade de que o legislador dispõe, para, após ter dado concretização aos direitos sociais, poder alterar a sua configuração infraconstitucional.
Alguma doutrina tem referido, neste contexto, que “quando o parâmetro de verificação da constitucionalidade é este último tipo de normas e sempre que a lei ordinária já concretizou, total ou parcialmente, aquelas imposições constitucionais precisas, entende-se que o legislador perde margem para eventual retrocesso, pelo menos quando tal retrocesso configure a criação ou reposição de um incumprimento omissivo da Constituição” (cfr. Jorge Reis Novais, “O Tribunal Constitucional e os direitos sociais — o direito à segurança social', Jurisprudência Constitucional, n.º 6, 2006, pág. 5).
E alguns autores referem mesmo, em concretização desta ideia, que a liberdade de conformação do legislador tem como limite o “núcleo essencial já realizado” dos direitos (cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Garantia da Constituição, 2ª edição, Almedina, 1998, pág. 437) ou o nível realizado de concretização legislativa que já beneficiava de uma sedimentação na consciência jurídica geral que lhe conferia o estatuto de direito materialmente constitucional (cfr. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5ª edição, Almedina, pág. 377).
Há que sublinhar, porém, que o pleno cumprimento do programa constitucional dos direitos sociais depende “essencialmente de fatores financeiros e materiais que, em grande medida, o Estado não domina” (cfr. Jorge Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra, 2ª ed. 2003, pág. 147). Assim, a concretização legislativa dos direitos sociais é levada a cabo pelo legislador em função dos recursos disponíveis em cada momento histórico. A ideia da preservação do “núcleo essencial” não se pode confundir com a ideia de um princípio de “proibição do retrocesso social”, cujo conceito puro é impraticável, já que pressuporia a ideia de que os recursos disponíveis seriam sempre crescentes no futuro (cfr. Jorge Reis Novais, Direitos Sociais…, cit., pág. 243).
Aliás, como afirma Gomes Canotilho, uma tese de “irreversibilidade de direitos sociais adquiridos” deve entender-se “com razoabilidade e com racionalidade, pois poderá ser necessário, adequado e proporcional baixar os níveis de prestações essenciais para manter o núcleo essencial do próprio direito social” (cfr. “Bypass Social e o Núcleo Essencial das prestações Sociais”, in Estudos sobre Direitos Fundamentais, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 265). Nesta perspetiva, a própria garantia da manutenção do conteúdo mínimo do direito à pensão pode exigir a diminuição do seu montante, de forma a preservar recursos para a manutenção desse núcleo essencial.
F – O direito à pensão: fundamentos, abertura de conformação e de alteração legislativa
21. A Constituição não autonomiza expressamente, e nesses termos, um “direito à pensão”. No entanto, o direito à pensão é um dos corolários do direito à segurança social “como um todo”. Por diversas vezes o Tribunal Constitucional reconheceu o direito à pensão, nomeadamente, à pensão de velhice, invalidez e viuvez, como um direito constitucionalmente protegido.
Embora na sua génese, a idade da reforma e consequente proteção na reforma ou aposentação, tivesse sido associada a uma «invalidez presumida», acabou por ser considerado: (i) um “direito ao repouso”, que pretende garantir ao trabalhador que chegou à idade da reforma, “a alternativa de repouso com garantia de um «sucedâneo» da retribuição, antes percebida pela prestação de trabalho” (cfr. Acórdão n.º 581/95); (ii) um direito à segurança económica das pessoas idosas, previsto no artigo 72.º, n.º 1, da CRP (cfr. Acórdão n.º 435/98); (iii) ou uma manifestação do direito à segurança social radicado no princípio da dignidade da pessoa humana, ínsito nos artigos, 1.º e 2.º da CRP, “visando assegurar, designadamente, àqueles que terminaram a sua vida laboral ativa, uma existência humanamente condigna” (cfr. Acórdão n.º 72/2002). No mesmo sentido, o direito à segurança económica está igualmente expresso no artigo 25.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, na parte em que se prevê o direito das pessoas idosas a uma existência condigna e independente.
E o mesmo se verifica com a pensão de invalidez, que se justifica nos mesmos princípios, destinando-se a garantir um rendimento de substituição aos que não têm capacidade para o trabalho; e com a pensão de sobrevivência, que visa a proteção dos familiares sobrevivos face a uma diminuição dos rendimentos do agregado familiar, garantindo, assim, a segurança económica dessas pessoas através da atribuição de rendimentos de substituição dos quais o agregado ficou privado.
22. A Constituição não fixa, com caráter de regra suscetível de aplicação direta e imediata, o sistema de pensões e demais prestações do sistema de segurança social, assim como os critérios da sua concessão e valor pecuniário. Caberá assim ao legislador ordinário, em função das disponibilidades financeiras e das margens de avaliação e opções políticas decorrentes do princípio democrático, modelar especificamente esses elementos de conteúdo das pensões. É-lhe deixada uma grande margem de manobra no que toca “às modalidades e técnicas de proteção a instituir” (Luísa Andias Gonçalves, “Reflexões em torno da Reforma das Prestações Sociais”, in AA.VV. org. Fernando Ribeiro Mendes; Nazaré Costa Cabral, Por Onde vai o Estado Social em Portugal?, no prelo).
Também aqui a liberdade de decisão do legislador é variável, consoante a maior ou menor determinabilidade das regras constitucionais.
Em certas situações, a margem de conformação do legislador será necessariamente menor. É o que se verifica com a norma do n.º 4 do artigo 63.º, que garante o princípio – conhecido na doutrina italiana como “princípio da totalização” – que impõe a contagem de todo tempo de trabalho realizado para o cálculo do montante das prestações: “todo o tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e invalidez, independentemente do setor de atividade em que tiver sido prestado”. O Tribunal Constitucional considerou que esse direito possuía natureza análoga a direitos, liberdades e garantias (cfr. Acórdãos n.º 411/99 e n.º 432/2007).
Todavia, tem sido afirmado que desse princípio não decorre que o legislador ordinário esteja constitucionalmente vinculado a garantir ao pensionista uma pensão rigorosamente correspondente ao das remunerações registadas durante o período contributivo, não se podendo falar num “princípio da equivalência entre contribuições e montantes da prestação”, já que o sistema previdencial assenta em mecanismos de repartição e não de capitalização (cfr. Acórdão n.º 99/99). No mesmo sentido, afirmou-se num outro acórdão que “a Constituição da República Portuguesa não consagra em qualquer das suas normas ou princípios a exigência de que se tenha em consideração, como critério para o cálculo do montante das pensões de reforma, o montante da retribuição efetivamente auferida pelo trabalhador no ativo. Pode – e, numa certa perspetiva, haverá mesmo que – distinguir-se entre a necessária consideração de todo o tempo de trabalho e uma (inexistente) imposição de utilização, como critério de cálculo do valor da pensão, do montante dos rendimentos realmente auferidos” (cfr. Acórdão n.º 675/2005).
Com efeito, não sendo o sistema caracterizado pelo princípio da correspectividade, em que há uma correlação direta entre a contribuição paga e o valor da pensão a atribuir, como acontece no sistema de capitalização, tem vindo a entender-se que “o princípio do Estado social ou da socialidade justifica que o princípio da equivalência seja corrigido pelo princípio de solidariedade, não apenas à relação entre contribuição e prestação, mas também na articulação entre risco e prestação” (cfr. João Carlos Loureiro, “Adeus ao Estado Social? O Insustentável Peso do Não-Ter”, in Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXXIII, Coimbra, 2007, pág. 169, e ainda, Ilídio Neves, ob. cit., pág., 304).
23. O legislador possui margem de manobra para delinear o conteúdo concreto ou final do direito à pensão, respeitados os limites constitucionais pertinentes. Assim, afirmar o reconhecimento, autónoma e imediatamente decorrente do texto constitucional, do direito à pensão, não significa que se possa afirmar o direito a uma determinada pensão. O direito a uma determinada pensão só adquire conteúdo preciso através da legislação ordinária. Pelo que a sua “vinculatividade jurídica” é “uma criação infraconstitucional”. Apenas a partir do momento em que o legislador ordinário fixa, com elevado grau de precisão e de certeza, o conteúdo do direito exigível do Estado, o direito à pensão adquire na ordem jurídica um “grau pleno de definitividade e densidade” (cfr. Jorge Reis Novais, Direitos Sociais…, cit., pág. 148).
Alguns autores defendem que, a partir do momento que seja levada a cabo a concretização legislativa do direito, ela passará a “integrar a norma de direito fundamental”, correspondendo a faculdades, pretensões ou direitos particulares integráveis no direito fundamental como um todo (cfr. Jorge Reis Novais, Direitos Sociais…, ob. cit., pág. 154, e, de certa forma, Jorge Miranda e Rui Medeiros quando afirmam que “os direitos legais a prestações resultantes da concretização do direito à segurança social, uma vez consolidados na lei (…) possam beneficiar do regime do artigo 17.º” (ob. cit., pág. 635). Não obstante, isso não significa uma absoluta intangibilidade do direito à pensão, mas sim que o referido direito passa a beneficiar da proteção específica correspondente, nomeadamente dos princípios estruturantes do Estado de Direito, como a proteção da confiança ou da proporcionalidade, apenas podendo ser suprimidos ou diminuídos com observância desses mesmos princípios.
24. Assim, o legislador não está proibido de alterar a forma como materializa o direito à pensão, podendo alterar ou até mesmo reduzir o seu montante, tendo em consideração a evolução das circunstâncias económicas ou sociais, estando embora proibido de eliminar o instituto “pensão de reforma, aposentação, invalidez e sobrevivência” ou, ainda, o seu conteúdo essencial.
O direito à pensão está, aliás, particularmente dependente das disponibilidades financeiras do Estado, sendo, nesse sentido, mais permeável “à pressão da conjuntura”, sobretudo, nos períodos mais críticos de dificuldades económicas (cfr. Jorge Reis Novais, “O Tribunal Constitucional…, cit., págs. 3 e ss.). Essa especial vulnerabilidade justifica-se não apenas com o facto de o direito à pensão alocar recursos financeiros imediatos, mas também devido à própria estrutura do direito. O direito à pensão tem na sua formação uma estrutura temporal de média e longa duração, pelo que durante a vida da prestação, os contextos económicos do Estado podem alterar-se radicalmente.
Por outro lado, para além da sua duração prolongada, as pensões são ainda particularmente dependentes dessa “reserva do possível”, pelo simples facto da sua inserção no sistema solidário de prestação do contrato geracional. Ora, num sistema previdencial de repartição, os beneficiários não podem ignorar os riscos envolvidos, com a possibilidade de alteração dos direitos em formação, não se podendo defender que se reconhece, sem exceções, um “princípio da intangibilidade no que toca ao quantum das pensões” (cfr. João Carlos Loureiro, “Adeus ao Estado Social?...”, cit., págs. 166, 170 e 379). E quanto aos direitos já consolidados, no Acórdão n.º 187/2013 sentenciou-se o seguinte: «o reconhecimento do direito à pensão e a tutela específica de que ele goza não afastam, à partida, a possibilidade de redução do montante concreto da pensão. O que está constitucionalmente garantido é o direito à pensão, não o direito a um certo montante, a título de pensão».
No entanto, o legislador, na conformação que faz, em cada momento histórico, do direito à pensão está juridicamente vinculado pelas normas e princípios constitucionais. Assim, apesar de um inequívoco reconhecimento de que o legislador possui liberdade para alterar as condições e requisitos de fruição e cálculo das pensões, mesmo em sentido mais exigente, ele tem de respeitar vários limites constitucionalmente impostos, nomeadamente os que derivam do princípio do Estado de Direito. Deste modo, as alterações que o legislador pretenda levar a cabo têm de se fundar em motivos justificados – designadamente a sustentabilidade financeira do sistema –, não podem afetar o mínimo social, os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, e da proteção da confiança.
É pela análise deste último parâmetro constitucional que o Decreto n.º 187/XII vai ser confrontado.
G. Norma parâmetro: princípio da proteção da confiança.
25. O requerente considera que a redução e o recálculo das pensões de aposentação, reforma, invalidez e sobrevivência, apesar de vigorarem para o futuro, afetam desfavoravelmente relações jurídicas, direitos e factos consolidados que foram constituídos no passado, ao abrigo de legislação vigente em que os beneficiários da CGA realizaram toda a sua carreira contributiva. Ao assumirem a natureza de normas portadoras de “retroatividade inautêntica” devem ser confrontadas com o princípio da proteção da confiança, deduzido do artigo 2.º da CRP, tendo por referência os “testes” ou requisitos que dão a possibilidade constitucional de o invocar.
E segundo a “mecânica aplicativa” desse parâmetro, no seu entender, estão reunidos cumulativamente todos os pressupostos do princípio da proteção da confiança: (i) «é inequívoco que o Estado criou, junto dos referidos pensionistas, expectativas de continuidade da fruição desses direitos, com conteúdo preciso e legalmente definido»; (ii) «as expectativas de continuidade dos direitos constituídos ao abrigo da lei e da relação sinalagmática firmada com o sistema de segurança social devem ser reconhecidas como legítimas»; (iii) «os cidadãos que realizaram os seus descontos confiaram na lei vigente para o planeamento da sua vida futura em termos de criação de condições de subsistência na velhice ou invalidez, não lhes sendo objetivamente exigível que tivessem feito outros planos providenciais, com base na antevisão da possibilidade de o Estado vir a alterar, retrospectivamente, as regras pré-estabelecidas e reduzir para o futuro, os valores das prestações»; (iv) a transição de regimes não foi «”realizada de forma suave”, ou seja, através de uma “redução progressiva” que confira aos cidadãos tempo e fatores de circunstâncias que lhe permitam ajustar o seu plano de vida às novas imposições sacrificiais que impõem uma diminuição expressiva de rendimento».
Perante tal constatação, o requerente devolve ao Tribunal a apreciação do caráter “intolerável”, “arbitrário” ou “demasiado oneroso” das normas questionadas, que ferem retrospectivamente legitimas expectativas de continuidade do desfrute de um direito constituído e definido, requerendo ainda que analise se, nos termos constitucionais, não será necessária uma “norma de transição” que seja adequada e necessária à tutela da segurança jurídica dos pensionistas.
26. Embora o Decreto n.º 187/XII pretenda vigorar para o futuro – os efeitos jurídicos da redução de pensões só se aplicam a partir de 1 de janeiro de 2014 – as normas impugnadas incidem sobre as relações jurídicas de aposentação constituídas ao abrigo de um regime anterior. Estamos, pois, perante um dos casos em que a lei se aplica para o futuro a situações de facto e relações jurídicas presentes não terminadas, modalidade de retroatividade que a doutrina chama de «retroatividade inautêntica» ou «retrospetiva».
Como refere Gomes Canotilho, dando como exemplo as normas reguladoras dos regimes de pensões na segurança social, «nestes casos, a nova regulação jurídica não pretende substituir ex tunc a disciplina normativa existente, mas acaba por atingir situações, posições jurídicas e garantias geradas no passado e relativamente às quais os cidadãos têm legítimas expectativas de não serem perturbados pelos novos preceitos jurídicos» (cfr. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed. pág. 262). De igual modo, para Jorge Reis Novais verifica-se uma situação dessas “quando a lei nova só reclama uma vigência ex nunc, ainda que com a virtualidade de afetar direitos que, embora constituídos no passado por força da lei anterior, prolongam os seus efeitos no presente” (cfr. As Restrições aos Direitos Fundamentais…, pág. 818).
Como se referiu (n.º 24) não há regras constitucionais impeditivas de leis retrospetivas que imponham a redução do «quantum» de pensões já reconhecidas. Isso não significa, porém, que a eventual inconstitucionalidade dessas leis não deva ser apreciada com base em princípios constitucionais, como o da proteção da confiança. É precisamente nas situações de sucessão de leis no tempo que o princípio da confiança pode ser invocado como parâmetro autónomo da constitucionalidade de um ato legislativo.
O princípio da proteção da confiança pode pois ser mobilizado nas situações da chamada retrospetividade, ainda que o valor jurídico da confiança possa ter aí um menor peso do que nas situações de verdadeira retroatividade. Nestes casos, refere Reis Novais, «a resistência à retroatividade apresenta uma menor intensidade normativa: o juízo de inconstitucionalidade dependerá essencialmente de uma ponderação de bens ou interesses em confronto» (cfr. Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, pág. 266). Daí que não haja, com efeito, “um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou à manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados. Ao legislador não está vedado alterar o regime de casamento, de arrendamento, do funcionalismo público ou das pensões, por exemplo, ou a lei por que se regem processos pendentes” (Acórdão n.º 287/90).
A proteção da confiança é uma norma com natureza principiológica que deflui de um dos elementos materiais justificadores e imanentes do Estado de Direito: a segurança jurídica dedutível do artigo 2.º da CRP. Enquanto associado e mediatizado pela segurança jurídica, o princípio da proteção da confiança prende-se com a dimensão subjetiva da segurança – o da proteção da confiança dos particulares na estabilidade, continuidade, permanência e regularidade das situações e relações jurídicas vigentes.
Sustentado no princípio do “Estado de direito democrático”, o seu conteúdo tem sido construído pela jurisprudência, em avaliações e ponderações que têm em conta as circunstâncias do caso concreto. Quando aplicado ao poder legislativo, o Tribunal Constitucional densificou o princípio através de uma fórmula que, desde o já referido Acórdão n.º 287/90, tem vindo ser aplicada em sucessiva jurisprudência.
Entre inúmera jurisprudência, explicita-se a referida fórmula no Acórdão n.º 128/2009, nos seguintes termos:
“De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais:
a) a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).
Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da atuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui proteção”.
27. A metodologia a seguir na aplicação deste critério implica sempre uma ponderação de interesses contrapostos: de um lado, as expectativas dos particulares na continuidade do quadro legislativo vigente; do outro, as razões de interesse público que justificam a não continuidade das soluções legislativas. Os particulares têm interesse na estabilidade da ordem jurídica e das situações jurídicas constituídas, a fim de organizarem os seus planos de vida e de evitar o mais possível a frustração das suas expectativas fundadas; mas a esse interesse contrapõe-se o interesse público na transformação da ordem jurídica e na sua adaptação às novas ideias de ordenação social. Caso os dois grupos de interesses e valores são reconhecidos na Constituição em condições de igualdade, impõe-se em relação a eles o necessário exercício de confronto e ponderação para concluir, com base no peso variável de cada um, qual o que deve prevalecer.
O método do juízo de avaliação e ponderação dos interesses relacionados com a proteção da confiança é igual ao que se segue quando se julga sobre a proporcionalidade ou adequação substancial de uma medida restritiva de direitos. Mesmo que se conclua pela premência do interesse público na mudança e adaptação do quadro legislativo vigente, ainda assim é necessário aferir, à luz de parâmetros materiais e axiológicos, se a medida do sacrifício é «inadmissível, arbitrária e demasiado onerosa» (cfr. Acórdão n.º 287/90).
28. Como acima se referiu, o respeito pelo direito à pensão não significa necessariamente que o valor da pensão seja intangível, pois mesmo verificando-se os pressupostos exigíveis para a tutela da confiança, a relevância do interesse público pode justificar alterações legislativas.
Com efeito, a ponderação envolvida no princípio da proteção da confiança não pode atuar sem primeiramente se conhecer os interesses de política legislativa que possibilitam e justificam a redução e recálculo de pensões.
O proponente das normas questionadas, na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 171/XII, indica como principal justificação para a redução de pensões a sustentabilidade do sistema público de pensões, a que acresce a igualdade proporcional e a solidariedade entre gerações. Depois de expor os fatores que conduziram ao “desequilíbrio financeiro estrutural” e os elementos e razões de facto tendentes a demonstrar a existência de uma disparidade entre o regime da Caixa e o regime geral da segurança social, sempre superior a 10% do valor mensal das pensões, concluiu que a correção daquele desequilíbrio não pode ser «apenas para as pensões a calcular no futuro – o que só por si adiaria o início dos efeitos em cerca de dois anos, dado o volume de pedidos, a que é ainda aplicável a legislação de 2012, pendentes de instrução na Caixa – porque, como a experiência demonstra, a despesa total continuaria a aumentar de forma acelerada só por efeito do aumento do número de pensões».
A justificação da prevalência do imperativo da sustentabilidade financeira sobre as expectativas dos atuais pensionistas vem referida nos seguintes termos:
«A presente proposta de lei aprofunda a convergência, para os novos pensionistas, como sempre sucedeu no passado e como impõem princípios de justiça material e de equidade há muito defendidos pelo legislador, mas igualmente para os atuais pensionistas, pelas mesmas razões mas também, essencialmente, por imperativos de sustentabilidade financeira cuja gravidade e premência não podem deixar de prevalecer, ao menos provisoriamente, sobre as expectativas dos afetados, preservando, porém, os efeitos já produzidos das situações a alterar, que apenas são modificadas para o futuro.
No atual contexto de emergência económica e financeira do Estado, não há condições materiais para, por mais tempo, continuar a circunscrever o ónus da insustentabilidade financeira do sistema aos futuros beneficiários. Os beneficiários atuais e futuros deste sistema – que são os principais interessados na sua sustentabilidade financeira – devem, todos, sem exceção, na medida das suas possibilidades, participar nesse esforço, na certeza de que o que lhe vier a acontecer no futuro não deixará de a todos por igual afetar, inevitavelmente em maior medida do que os sacrifícios que agora são pedidos.
Assim, o esforço pedido aos atuais pensionistas é essencial à salvaguarda das suas próprias expectativas, que apenas podem ser adequadamente protegidas num contexto de sustentabilidade do sistema de pensões a que pertencem. Tal esforço, seguramente bem compreendido no quadro da solidariedade entre gerações, é a melhor garantia de que também as gerações vizinhas das atualmente aposentadas poderão dispor, ainda assim, de um grau mínimo de autonomia na definição do futuro».
E a relevância dada ao valor da justiça intergeracional acentua-se na seguinte passagem:
«A solidariedade entre gerações não pode deixar de ser bidirecional, dos trabalhadores ativos para com os pensionistas, mas igualmente destes para com aqueles, não podendo razoavelmente exigir-se aos primeiros um esforço desproporcionado para aquilo que são as suas capacidades e para aquilo que serão previsivelmente os benefícios que colherão no futuro do sistema, isto mesmo admitindo que as novas regras não serão também elas alvo de alteração em sentido desfavorável no futuro»
29. Certa doutrina tem reconhecido que a sustentabilidade é um critério que pode levar a uma redução global de pensões na hipótese de, apenas desse modo, se assegurar a capacidade funcional do sistema de previdência (cfr. João Carlos Loureiro, “Adeus ao Estado Social? …”, cit. pág. 174). Os interesses públicos da sustentabilidade financeira e da justiça intergeracional – os invocados como fundamento das normas impugnadas – têm também sido invocados pelo Tribunal Constitucional para credenciar medidas restritivas de direitos sociais, quer num contexto de crise económico-financeira (cfr. Acórdão n.º 187/2013), quer a propósito da convergência do sistema de pensões (cfr. Acórdãos n.º 188/2009 e n.º 3/2010).
De forma bem expressiva, refere-se no Acórdão n.º 188/2009 que «não pode deixar de reconhecer-se que a limitação do montante da pensão, entendida no quadro mais geral da reforma do sistema de segurança social, se encontra justificada pela necessidade de salvaguardar interesses constitucionalmente protegidos que devem considerar-se prevalecentes, como o princípio da justiça intergeracional e o princípio da sustentabilidade». O princípio da sustentabilidade recebe acolhimento constitucional nos artigos, 81.º, alínea a), e 66.º, n.º 1 e 2, da CRP, mas também do artigo 101.º, quando refere a exigência do “desenvolvimento social” ou do artigo 9.º, alínea d), que tem subjacente a ideia de justiça intergeracional, o que pressupõe a sustentabilidade do sistema.
O princípio da sustentabilidade, que tem dimensão jurídico-constitucional, assume particular relevo num sistema previdencial baseado no princípio contributivo ou do autofinanciamento. Segundo este princípio, que é deduzido da regra constitucional da autonomia orçamental da segurança social, consagrada no artigo 105.º, n.º 1, alínea b), da CRP, «o sistema previdencial deve ser fundamentalmente autofinanciado, tendo por base uma relação sinalagmática direta entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações» (cfr. artigo 54.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro). E a partir da autonomia orçamental e financeira da segurança social, a doutrina extrai o princípio da autossustentabilidade do sistema previdencial (cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit. págs. 1105-1106).
30. Quer pelos dados exarados na exposição de motivos, quer pelos estudos juntos aos autos pelo Governo, nomeadamente, o “Desenvolvimento técnico da exposição de motivos”, a “Análise comparada da evolução dos regimes da CGA e da Segurança Social ao longo do tempo” e o “Relatório de Avaliação atuarial do regime de pensões da Caixa Geral de Aposentações”, verifica-se que o proponente da norma põe em relevo a situação financeira da Caixa como o motivo justificador da redução de pensões.
Com efeito, invoca que o desequilíbrio financeiro estrutural da CGA, com um défice anual que ascende a 2,6% do PIB, e que é coberto por transferências do Orçamento, em cerca de 60% das prestações pagas anualmente, associado à situação de emergência económica e financeira em que o país se encontra, torna a situação insustentável, exigindo medidas como as constantes das normas questionadas.
É certo que o equilíbrio e a consolidação orçamental, que são perspetivados a curto e médio prazo, mas sobretudo na avaliação da sustentabilidade financeira do sistema público de pensões, são interesses públicos orientadores de qualquer reforma estrutural do sistema público de pensões. Perspetivando-se a continuação desse desequilíbrio, pela projeção negativa da evolução de certos fatores de longo prazo (v.g. envelhecimento da população, aumento da esperança média de vida), a sustentabilidade é apontada como um elemento estrutural do sistema de pensões da Caixa.
Ora, refere a exposição de motivos que o princípio da autossustentabilidade será posto em causa quando 60% das prestações atribuídas são cobertas por transferências anuais do Orçamento do Estado, ou seja, através de impostos ou por recurso ao endividamento. Numa situação de crise económica-financeira, que gere diminuição de contribuições para a segurança social, por via do desemprego e diminuição de remunerações, com a consequente diminuição da base de incidência, as medidas legislativas que visem garantir a solvabilidade e sustentabilidade do sistema satisfazem e realizam interesses públicos individualizados.
31. Por seu turno, também o princípio da “justiça intergeracional” recebe acolhimento constitucional, falando a CRP em “solidariedade entre gerações” (artigo 66.º, n.º 2, alínea d)). O Tribunal Constitucional já deu acolhimento ao valor da “solidariedade intergeracional” (v. Acórdão n.º 437/06, de 12 de julho). Este princípio reveste especial relevo num regime de repartição de segurança social, como o nosso, em que as quotizações/contribuições que dão entrada no sistema servem de fonte de financiamento das prestações entregues àqueles que dele estão a usufruir. Este princípio poderá justificar um corte nas pensões que se insiram já no campo dos designados “direitos adquiridos”, uma vez que a proteção rígida desses direitos poderia traduzir-se numa ameaça a toda uma geração que, pelo simples facto de reunir os pressupostos para adquirir o direito à pensão num momento posterior, teria de sustentar a manutenção do nível de reformas dos já detentores dos “direitos adquiridos”, mesmo que isso pusesse em causa a sustentabilidade do sistema e se traduzisse numa profunda injustiça intergeracional” (cfr. João Carlos Loureiro, “Adeus ao Estado Social? …”, cit. pág. 159 e Susana Tavares da Silva, “ O problema da Justiça intergeracional em jeito de comentário ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/2003, in Cadernos de Justiça Tributária, Ano 00, págs. 11 e ss.).
32. Por último, ressalta da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 171/XII que as normas impugnadas também visam atingir fins de justiça social, equidade contributiva e solidariedade intergeracional, designadamente através do aprofundamento da «convergência» do regime da Caixa (atualmente designado de regime de proteção social convergente) com o sistema previdencial do regime geral.
Também o interesse público da convergência encontra apoio em diversas normas constitucionais e legais: (i) o artigo 63.º, que caracteriza o sistema de segurança social como um sistema de segurança social unificado; (ii) a lei de bases – Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro – que no seu artigo 104.º impôs que fosse dada continuidade à «convergência dos regimes da função pública com os regimes do sistema de segurança público»; (iii) o n.º 2 do artigo 29º da Lei n.º 4/2009, de 29 de janeiro, que determina o âmbito e termos da convergência, ao estabelecer que a regulamentação dever incluir «a definição do objeto, objetivo, natureza, condições gerais e especiais, regras de cálculo de montantes e outras condições de atribuição das prestações que efetivam o direito à proteção em todas as eventualidades, referidas no artigo 13.º (ente elas, a velhice), de forma idêntica à respetiva legislação aplicável no regime geral, sem prejuízo das especificidades decorrentes da organização e sistema de financiamento próprio do regime de proteção social convergente».
Na ótica do proponente das normas impugnadas, a prossecução do interesse público da convergência justifica que a medida de redução de pensões seja aplicada apenas aos pensionistas da CGA, uma vez que as suas pensões representam, na perspetiva dos fins a atingir, uma sobrecarga ou um peso excessivo, em comparação com os pensionistas do regime geral, cujas pensões são, em regra, menores em 10%.
A percentagem de 10% prescrita nas normas questionadas vem explicada na exposição de motivos como sendo a diferença existente até 31 de dezembro de 2005 entre as pensões calculadas segundo o regime da Caixa e as pensões calculadas segundo o regime geral. Aí se refere que inúmeras simulações realizadas com “situações tipo” no universo dos pensionistas na Caixa confirmam a diferença de pelo menos 10% a seu favor: as pensões atribuídas pela Caixa «se calculadas de acordo com cada um dos regimes sucessivamente em vigor no regime de proteção social convergente aplicado pela Caixa em 2000, 2005 e 2010, apresentam, relativamente ao resultado da fórmula historicamente mais favorável do regime geral de segurança social, que vigorou entre 1993 e 2001, uma diferença, para mais, de pelo menos 10% (a diferença, nalguns casos, é mesmo substancialmente superior a essa, chegando mesmo a ultrapassar os 30%)».
Ainda de acordo com o referido na exposição de motivos, esta disparidade sempre existiu porque, na legislação sucessivamente em vigor, a remuneração atendível para efeitos de cálculo correspondia à última remuneração do cargo pelo qual o subscritor era aposentado, o equivalente a 100% até 2004, 90% até 2010 e 89% até à atualidade, enquanto no regime geral sempre existiu uma a taxa de formação da pensão correspondente a 2% ao ano, que em 40 anos de serviço equivale a 80%.
Deste modo, um dos objetivos declarado do Decreto n.º 187/XII é o de fazer convergir a fórmula de cálculo da pensão dos subscritores e beneficiários da CGA com os do regime geral, de modo a que a taxa de substituição seja idêntica para todos. É por isso que, nas alíneas b) e d) do artigo 7.º, se procede a um recálculo da primeira parcela da pensão (P1) calculada segundo a fórmula introduzida pela Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro. Só nestas pensões é que a remuneração atendível para o tempo de serviço prestado até 31 de dezembro de 2005 corresponde sucessivamente a 100%, 90% e 89% da última remuneração. Como relativamente ao tempo de serviço prestado após aquela data, a pensão já é calculada segunda as regras do regime geral – sujeita a uma taxa anual de formação da pensão de 2% a 2,3% – a incidência dos 10% sobre esse parcela (P2) não faria a convergência dos sistemas, uma vez que faria incidir sobre a mesma remuneração de referência duas deduções: os 2% por cada ano de serviço e 10% sobre a totalidade.
33. Os interesses públicos conexos com a sustentabilidade do sistema público de pensões, a justiça intergeracional e a convergência do regime de pensões da CGA com o regime geral da segurança social anteriormente analisados são consonantes com os princípios retores de uma eventual reforma estrutural do mesmo sistema concebida de harmonia com o programa constitucional plasmado no artigo 63.º da CRP.
Contudo, as reformas previstas no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto n.º 187/XII reportam-se exclusivamente ao sistema de pensões da CGA – que é apenas uma parte do sistema público de pensões, uma vez que este engloba também o sistema previdencial do sistema da segurança social (artigos, 23.º e 50.º e seguintes da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro) – e são apresentadas na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 171/XII como exigências de aprofundamento do nível de convergência e de um reequilíbrio relativo entre o esforço exigido e os benefícios atribuídos aos trabalhadores passados e atuais abrangidos pelo regime da Caixa. Do mesmo modo, os imperativos de sustentabilidade financeira invocados especialmente para justificar a diminuição do valor das pensões em pagamento dos beneficiários da CGA fundamentam-se numa ideia de autossustentabilidade do mesmo sistema de pensões. A explicação em ambos os casos é a de que «Os beneficiários atuais e futuros deste sistema – que são os principais interessados na sua sustentabilidade financeira – devem, todos, sem exceção, na medida das suas possibilidades, participar nesse esforço, na certeza de que o que lhe vier a acontecer no futuro não deixará de a todos por igual afetar, inevitavelmente em maior medida do que os sacrifícios que agora são pedidos».
Ou seja, o regime previdencial da CGA é (ainda hoje) concebido pelo legislador como um sistema público autónomo e paralelo ao sistema de pensões do regime geral da segurança social, vocacionado para alcançar, a prazo, uma situação financeira equilibrada. E, num tal quadro, a racionalidade da solução preconizada no citado artigo 7.º, n.º 1, do Decreto n.º 187/XII, analisa-se nas duas seguintes proposições:
- Primeira: na impossibilidade de aumentar mais o nível de transferências do Orçamento do Estado para o sistema de pensões da Caixa, o agravamento do respetivo défice financeiro estrutural tem de ser financiado pelos seus beneficiários, atuais e futuros;
- Segunda: uma vez que os beneficiários futuros do regime da Caixa já realizam hoje contribuições muito superiores ao valor dos benefícios que poderão vir a auferir e estes passam a ser ajustados à medida dos benefícios percebidos no âmbito do Regime Geral de Segurança Social (a convergência prevista no artigo 5.º da Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro, é atualizada e consumada nos termos do artigo 2.º do Decreto n.º 187/XII), justifica-se reduzir os benefícios atuais atribuídos pela Caixa para um nível equivalente ou próximo do dos benefícios a conceder no futuro no âmbito do mesmo regime, que, mormente no plano da «taxa de substituição», deve corresponder ao nível de benefícios atribuídos no âmbito do RGSS.
A redução e o recálculo de pensões surgem, deste modo, como uma solução alternativa ao aumento das transferências do Orçamento do Estado e, portanto, como medidas de consolidação orçamental pelo lado da despesa.
34. Identificados os interesses públicos em presença que fundamentam a alteração legislativa em causa, importa agora caracterizar as expectativas dos destinatários por ela afetados.
Através da fixação da pensão, constante da resolução final do procedimento tendente a apurar se estão reunidas as condições necessárias e a determinar o montante da pensão, regulando definitivamente a situação do pensionista, ocorre a concessão de um novo «status» que atribui um complexo de direitos, entre eles o direito a uma «pensão mensal vitalícia» (cfr. artigos, 46.º e 97.º do Estatuto de Aposentação – Decreto-Lei n.º 498/72).
Com o reconhecimento, ou desde que se encontrem reunidos todos os requisitos necessários ao seu reconhecimento, o direito à pensão entra na esfera jurídica do aposentado com a natureza de verdadeiro direito subjetivo, um «direito adquirido» que pode ser exigido nos termos exatos em que for reconhecido. O artigo 66.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, define os direitos adquiridos como sendo «os que já se encontram reconhecidos ou possam sê-lo por se encontrarem reunidos todos os requisitos legais relativos ao seu conhecimento». Estes direitos ganharam já vestes de direitos com um conteúdo preciso e definido: são «direitos perfeitos, fechados»; por estarem preenchidos todos os requisitos de que a lei faz depender o seu reconhecimento, «o beneficiário viu entrar na sua esfera jurídica um direito subjetivo com contornos exatos, estando em situação de exigir do Estado a prestação que lhe é devida» (cfr. Luísa Andias Gonçalves, ob. cit.).
Deles distinguem-se os chamados “direitos em formação”, cujo período contributivo se iniciou, mas ainda não se completou. Todavia, em abstrato, pode afirmar-se que, quer nestes direitos quer nos já adquiridos, verifica-se uma situação de formação de expectativas merecedoras de proteção, ou seja, existe sempre a confiança de que o montante da pensão perspetivado ou já fixado não sofrerá alterações posteriores, que não sejam as decorrentes da sua atualização legal.
Apesar disso, os titulares dos chamados “direitos adquiridos” encontram-se, à partida, numa situação que carece de uma tutela mais reforçada que a de um trabalhador que está ainda a formar a sua carreira contributiva. Nas pensões em formação, apesar de também poderem existir expectativas legítimas dignas de proteção – garantidas, em regra, por normas transitórias – os subscritores, futuros beneficiários, podem contar com a possibilidade de mudança, já que o legislador, através do artigo 43.º do Estatuto da Aposentação, os adverte que o regime de aposentação se fixa com base na lei em vigor e na situação existente à data em que se verificam os pressupostos que dão origem à aposentação (cfr. Acórdãos deste Tribunal n.º 99/99, n.º 302/2006 e 351/2008).
O direito à pensão, enquanto direito adquirido, fundado na lei, com existência real, material, individualizado e incorporado no património do aposentado, a vencer mensalmente, em princípio, está mais protegido em relação a quaisquer modificações legislativas posteriores. Aí, o princípio da tutela dos direitos adquiridos, positivado nos artigos 20.º e 66.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, representa o acolhimento no plano infraconstitucional da ideia tuteladora do princípio constitucional da proteção da confiança. Neste contexto, referem Jorge Miranda e Rui Medeiros que, “quanto mais consistente for o direito do particular, mais exigente é o controlo da proteção da confiança” (ob. cit., pág. 643).
Nesse sentido, refere-se no Acórdão n.º 187/2013:
«Chegado o momento em que cessou a vida ativa e se tornou exigível o direito às prestações, o pensionista já não dispõe de mecanismos de autotutela e de adaptação da sua própria conduta às novas circunstâncias, o que gera uma situação de confiança reforçada na estabilidade da ordem jurídica e na manutenção das regras que, a seu tempo, serviram para definir o conteúdo do direito à pensão.
Por outro lado, é legítima a confiança gerada na manutenção do exato montante da pensão, tal como fixado por ocasião da passagem à reforma. Sobretudo porque o nosso sistema é um sistema de benefício definido, em que se garante a cada pensionista uma taxa fixa de substituição sobre os vencimentos de referência.
E isso reflete-se também na tutela do investimento na confiança, que, sem dúvida, é de presumir ter existido por parte do titular do direito, e que decorre, não propriamente do facto de o pensionista ter efetuado contribuições enquanto trabalhador ativo – já que o nosso sistema é financiado por repartição e não por capitalização – mas da circunstância de, contando com o caráter definido do benefício, poder não ter sentido, justificadamente, a necessidade de se precaver por outras formas quanto a uma possível perda de rendimentos».
As expectativas merecedoras de tutela são, assim, obviamente mais fortes no caso dos pensionistas que já são beneficiários de uma pensão atribuída com base nas regras definidas no momento relevante do cálculo da mesma, ou seja, na altura da passagem à situação de aposentação.
35. É inequívoco que os destinatários das normas questionadas são titulares de um direito à pensão já constituído e consolidado na sua esfera jurídica e que dispõem de expectativas legítimas de receberam mensalmente o montante da pensão a que têm direito.
E o Estado, no exercício da função legislativa, ao longo do tempo foi impulsionando e enraizando a ideia de segurança e confiança na manutenção, e até atualização, do quantum de pensão que foi fixado na «resolução final» que lhe reconheceu o direito à pensão (cfr. artigo 97.º do Estatuto da Aposentação).
Pela evolução do regime de pensões, verifica-se que o legislador, sempre que interveio nesse regime, em sentido mais desfavorável aos subscritores e pensionistas, quer quanto às condições de aposentação quer quanto à fórmula de cálculo, teve o cuidado de salvaguardar as situações jurídicas, seja em formação seja já constituídas.
As quatro leis de bases gerais do sistema de segurança social publicadas ao abrigo do artigo 63.º da CRP estabeleceram sempre um princípio da salvaguarda dos direitos adquiridos e em formação: «o desenvolvimento e a regulamentação da presente lei não prejudicam os direitos adquiridos, os prazos de garantia vencidos ao abrigo de legislação anterior, nem os quantitativos de pensões que resultem de remunerações registadas na vigência daquela legislação» (cfr. artigos, 73.º da Lei n.º 24/84, de 14 de agosto; 104.º da Lei n.º 17/2000, de 8 de agosto; 121.º da Lei 32/2002, de 20 de dezembro; 100.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro).
E esse princípio sempre foi respeitado na sucessiva legislação que gradualmente foi impondo condições mais gravosas para os subscritores e beneficiários do sistema providencial da CGA.
O primeiro diploma que na prática fez diminuir a taxa de substituição das pensões desse sistema foi a Lei n.º 1/2004, de 15 de janeiro, que deduziu à remuneração relevante para o cálculo da pensão a percentagem de quota para efeitos de aposentação e de sobrevivência, o que originou uma redução de 10%, com reflexos inevitáveis no valor da pensão em igual medida. A taxa de substituição, que traduz a relação existente entre o valor da primeira pensão e o valor da última remuneração, viu-se assim reduzida de 100% para 90%. Mas, a fim de se proteger as expectativas jurídicas dos pensionistas e subscritores que à data reuniam as condições legalmente exigidas para a concessão de aposentação, essa redução de 10% não lhes foi aplicada.
De igual modo se verificou com a introdução da nova fórmula de cálculo das pensões, constante do artigo 5.º da Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro, que foi composta por duas parcelas, uma para o tempo de serviço prestado até 31 de dezembro de 2005 (P1) e outra para o tempo posterior a essa data (P2), precisamente para assegurar os direitos e expectativas das carreira contributivas já consolidadas. Acresce que o artigo 7.º dessa Lei não deixou de ressalvar a aplicação do regime anterior a quem à data reunia a condições de aposentação.
E o mesmo ocorreu com a aplicação de fator de sustentabilidade no cálculo da pensão, com a fixação do limite máximo de pensão, correspondente a 12 vezes o indexante dos apoios sociais (Lei n.º 52/2007, de 31 de agosto) e com o reporte a 31 de dezembro de 2005 da remuneração de referência da P1, em substituição da última remuneração (Lei n.º 66-B/2012, de 20 de dezembro). Em todas estas situações de agravamento do montante da pensão, o legislador criou direito transitório, que inseriu nos respetivos diplomas, estatuindo que as pensões que estivessem a ser abonadas à data da sua entrada em vigor não sofreriam qualquer redução de valor.
E no que se refere propriamente ao «regime de proteção social convergente», onde se incluem os destinatários das normas questionadas, o n.º 4 do artigo 29.º da Lei n.º 4/2009, de 29 de janeiro, relativo à regulamentação da convergência, vincula o legislador a manter o “nível de proteção” existente antes da convergência: «a regulamentação referida no n.º 2, prevê se, em casos concretos, e em qualquer das eventualidades, dela resultar nível de proteção inferior ao assegurado pelo regime de proteção social da função pública anteriormente em vigor, é mantido esse nível de proteção através da atribuição de benefícios sociais pela entidade empregadora». Esta norma estabelece um limite material ao poder do legislador de modificar em sentido regressivo a regulamentação protetora existente na função pública, um verdadeiro mecanismo de «standstill» que se opõe à modificação dos direitos sociais em forma de regressão.
Mas também os chamados “direitos em formação” foram sempre tidos em conta, através da previsão de regimes transitórios ou de entrada em vigor gradual. Assim, por exemplo, quando a lei estabeleceu condições mais gravosas para o acesso à aposentação ordinária e antecipada, convergindo com o regime geral quanto à idade (que passou de 60 para 65 anos) e ao tempo de serviço (que passou de 36 para 40 anos), fê-lo de forma progressiva ao longo de 10 anos, aumentando 6 meses em cada ano, de modo a atenuar a frustração das expectativas de quem estava próximo de reunir as condições legais para aposentação a coberto do anterior regime. O regime de transição originariamente estabelecido na Lei n.º 60/2005 de 29 de dezembro criou expectativas no sentido de que seria essa a forma de transição para a convergência a realizar no futuro.
Assim, a convergência dos sistemas de proteção tem vindo a ser efetuada de forma gradual, com salvaguarda das posições jurídicas já constituídas e em formação, prevendo-se inclusive períodos de transição entre regimes sucessivos com alguma dilação temporal e mantendo sempre intocadas as pensões já atribuídas. Ora, com este modo de alteração do regime de aposentação, o Estado, nomeadamente o legislador, encetou comportamentos capazes de gerar nos pensionistas «expectativas» fortes, fundadas em boas razões de que o quantum de pensão não seria diminuído.
36. Os visados pelo artigo 7.º do Decreto n.º 187/XII são os pensionistas que foram inscritos na CGA (o que sucedeu até 1993), e entretanto aposentados. Trata-se, assim, de um grupo de destinatários muito específico – os atuais pensionistas beneficiários de pensões da CGA já em pagamento. As pessoas que compõem o universo dos afetados com a medida estão em situação de especial vulnerabilidade, já que, devido à sua saída da vida ativa, não possuem a mesma facilidade de readaptação a condições económicas mais exigentes. De facto, face a um decréscimo do rendimento que até então auferiam, os destinatários destas medidas estão, nomeadamente pela idade avançada ou pela incapacidade, impedidos de refazer as condições de vida, ou de obter fontes de rendimento complementares. Isso mesmo foi reconhecido no Acórdão n.º 369/97 e reafirmado no Acórdão n.º 187/2013: “ a passagem à situação de reforma e a dependência dos sistemas de pensões constituem frequentemente um importante fator de vulnerabilização e de precarização da vida das pessoas idosas”.
O mesmo se pode dizer, de resto, no que toca às pensões de invalidez e de sobrevivência. Também as pessoas abrangidas por essas pensões não estão em condições de se adaptar a uma mudança do montante das mesmas, e do qual dependem.
Ora, os destinatários da medida em causa têm vindo, desde o momento da reforma, a gerir o seu dia a dia com base num determinado rendimento, que tinham para si como um rendimento fixo, já que o nosso sistema atual é baseado no sistema de benefício definido, em que se garante a cada pensionista uma taxa fixa de substituição sobre os vencimentos de referência (cfr. Acórdãos n.ºs 353/12 e 187/2013). Tendo em conta esse rendimento fixo, e acreditando na estabilidade do mesmo, os pensionistas poderão mesmo ter assumido diversos compromissos que se podem tornar inviabilizados com tal medida, deixando-os assim na impossibilidade de cumprir os mesmos.
E perante a sucessiva legislação que aumentou a idade de reforma, o período contributivo e as regras de cálculo de pensão, com salvaguarda de direitos, enquanto subscritores e futuros beneficiários, os atuais pensionistas também puderam fazer planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade de um determinado regime que julgavam mais favorável. É razoável aceitar que a confiança na manutenção de um determinado regime legal pode ter sido determinante na opção irreversível que fizeram pela aposentação numa determinada data. Quem, por exemplo, fez a opção pela antecipação da aposentação, sujeitando-se a uma taxa de redução de 4,5% e 6% sobre cada um dos anos em falta para a idade legalmente prevista, certamente confiou que a pensão mensal vitalícia que iria receber não sofreria mais reduções; e quem, reunindo as condições para tal, optou pela aposentação para beneficiar da taxa de substituição relativamente à remuneração relativa ao tempo de serviço prestado até 2005 (P1), por certo que também se sentirá injustiçado por ver que lhe alteraram as regras de cálculo da almejada pensão. De igual modo, não custa admitir que as expectativas fundadas em comportamentos positivados do Estado, no sentido da continuidade da forma de cálculo da pensão vigente à data da aposentação, tenha sido determinante na não opção de investimento em sistemas de proteção complementar, precisamente porque julgaram legitimamente que os rendimentos que aufeririam seriam suficientes para sustentar o nível de vida pretendido e as obrigações económicas e financeiras entretanto assumidas.
37. Neste contexto, a redução das pensões operada através do artigo 7.º do Decreto n.º 187/XII é uma medida regressiva que mina a confiança legítima que os pensionistas têm na manutenção do montante de pensão que foi fixado com base na legislação vigente à data em que se aposentaram. A garantia da manutenção do montante de pensão foi logo afirmada no momento em que a pensão foi fixada pela resolução final da CGA, a qual regulou «definitivamente» o direito à pensão e o seu montante e, como referimos, continuou assegurada nas sucessivas modificações e limitações do regime de cálculo das pensões, nas quais foram dados sinais claros e expressos em letra de lei de que o montante da pensão se manteria intangível.
Nas reformas destinadas à convergência do regime geral da segurança social com o regime de proteção social da função pública, o direito à pensão em pagamento foi sempre salvaguardado, criando o Estado expectativas de que os chamados “direitos adquiridos” não seriam afetados. Daí que os pensionistas, embora possam contar com nova atividade legislativa na matéria, não possam legitimamente esperar medidas avulsas que abruptamente interfiram nas posições jurídicas já consolidadas e que, na terminologia dos Acórdãos n.ºs 187/2013 e 396/2011, contrariam a “normalidade anteriormente estabelecida”.
Acresce que a confiança que os pensionistas depositam no sentido de inalterabilidade das regras que serviram de base ao cálculo da pensão e do valor da pensão que foi fixado no momento da aposentação resulta também da natureza contributiva do sistema previdencial. Mesmo que não exista uma correlação direta entre a contribuição paga e o valor da pensão a atribuir, como acima se referiu, o direito à pensão não só pressupõe o cumprimento da obrigação contributiva, como também constitui uma prestação de substituição do rendimento de trabalho (cfr. artigos, 50.º e 54.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, e 12.º e 22.º, n.º 2, da Lei n.º 4/2009, de 28 de janeiro).
Nessa medida, o subscritor efetua descontos sobre o vencimento tendo em vista uma pensão cujo valor reflete proporcionalmente as remunerações que constituíram a base de incidência contributiva. E daí que se entenda que o direito a um certo montante de pensão, que foi formado em função de determinada remuneração mensal, tenha que ter uma proteção de especial densidade. Se também é uma contrapartida do valor pago ao longo da carreira contributiva, sem o qual não se teria formado, mais se acentuam os valores da estabilidade, confiança, continuidade e segurança jurídica que devem garantir a pensão validamente adquirida e consolidada. De facto, e como referiu o Acórdão n.º 474/2013 em relação à 'preservação do emprego”, também no contexto da perspetivação do direito à pensão se pode afirmar que “dificilmente se encontra grau de investimento pessoal superior àquele que incide sobre a preservação do trabalho, valor essencial para a (…) obtenção de condições de existência ao sustento próprio e do agregado familiar” – na vida ativa e também depois dela, acrescenta-se agora.
38. Cumpre agora avaliar se a diminuição do valor das pensões dos beneficiários da CGA estatuída no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto n.º 187/XII é justificada, à luz do princípio da proteção da confiança, pelo interesse público prosseguido por tal medida.
Não é esta a primeira vez que o Tribunal procede à ponderação entre os direitos e expetativas de pensionistas e as necessidades de imposição de sacrifícios financeiros. Com efeito, no seu Acórdão n.º 187/2013, o Tribunal teve de analisar uma medida de redução do valor de pensões já atribuídas à luz do princípio da proteção da confiança, considerando o seguinte:
« As razões de interesse público a que aí [- no Relatório do Orçamento do Estado para 2013 -] se pretendia aludir radicam, por outro lado, nas conhecidas dificuldades de conjuntura económico-financeira e na necessidade de adoção de medidas de consolidação orçamental, de que – segundo se afirma – depende a própria manutenção e sustentabilidade do Estado Social.
No plano de análise em que nos colocamos, tudo ponderado, face à excecionalidade do interesse público em causa e o caráter transitório da medida, pode ainda entender-se, no limite, que a supressão de 90% do subsídio de férias aos pensionistas não constitui uma ofensa desproporcionada à tutela da confiança, justificando-se uma pronúncia no sentido de não desconformidade constitucional por referência a esse parâmetro de aferição.» (pág. 39)
Estas razões, todavia, não procedem no caso vertente.
Desde logo, porque, como mencionado, a consolidação orçamental plasmada no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto n.º 187/XII vem reportada exclusivamente a uma parte do sistema público de pensões – ao regime previdencial da CGA -, e não ao sistema público de pensões ou ao Estado social globalmente considerado. Consequentemente, é a proteção da confiança de certos pensionistas – aqueles que são afetados - que tem de ser considerada e confrontada com a posição dos demais pensionistas. Por outro lado, a medida ora em análise não é temporária, mas antes de duração indefinida, uma vez que a respetiva reversibilidade, embora admitida, se encontra dependente da evolução favorável de variáveis macroeconómicas diretamente relacionadas com o aumento da capacidade de financiamento do défice estrutural do sistema de pensões da CGA por via de transferências do Orçamento do Estado (cfr. o artigo 7.º, n.º 6 e 7, do Decreto n.º 187/XII).
39. A questão que o quarto “teste” ou “requisito” da metódica aplicativa do princípio da proteção da confiança suscita no caso sub iudicio é a de saber se o interesse público na diminuição das transferências do Orçamento do Estado em vista do financiamento do défice estrutural da CGA – pois é nisto que se cifra a consolidação orçamental operada pelo artigo 7.º, n.º 1, do Decreto n.º 187/XII - justifica a redução das pensões dos beneficiários da mesma CGA.
E a resposta não pode deixar de ser negativa, fundamentalmente por duas ordens de razões.
Em primeiro lugar, porque, em virtude de opção político-legislativa – aliás não contrariada no Decreto n.º 187/XII -, o sistema de pensões da Caixa foi fechado a novas inscrições a partir de 1 de janeiro de 2006 (cfr. o artigo 2.º da Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro). Consequentemente, a partir dessa data, o «ónus da insustentabilidade financeira» de tal sistema a que se refere a exposição de motivos deixou de poder ser imputado apenas aos seus beneficiários, atuais ou futuros; tal ónus foi assumido, desde a referida data, coletivamente, como um dos custos associados à convergência dos regimes previdenciais no âmbito do sistema público de segurança social. É por isso que, em derrogação do princípio estabelecido no artigo 90.º, n.º 2, da Lei n.º 4/2007, 16 de janeiro (a Lei de Bases da Segurança Social) - concretizado no Decreto-Lei n.º 367/2007, de 2 de novembro -, se prevê, relativamente ao regime da Caixa, o cofinanciamento de prestações como as pensões de aposentação e de sobrevivência mediante “transferências do Orçamento do Estado” (cfr. o artigo 22.º, n.º 3, da Lei n.º 4/2009, de 29 de janeiro).
Com efeito, um sistema previdencial fechado à inscrição de novos subscritores, a médio e longo prazo deixa de ser um sistema autofinanciado e autossustentado. É que a relação entre o número de subscritores e o número de beneficiários vai decrescendo à medida que aqueles se aposentam, até se chegar à situação limite de inexistência de subscritores. O decréscimo contínuo desta taxa de dependência acaba por se traduzir no financiamento da Caixa por transferências do Orçamento de Estado, com a consequente transformação do regime contributivo num regime não contributivo. O horizonte para um sistema destes nunca poderá ser a autossustentabilidade, precisamente porque há certeza de que o sistema tem que ser financiado externamente. Neste sistema, fechado a novos subscritores, a redução de pensões não é uma medida que por si só tenha capacidade para salvaguardar a sustentabilidade do sistema. Com efeito, o autofinanciamento da CGA já está comprometido com a insuficiência das quotizações para pagar as pensões existentes no momento do seu pagamento e não é a redução de pensões que o vai salvar. A redução de pensões não é uma medida com virtualidade para garantir a sustentabilidade de um sistema que, por ser fechado, é em si mesmo insustentável a médio e longo prazo. Com tal característica, o sistema tem que recorrer necessariamente aos impostos ou a formas de financiamento por capitalização, pois o recurso a técnicas de repartição, em que as receitas atuais financiam as despesas com os atuais pensionistas, já não pode garantir a sua sustentabilidade.
Em segundo lugar, e decisivamente, não podem sacrificar-se exclusivamente os direitos dos pensionistas da CGA em função das invocadas razões de consolidação orçamental, já que é legítimo que os pensionistas de qualquer um desses dois regimes se considerem titulares de um direito à pensão com igual consistência jurídica: do ponto de vista constitucional, os pensionistas de um ou outro dos dois sistemas são tão-somente pensionistas do Estado, competindo a este garantir o sistema para cujo financiamento aqueles contribuíram nos termos legalmente exigidos; tanto mais que o sistema de segurança social garantido pelo Estado deve ser um sistema unificado (cfr. o artigo 63.º, n.º 2, da CRP). Isso mesmo foi assumido na exposição de motivos quando se refere que os dois regimes previdenciais são «na sua essência, públicos, pois foram instituídos, são geridos e garantidos financeiramente pelo Estado, enquadram-se no 1.º pilar de proteção social, isto é, asseguram o grau de proteção com prestações substitutivas de rendimentos do trabalho, e têm natureza legal, dado que a sua configuração é moldada unilateral e imperativamente pelo legislador, diversamente do que sucede nos regimes complementares e na poupança individual, que têm fonte convencional ou contratual»
Deste modo, eventuais desigualdades ao nível da disciplina legal dos dois regimes públicos vindas do passado e com reflexos financeiros no presente não podem ser corrigidas apenas em função das dificuldades de um desses regimes e com sacrifício exclusivo dos direitos constituídos dos respetivos beneficiários.
Sendo necessário – e o Tribunal não discute essa necessidade - alargar o «ónus da insustentabilidade financeira do sistema» - sistema entendido, neste contexto, como qualquer uma ou ambas as componentes do sistema público de pensões que ao Estado cabe organizar e garantir de harmonia com a Constituição e a Lei de Bases da Segurança Social - aos atuais beneficiários, procedendo a reduções e recálculos de pensões já atribuídas, as soluções a equacionar não podem deixar de ser perspetivadas em termos do sistema público globalmente considerado, exigindo respostas que salvaguardem a justiça do mesmo sistema, tanto no plano intrageracional como no plano intergeracional.
Soluções sacrificiais motivadas por razões de insustentabilidade financeira dirigidas apenas aos beneficiários de uma das componentes do sistema, designadamente aquelas que são preconizadas no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto n.º 187/XII, são, por isso, necessariamente assistémicas ou avulsas e enfermam de um desvio funcional: visam fins – evitar, com o sacrifício exclusivo dos pensionistas da CGA, o aumento das transferências do Orçamento do Estado – que não se enquadram no desenho constitucional de um sistema público de pensões unificado. O critério enformador de tais soluções – a «convergência», entendida como reposição de alguma igualdade, nomeadamente ao nível da «taxa de substituição» – é objetivamente contraditório com a legitimidade e as boas razões da confiança anteriormente criada a tais beneficiários no tocante à continuidade do valor das pensões que lhes foram atribuídas.
40. Tanto mais que não se afigura que as normas questionadas conduzam a uma efectiva e real convergência: a redução em 10% das pensões atribuídas de acordo com o regime de cálculo do Estatuto da Aposentação e o recálculo da primeira parcela da pensão correspondente ao tempo de serviço prestado até 31 de agosto de 2005 através da substituição da remuneração inicialmente considerada pela percentagem de 80%, em relação às pensões fixadas com base na fórmula definida pela Lei n.º 60/2005, não configura uma estrita medida de convergência de pensões.
Até ao momento, a convergência de pensões em vista ao estabelecimento de um regime unitário de segurança social foi essencialmente instituída pelo Decreto-Lei n.º 286/93, de 20 de agosto, que determinou que a pensão de aposentação dos subscritores da CGA inscritos a partir de 1 de setembro de 1993 passasse a ser calculada nos termos das normas legais aplicáveis ao cálculo das pensões dos beneficiários do regime geral da segurança social e pela falada Lei n.º 60/2005, que, para além de ter determinado a inscrição obrigatória no regime geral da segurança social do pessoal com vínculo de relação de emprego público que tenha iniciado funções a partir de 1 de janeiro de 2006 (artigo 1.º), pretendeu efetuar uma aproximação gradual das condições de aposentação dos subscritores da CGA ao estabelecido no regime geral (artigo 3.º) e passou a efetuar o cálculo da pensão de aposentação para os subscritores inscritos até 31 de agosto de 1993 (que ainda se regiam pelo Estatuto da Aposentação) com base na conjugação de duas parcelas em que se considerava, de um lado, o regime do Estatuto da Aposentação em relação ao tempo de serviço prestado até 31 de dezembro de 2005, e, de outro, o regime aplicável no âmbito do subsistema previdencial da segurança social relativamente ao tempo de serviço posterior (artigo 5.º). Ainda nesse plano releva a introdução, no cálculo da pensão de aposentação, do fator de sustentabilidade correspondente ao ano de aposentação, através da nova redação dada ao artigo 5.º da Lei n.º 60/2005 pela Lei n.º 52/2007, de 31 de agosto.
E não pode deixar de reconhecer-se que qualquer desses diplomas tem o efeito prático de aproximar o regime de proteção social da função pública ao regime geral da segurança social, no que respeita às condições de aposentação e ao cálculo das pensões, mesmo em relação àqueles trabalhadores da Administração Pública que, tendo-se inscrito na CGA antes de 31 de agosto de 1993, ainda beneficiavam da aplicação do regime específico previsto no Estatuto da Aposentação.
Ao contrário, a medida implementada pelo Decreto agora em apreciação, seja através da redução da pensão, seja por efeito do recálculo de uma parcela da pensão, apenas pretende efetuar uma equiparação nominal entre a parte da remuneração mensal relevante para o cálculo da pensão de aposentação (nos casos que ainda se regem pelo Estatuto da Aposentação e/ou pelo disposto no artigo 5.º da Lei n.º 60/2005) e a taxa global de formação da pensão dos beneficiários da segurança social, que é igual ao produto da taxa anual de formação da pensão (que varia entre 2% e 2,3%) pelo número de anos civis relevantes, no máximo de 40 anos (artigos, 30.º e 31.º do Decreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de maio).
Nada permite concluir, no entanto, que a equiparação da percentagem da remuneração relevante para o cálculo da pensão contribua para promover a igualação de pensões a atribuir a subscritores do regime de proteção social da função pública e do subsistema previdencial da segurança social e eliminar as disparidades entre os dois diferentes regimes de segurança social.
Desde logo, as pensões efetivamente atribuídas em cada um dos casos não são objeto possível de comparação, porque historicamente sempre foram aplicados aos dois regimes critérios diferenciados de cálculo das pensões que ainda hoje persistem nos seus efeitos práticos.
No regime geral de segurança social, a primeira reforma de grande amplitude que pretendeu reformular o método de cálculo das pensões foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329/93, de 25 de setembro (ainda na vigência da Lei de Bases do Sistema de Segurança Social, aprovada pela Lei n.º 24/84, de 28 de agosto), que preconizou, entre outras medidas, que fosse tomado em consideração «um maior período de carreira contributiva (10 melhores anos dos últimos 15), com vista a que a remuneração de referência exprimisse de forma mais ajustada o último período de atividade profissional» (n.º 7 do preâmbulo e artigo 33.º, n.º 1).
O regime de determinação dos montantes das pensões, dentro do quadro definido pelo Decreto-Lei n.º 329/93, só foi posto em causa pela Lei n.º 17/2000, de 8 de agosto, que, em termos inovadores, passou a ditar que «o cálculo de pensões de velhice deve, de um modo gradual e progressivo, ter por base os rendimentos de trabalho, revalorizados, de toda a carreira contributiva» (artigo 57.º, n.º 3). Esta disposição foi depois regulamentada pelo Decreto-Lei 35/2002, que produzia efeitos desde 1 de janeiro de 2002 (artigo 23.º), que, «tendo em vista a salvaguarda dos direitos adquiridos e de direitos em formação, nos termos, aliás, previstos nos artigos 59.º e 104.º da Lei n.º 17/2000», veio garantir aos beneficiários cuja carreira contributiva ficou exposta a esta sucessão dos regimes jurídicos o montante de pensão que lhes seja mais favorável.
E, desse modo, em relação aos beneficiários que se tivessem inscrito até 31 de dezembro de 2001 e que tivessem completado o prazo de garantia (5 anos para pensões de invalidez e 15 anos para pensões de velhice) ou cuja pensão tenha início entre 1 de janeiro de 2002 e 31 de dezembro de 2016 – e, portanto, em relação a beneficiários que já integravam o sistema à data em que foi introduzida a alteração da fórmula de cálculo das pensões – foi atribuído o montante da pensão mais elevado que resultasse ou da aplicação das regras de cálculo previstas no Decreto-Lei n.º 329/93, ou da aplicação das regras de cálculo previstas no Decreto-Lei n.º 35/2002, ou da aplicação proporcional das regras de cálculo de um e outro desses diplomas (artigos, 12.º e 13.º).
Entretanto, o Decreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de maio, em execução da Lei de Bases da Segurança Social de 2007 (Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro), concretiza a aceleração da transição para a nova fórmula de cálculo das pensões, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 35/2002, de 19 de fevereiro, através da eliminação da garantia da atribuição da pensão mais favorável, em relação aos contribuintes que fiquem abrangidos pelos sucessivos regimes de cálculo, e por via da aplicação, em substituição, de uma fórmula proporcional que permite entrar em linha de conta com as antigas e as novas regras de cálculo e em que intervém um aumento progressivo do peso relativo da carreira contributiva no apuramento do montante da pensão (artigo 33.º). Ao mesmo tempo que introduz um mecanismo de limitação das pensões de montante elevado, tendo em vista uma maior moralização do sistema, e que não é mais do que um fator de correção da parcela de pensão que deva ser calculada ainda segundo as antigas regras do Decreto-Lei n.º 329/93 (artigo 101.º).
Como é de concluir, a determinação do montante da pensão, no regime geral de segurança social, através da remuneração de referência que represente o total das remunerações de toda a carreira contributiva – em consonância com o princípio da contributividade – apenas se tornou integralmente aplicável aos contribuintes inscritos a partir de 1 de janeiro de 2002, sendo que em relação a beneficiários que já se encontrassem inscritos a essa data, de modo a ressalvar direitos adquiridos e direitos em formação, o legislador sempre instituiu cláusulas de salvaguarda e regimes mais favoráveis de transição, que ainda se mantêm em vigor.
Não pode ignorar-se que o regime precedente (decorrente do Decreto-Lei n.º 329/93), independentemente das situações de manipulação deliberada do cálculo do montante da pensão, propiciava objetivamente a obtenção de pensões mais elevadas através do aproveitamento, para efeito do cálculo do montante da pensão, do período contributivo mais favorável da fase final da atividade profissional, e permitia a uma categoria de contribuintes obter pensões de valor elevado que não tinham correspondência com os rendimentos médios declarados ao longo da carreira contributiva.
E isso era particularmente evidente em relação aos titulares de órgãos das pessoas coletivas (cujo enquadramento no regime geral da segurança social foi regulado pelo Decreto-Lei n.º 327/93, de 25 de setembro), que estavam dispensados de contribuir para a segurança social em função das remunerações efetivamente auferidas, podendo limitar-se a satisfazer a sua obrigação contributiva tomando como base de incidência um limite mínimo correspondente ao valor da remuneração mínima mensal mais elevada garantida por lei à generalidade dos trabalhadores (artigo 9.º, n.º 1) e poderiam proceder ao pagamento de contribuições com base no valor real das remunerações apenas na fase final da sua atividade profissional (artigo 11.º).
Este desfasamento entre a carreira contributiva e o montante da pensão, no âmbito do regime geral da segurança social, é especialmente reconhecido no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 35/2002, onde se afirma que a «alteração legislativa assenta num pressuposto de justiça social e reflete uma dupla preocupação: por um lado, pretende-se que a pensão reproduza com maior fidelidade as remunerações percebidas ao longo de uma vida profissional e intenta-se, por outro, também numa ótica de equilíbrio financeiro do sistema, a eliminação das situações de manipulação estratégica do valor das pensões, ainda permitida pelas regras de cálculo [...] vigentes e que favorecem sobretudo aqueles que, podendo aceder ao conhecimento das regras de funcionamento do sistema, as utilizam para revelar, fidedignamente, apenas os valores das remunerações nos últimos 15 anos da sua carreira».
Foi, pois, o Decreto-Lei n.º 35/2002, cujo regime foi aprofundado pelo Decreto-Lei n.º 187/2007, que intentou uma alteração estruturante do regime geral de segurança social, com base em razões de justiça social e de sustentabilidade financeira, visando assegurar que a pensão reproduza com maior fidelidade as remunerações auferidas ao longo da vida profissional (quanto à evolução legislativa do regime de cálculo das pensões de reforma no regime geral da segurança social, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 188/2009) .
Em contraposição, no sistema da CGA, os subscritores teriam de contribuir com uma quota, em determinada percentagem fixada legalmente, do total da remuneração que competir ao cargo exercido (artigo 5.º do Estatuto da Aposentação) e a pensão de aposentação tinha por base a remuneração mensal relevante - deduzida da quota para efeitos de aposentação, a partir da alteração introduzida pela Lei n.º 1/2004, de 15 de janeiro (artigo 53.º) -, pelo que sempre operou, nesse domínio, uma tendencial correspectividade entre as quotizações dos trabalhadores, com incidência sobre as remunerações efetivamente auferidas, e o direito às prestações, em aplicação de um rigoroso princípio de contributividade.
Neste contexto legislativo, a disparidade detetada relativamente à taxa de formação da pensão entre o regime de proteção social da função pública e o regime geral de segurança social, desligada de quaisquer outros elementos do sistema e da diferenciação existente quanto às fórmulas de cálculo das pensões, não é necessariamente demonstrativa de um benefício ou vantagem patrimonial na determinação do montante da pensão dos subscritores da CGA por comparação com os trabalhadores inseridos no regime geral da segurança social com o mesmo número de anos civis de registo de remunerações (em idêntico sentido, João Carlos Loureiro, Sobre a (in)constitucionalidade do regime proposto para a redução dos montantes de pensões de velhice da Caixa Geral de Aposentações, Coimbra, 2013, disponível em http://apps.uc.pt/mypage/fd loureiro (Escritos), em especial, a págs. 26 e ss.)
E nesse sentido, a igualação da taxa de formação da pensão, considerada isoladamente, não pode ser vista como uma medida estrutural de convergência de pensões nem tem qualquer efeito de reposição da justiça intergeracional ou de equidade dentro do sistema público de segurança social. Representa antes uma mera medida avulsa de redução de despesa, através da afetação dos direitos constituídos dos pensionistas da CGA, destinada a minorar o desequilíbrio orçamental do sistema de proteção social da função pública e que é motivada, em última análise, pela própria opção legislativa de não admissão de novos subscritores na CGA, com a consequente e inevitável impossibilidade de autofinanciamento do sistema.
41. Para além disso, a invocada «convergência» de pensões, entendida como um modo de reposição de igualdade relativamente ao nível de pensões atribuídas no âmbito do regime geral da segurança social, não deixando de revelar alguma ambiguidade, não constitui um critério adequado para justificar a redução de pensões, porquanto objetivamente vem desvalorizar – ou mesmo negar – a solidez e as boas razões das expectativas de continuidade do valor das pensões pagas aos beneficiários da CGA.
A existência num determinado momento histórico de regimes jurídicos diversos quanto às condições e formas de cálculo da aposentação, por certo que resultou do reconhecimento de que havia fundamento material bastante que justificava a diferença. Não se pode considerar que o Estatuto da Aposentação e a disciplina jurídica que o complementava era uma legislação arbitrária, que não tinha sentido legítimo e fundamento sério e razoável. Os funcionários e demais agentes da Administração Pública que se aposentaram ao abrigo desse regime não podiam deixar de confiar que essas regras existiam para os “proteger” na velhice e na invalidez e tinham por objectivo último a concretização do direito fundamental à reforma (artigo 63.º, n.º 3, da CRP).
Se existia um regime diferenciado de cálculo da pensão, nomeadamente quanto à taxa de substituição, isso é imputado exclusivamente ao Estado, que sentiu a necessidade de assegurar de modo diverso a protecção na velhice e invalidez dos trabalhadores da Administração Pública. Aqui, o princípio da confiança torna-se particularmente relevante em conexão com a autorresponsabilidade do Estado, pois o aumento da previsão de confiança só pode ser imputado ao próprio comportamento do legislador. Os beneficiários atuais do regime da Caixa cumpriram todas as obrigações legais que lhes foram impostas em vista a poderem beneficiar da sua pensão; não podiam ter feito outra opção, pelo que agora não poderão ser só eles a suportar a diferença a pretexto da necessidade da reposição da igualdade.
Porém, é precisamente esse o resultado da aplicação de uma medida de redução e recálculo das pensões já atribuídas no âmbito do regime da Caixa. Mas, como referido, neste plano, a convergência não é invocável, uma vez que foi o próprio legislador que disciplinou toda a formação do direito à pensão dos atuais beneficiários do regime da Caixa. Por isso mesmo, a confiança destes relativamente à continuidade e idoneidade desses critérios legais não pode agora ser questionada pelo mesmo legislador, através de medidas desenquadradas de uma reforma estrutural do sistema de segurança social.
42. Acontece ainda que a salvaguarda da justiça do sistema, tanto no plano intrageracional como no plano intergeracional, exige que as soluções a equacionar sejam perspetivadas em termos do “sistema público global”, e não apenas no âmbito de um dos seus componentes. A circunstância da redução de pensões abranger apenas uma parte dos beneficiários do sistema social convergente – os inscritos antes de agosto de 1993 – isolada dos demais elementos que formam o sistema de segurança social, acaba por ser uma solução inadequada e potencialmente injusta perante o sistema.
Como resulta do disposto no n.º 2 do artigo 63.º da CRP, o direito à segurança social consubstancia-se na «garantia institucional» de um sistema segurança social, «público», «unificado» e «obrigatório», em que «os beneficiários não podem deixar de o integrar nem de fruir do sistema público, não estando na sua disponibilidade fazerem opting out» (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. pág. 815), cabendo ao Estado o papel de garante do sistema e da respetiva justiça e solvabilidade. O “sistema público” de segurança social caracteriza-se, assim, à luz da Constituição, como uma estrutura ordenada segundo um ponto de vista unitário, que se reconduz a um conjunto de princípios fundamentais enunciados no capítulo I da Lei de Bases.
Um dos princípios em que assenta o sistema de segurança social, entendido como um todo em si significativo e de existência assegurada, é o princípio da solidariedade ou responsabilização colectiva (artigo 8.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro). Embora com o concurso do Estado, a realização das suas finalidades é uma responsabilidade coletiva das pessoas entre si. Daí que, como já foi referido, seja natural que os pensionistas de qualquer um dos dois regimes acima referidos se considerem titulares de um direito à pensão com igual consistência jurídica: do ponto de vista constitucional, os pensionistas de um ou outro dos dois sistemas são «pensionistas do Estado» enquanto garante do sistema para cujo financiamento contribuíram nos termos legalmente exigidos e, bem assim, de um sistema de segurança social público que deve ser unificado (cfr. artigo 63.º, n.º 2, da CRP).
A solidariedade sistémica, por definição, representa os valores fundamentais da igualdade e justiça na construção do sistema de segurança social. Mas da sua força reguladora não resulta que as eventuais diferenças existentes no passado entre os regimes legais – e que ao tempo eram normais – devam ser combatidas ou “corrigidas” apenas em função das dificuldades de um desses regimes e com sacrifício exclusivo dos direitos já consolidados dos respetivos beneficiários. A solução adequada ao sistema, que se reconhece como justa, terá que ser referenciada à unidade do sistema e não apenas a uma das suas parcelas.
Na verdade, uma solução «isolada» e em contradição com o princípio da responsabilidade coletiva pelo sistema, não é uma solução adequada à unidade do sistema, nem é capaz de assegurar, só por si, a necessária equidade. É que não se pode obter uma solução globalmente justa através de um critério nominalmente igualitário, pois as diferenças de regimes jurídicos existentes em determinado momento foram ditadas pelas necessidades que, em face das circunstâncias existentes, o legislador sentiu dever proteger.
A medida em causa traduz-se numa medida avulsa, isolada, ad hoc, que se concretiza numa simples ablação abrupta do montante das pensões. Ela não se insere num contexto de reforma sistemática, não sendo enquadrada em medidas estruturais que se preocupem em assegurar, de forma transversal, o interesse da convergência a outros níveis. É uma medida que não visa apreender o sistema de proteção social na sua globalidade, perspetivando-o apenas de forma unilateral através da preocupação de corte imediato nas pensões atribuídas pela CGA.
Assim, a adoção da medida concreta não reveste um peso importante para efeitos da prossecução dos interesses públicos da sustentabilidade, do equilíbrio intergeracional e da convergência dos regimes de proteção social, já que esses interesses reclamam por reformas sustentáveis e duradouras no tempo, e não por medidas abruptas e parcelares, com efeitos também volatilizáveis. A prossecução destes interesses, pelo seu caráter estrutural, exige pois medidas pensadas num contexto global dos regimes de proteção social. Ora, as medidas legislativas que visem atingir esses objetivos devem ser ponderadas e concebidas dentro do próprio sistema como uma sua reforma estrutural, sob pena de não alcançarem os referidos desideratos e traduzirem-se apenas em reduções imediatas de despesa, que, face aos seus efeitos imediatos, pouco se adequarão a produzir efeitos de base.
43. A natureza assistémica da medida legislativa de redução do montante das pensões é ainda confirmada pela sua natureza dúbia. Por um lado, a “Exposição de Motivos” justifica-a como sendo uma medida que pretende contribuir para a reforma do sistema; por outro lado, as normas questionadas auto-intitulam-se temporárias, e são acompanhadas de medidas que, independentemente de serem ou não alcançáveis, visam a sua vigência transitória.
A chamada «cláusula de reversibilidade» enunciada nos n.ºs 6 e 7 do artigo 7.º Decreto n.º 187/XII parece justificar-se no mesmo princípio em que assenta a justificação da medida de redução de pensões. Nos termos dessas disposições, a cláusula é mobilizada quando em dois anos consecutivos se verificar cumulativamente: (i) crescimento nominal anual do PIB igual ou superior a 3%; (ii) saldo orçamental não inferior a -0,5% do PIB. A lógica da medida parece ser o princípio da sustentabilidade financeira do sistema previdencial público: a reversão da situação económica-financeira que determina a redução da pensão, transformará os atuais pensionistas em “credores prioritários” do sistema, compensando o sacrifício entretanto sofrido.
Simplesmente, a reversão para a antiga taxa de substituição está em contradição com o alegado caráter estrutural da medida: no caso de eventual melhoria da situação económica, o Estado desconsidera inteiramente a relevância dos interesses que afirmou com a medida de redução de pensões. Neste sentido, a redução de pensões é uma medida conjuntural para resolução de problemas imediatos de equilíbrio e consolidação orçamental e não uma medida que vise a sustentabilidade financeira da Caixa.
44. Uma outra circunstância que afeta e limita desmesuradamente a medida de confiança que os pensionistas têm na manutenção do montante da sua pensão mensal, quando ponderada com os interesses visados pelas normas questionadas, respeita ao modo como se pretende aplicar a redução de pensões.
O requerente argumenta que a transição de regimes acelera e consuma com efeitos imediatos (designada na doutrina por “one shot”) a convergência entre os dois sistemas, tendo como efeito um “encurtamento súbito” da projeção futura da vertente temporal da segurança jurídica dos pensionistas, o qual reclama um juízo de proporcionalidade que, à luz do critério da necessidade, recaia «sobre a exigência e a suficiência do direito que regule essa transição e sobre o nível de onerosidade do sacrifício».
No seu entender, será necessário verificar se a legitimidade constitucional da redução e recálculo das pensões dos atuais beneficiários não exigirá uma «norma de transição» que imponha a redução de pensões de forma suave e progressiva que confira aos pensionistas “tempo” e “fatores circunstanciais” que lhes permitam ajustar o plano das suas vidas às novas imposições sacrificiais.
Nesta construção argumentativa, o princípio da proteção da confiança projeta-se na exigência de disposições transitórias que salvaguardem os direitos e expectativas jurídicas dos pensionistas da «brusca» alteração do regime jurídico vigente quanto ao cálculo da pensão. Como refere Gomes Canotilho «no plano do Direito Constitucional, o princípio da proteção da confiança justificará que o Tribunal Constitucional controle a conformidade constitucional de uma lei, analisando se era ou não necessária e indispensável uma disciplina transitória, ou se esta regulou, de forma justa, adequada e proporcionada, os problemas resultantes da conexão de efeitos jurídicos da lei nova a pressupostos – posições, relações, situações – anteriores e subsistentes no momento da sua entrada em vigor (cfr. Direito Constitucional … cit, pág. 263).
O que o requerente questiona é se a aplicação imediata das normas que impõem a redução e recálculo de pensões constitui a «justa medida» entre o sacrifício do direito a um determinado valor de pensão e a vantagem por ela conseguida para os invocados interesses da sustentabilidade e da justiça intergeracional.
É evidente que as normas questionadas introduzem uma súbita e inesperada diminuição do valor das pensões numa situação jurídica que reclamava estabilidade. Mesmo que se admitisse que os interesses públicos visados pelas normas questionadas – a sustentabilidade financeira e o equilíbrio intergeracional – poderiam justificar a redução de pensões, nos termos impostos pelas normas questionadas, então as expectativas na manutenção daquela estabilidade imporiam que a transição fosse feita com moderação, para que os pensionistas tivessem tempo de ajustar os seus projetos de vida às novas regras. É que os destinatários dessas normas são titulares de direitos com tutela reforçada, cujo âmbito não pode ser restringido sem lhes dar um tempo adequado para ajustarem os planos das suas vidas a medidas com as quais legitimamente não contavam.
Quer dizer: mesmo medidas susceptíveis de satisfazer adequadamente os interesses públicos apontados exigiriam sempre, para uma justa conciliação com as expectativas dos afectados, soluções gradualistas que atenuam o impacto das medidas sacrificiais, pois a sua aplicação abrupta, repentina e de forma inesperada, ultrapassa a medida de sacrifício que o valor jurídico da confiança jurídica pode tolerar. Este aspecto é tanto mais de relevar quanto no passado todas as reformas legislativas acolheram disposições transitórias destinadas a consagrar os direitos em formação.
Nesta ponderação, não pode deixar de pesar a circunstância dos fins a prosseguir – nos termos expostos na exposição de motivos – constituírem interesses económicos de longo prazo que se confrontam com os interesses imediatos legalmente protegidos dos pensionistas. É que, enquanto a ótica da sustentabilidade financeira da segurança social é de médio e longo prazo, o direito à pensão vence-se todos os meses. Daí que, a diferente dimensão temporal do fim a atingir e do meio utilizado, exija, de per si, disposições transitórias que harmonizem em justa medida o sacrifício imposto com a redução da pensão e o benefício por ela prosseguido.
No juízo de ponderação que é imposto pela proteção da confiança, onde se confronta e valora a condição de pensionista, em princípio, sem possibilidade ou impossibilidade de regressar a uma vida ativa que permita recuperar o que lhe é retirado, com os referidos interesses públicos, que podem ser satisfeitos no horizonte mais alargado, a solução justa à luz do princípio da proporcionalidade imporia também que a implementação da medida se fizesse de forma gradual e diferida no tempo. Aplicá-la de uma só vez, seria ultrapassar, de forma excessiva, a medida de sacrifício que a natureza do direito à pensão poderá admitir.
45. Por tudo o exposto, é de concluir que a violação das expectativas em causa – especialmente relevantes, atento o facto de assentarem em pensões já em pagamento, e atento ainda o universo de pessoas abrangidas –, só se justificaria eventualmente no contexto de uma reforma estrutural que integrasse de forma abrangente a ponderação de vários fatores. Só semelhante reforma poderia, eventualmente, justificar uma alteração nos montantes das pensões a pagamento, por ser acompanhada por outras medidas que procedessem a reequilíbrios noutros domínios. Uma medida que pudesse intervir de forma a reduzir o montante de pensões a pagamento teria de ser uma medida tal que encontrasse um forte apoio numa solução sistémica, estrutural, destinada efetivamente a atingir os três desideratos acima explanados: sustentabilidade do sistema público de pensões, igualdade proporcional, e solidariedade entre gerações.
Com efeito, o questionamento dos direitos à pensão já constituídos na ótica da sustentabilidade do sistema público de pensões no seu todo e da justiça intergeracional não se opõe à redução das pensões. Tais interesses públicos poderão justificar uma revisão dos valores de pensões já atribuídas, visto que se conexionam com a alteração de circunstâncias – demográficas, económicas e financeiras – que transcendem as diferenças de regime entre os dois sistemas públicos de pensões existentes. Mas, também por isso, os critérios de revisão a observar terão de efetivamente visar recolocar num plano de igualdade todos os beneficiários dos dois sistemas, só desse modo se assegurando o respeito pela justiça intrageracional. Nessas circunstâncias, será o sistema e seus valores, designadamente a garantia da sua sustentabilidade e a sua equidade interna, a conferir sentido aos sacrifícios impostos aos respetivos beneficiários, desse modo justificando-os e legitimando-os à luz do princípio da tutela da confiança.
Em suma: a redução e recálculo do montante das pensões dos atuais beneficiários, com efeitos imediatos, é uma medida que afecta desproporcionadamente o princípio constitucional da proteção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plasmado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
III. Decisão.
Atento o exposto, o Tribunal decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade das alíneas a), b), c) e d) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto da Assembleia da República n.º 187/XII, com base na violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da CRP.
Lisboa, 19 de dezembro de 2013 – Lino Rodrigues Ribeiro – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Guerra Martins – Pedro Machete – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros (com declaração) José da Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita (com declaração) – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Maria Lúcia Amaral - Joaquim de Sousa Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votámos a inconstitucionalidade das normas contidas nas alíneas a), b), c) e d) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto n.º 187/XII mas com alcance e fundamento diferente do adotado no Acórdão.
1.1 Não acompanhamos o Acórdão quanto ao alcance da pronúncia de inconstitucionalidade, desde logo porque divergimos da utilização, no caso, do princípio da tutela da confiança como parâmetro determinante de controlo, sem uma análise autónoma centrada no princípio da proporcionalidade.
As normas em causa alteram, por redução ou recálculo, pensões de aposentação, de reforma e de invalidez, bem como de sobrevivência, atribuídas pela Caixa Geral de Aposentações, I.P., (CGA) fixando um limiar a partir do qual se prevê a sua aplicação: o valor mensal ilíquido superior a € 600. É nosso entendimento que aquelas normas apenas são inconstitucionais na parte em que atingem valores que, num juízo de normalidade, são integralmente alocados para fazer face a despesas obrigatórias e imprescindíveis à satisfação das normais necessidades e compromissos do pensionista – ultrapassando a medida razoável do sacrifício que pode ser exigido a estes cidadãos e atingindo excessivamente os mais desfavorecidos.
Atendendo aos seus efeitos sobre os pensionistas que auferem pensões menos elevadas, as normas em causa afiguram-se desproporcionadas (desrazoáveis), na sua dimensão subjetiva.
Nestes termos, sendo a fixação deste limiar desrazoável e tendo em conta a configuração global das normas que determina a sua aplicação em bloco a pensões atribuídas, a nossa pronúncia sobre a inconstitucionalidade não pode deixar de abranger a totalidade das normas em causa. Se as normas tivessem outra estrutura formal, o juízo poderia ser diferente.
1.2. Não acompanhamos também a fundamentação do Acórdão quanto à aplicação do princípio da tutela da confiança, especificamente no que respeita à identificação ali feita do interesse público invocado pelo legislador e à conclusão alcançada.
2. Num contexto de grave crise financeira assume particular acuidade a insustentabilidade do sistema público de pensões, de natureza contributiva, tendo em conta a insuficiência de meios financeiros necessários ao pagamento das atuais e futuras pensões, sendo já uma certeza que os futuros pensionistas não poderão auferir os valores processados nas atuais pensões. Neste contexto cabe ao Estado, em especial ao Estado-legislador, enquanto garante de um sistema de segurança social unificado, encontrar uma solução para o problema, que dependerá de uma opção sobre a distribuição de sacrifícios e benefícios que pertence primariamente ao legislador democraticamente legitimado.
Sendo assim, a questão essencial que se coloca ao juiz na apreciação da conformidade constitucional da solução normativa é a de saber se as implicações financeiras invocadas pelo legislador são suficientemente relevantes para justificar uma opção legislativa definidora de prioridades na distribuição dos recursos que, por serem escassos, pode afetar direitos individuais.
Na apreciação da conformidade constitucional de uma tal opção político-legislativa, cabe ao juiz, no respeito dos limites funcionais ditados pelo princípio da separação de poderes, analisar se a fundamentação seguida pelo legislador na definição de prioridades merece censura jurídico-constitucional.
3. Nesse âmbito, apesar de se perceber a convocação pelo Acórdão do princípio da tutela da confiança – na medida em que este princípio encontra uma vocação natural em sede de alterações legislativas, em geral, e do regime jurídico aplicável a pensões, em particular, e que foi este um dos parâmetros invocados no pedido – não se acompanha a ausência de valoração das normas em causa à luz de outros princípios constitucionais convocáveis, como o princípio da proporcionalidade. Este é um teste autónomo que deve ser aplicado autonomamente também no âmbito do direito da segurança social.
4. Em nosso entender as normas sindicadas são inconstitucionais na parte em que fixam o limiar inferior da aplicação das medidas de alteração das pensões abrangidas, por redução ou recálculo, no valor de € 600.
No percurso que nos leva a esta conclusão, afiguram-se relevantes os seguintes aspetos.
4.1. Em termos gerais, a qualidade dos destinatários das medidas – a qualidade de pensionista e titular do direito a uma pensão de aposentação, de reforma, de invalidez ou de sobrevivência, atribuída pela CGA.
4.1.1. No que respeita aos titulares do direito a uma pensão de aposentação ou de reforma e de invalidez releva, em geral, o facto de o rendimento de pensões constituir um rendimento substitutivo do rendimento do trabalho atribuído na eventualidade de velhice ou de invalidez.
Desde logo a qualidade de idoso que, em regra, coincide com a de aposentado ou reformado, bem como a de portador de invalidez, convocam uma especial necessidade de proteção quer por força da particular relevância constitucional conferida à proteção na velhice e das pessoas idosas – reiterada em catálogos de direitos transnacionais – e na incapacidade para o trabalho, quer pelas limitações e necessidades específicas inerentes a tais qualidades.
A Constituição da República Portuguesa (CRP), além de impor a proteção na velhice (cfr. artigo 63.º, n.º 3), confere, no seu artigo 72.º, particular relevância aos idosos que, naquela eventualidade, adquirem o direito prestacional à pensão, nos termos fixados por lei, e ao seu direito à segurança económica – relevância hoje também expressa no artigo 25.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) na parte em que prevê o direito das pessoas idosas a uma «existência condigna e independente» (na terminologia da CDFUE). De igual modo a CRP confere relevância constitucional à proteção das pessoas na situação de falta de capacidade para o trabalho (cfr. artigo 63.º, n.º 3, da CRP) – e, podendo haver coincidência de situações, também à proteção das pessoas portadoras de deficiência (cfr. artigo 71.º, n.º 1, da CRP), esta última reiterada em catálogos de direitos transnacionais (cfr. artigo 26.º da CDFUE).
Além disso, a qualidade de idoso e de portador de invalidez implica, em regra, limitações e necessidades específicas inerentes a tal qualidade.
Por um lado, em virtude dessa qualidade – de idoso ou de portador de invalidez –, a expectativa de retomar o exercício de uma atividade profissional passível de gerar rendimento a partir de outras fontes afigura-se reduzida ou inexistente quer por força das limitações, nomeadamente físicas inerentes à evolução da idade ou ao tipo de invalidez, quer por força das características do mercado de trabalho, público ou privado, que tenderá para a sua renovação em termos etários.
Por outro lado, a qualidade de idoso, tal como a de portador de invalidez, implicam limitações decorrentes da evolução da idade e do tipo de invalidez que determinou o direito à pensão. Ambas as situações - pela natureza das coisas ou em virtude da situação de invalidez – tendem a implicar uma menor autonomia e uma maior dependência de terceiros no desempenho das rotinas diárias e na vivência em geral – no segundo caso diretamente proporcionais ao tipo de invalidez verificado. E aquelas qualidades implicam também necessidades específicas, decorrentes em regra da evolução do estado geral, físico e psíquico, próprio da idade e do tipo de invalidez verificado e, ainda, em especial, de uma deterioração do estado de saúde própria da evolução etária, agravada muitas vezes por patologias várias, e das características próprias de cada situação de invalidez que se traduzem também numa maior dependência, muitas vezes total, de terceiros.
Tais limitações e necessidades específicas, por força da menor autonomia (ou sua ausência) e correlativa maior (ou mesmo total) dependência do auxílio de terceiros, corresponderão, em regra, a um conjunto de despesas – para além das despesas inerentes às necessidades básicas de subsistência (alimentação ou habitação) – acrescidas e constantes com impacto significativo no rendimento com origem na pensão – entre as quais avultam as despesas com a saúde, a assistência médica e medicamentosa, o acompanhamento por terceiros e com os lares cujo custo médio, admite-se, será em regra superior ao valor das pensões menos elevadas. Tome-se por padrão, a título indicativo, o «valor de referência» (utente/mês), para efeitos de «comparticipação familiar em lar de idosos», estabelecido nos sucessivos Protocolos de Cooperação (disponíveis em http://novo.cnis.pt) celebrados entre o Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social e a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (relativos a 2008, 2009 e 2010) bem como o «valor de referência» (utente/mês) para efeitos de «comparticipação familiar em estrutura residencial para pessoas idosas» estabelecido no Protocolo de Cooperação entre aquele Ministério e a União das Misericórdias Portuguesas, a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade e a União das Mutualidades Portuguesas (2013-2014): € 756,11 em 2008, € 775,77 em 2009, € 869,91 em 2010 (cláusulas 8.ª, n.º 4) e € 938,43 em 2013 (cláusula 9.ª, n.º 4) – valores de referência em muito (cerca de 26%, 29,2%, 44,9% e 56,4%, respetivamente) superiores ao limiar regra de aplicação das medidas de redução de pensões em causa.
4.1.2. No que respeita aos titulares do direito a uma pensão de sobrevivência releva, em geral, o facto de o rendimento de pensões constituir um rendimento parcialmente substitutivo do rendimento do trabalho, na eventualidade de morte do seu titular e subscritor, atribuído a elementos do respetivo agregado familiar (os herdeiros hábeis). Também em situações regra, a qualidade de herdeiro sobrevivo que determinou o recebimento da prestação social em causa (pensão de sobrevivência) convoca uma especial necessidade de proteção, por força da relevância constitucional conferida à proteção das pessoas no caso de viuvez e orfandade (cfr. artigo 63.º, n.º 3, da CRP). Acresce que a qualidade de (herdeiro hábil) sobrevivo pode convocar uma especial necessidade de proteção do agregado familiar do subscritor falecido, mormente nos casos em que o rendimento do trabalho deste constitua a principal ou mesmo a única fonte de rendimento do agregado familiar e não existam, de imediato, alternativas que permitam aos beneficiários da pensão de sobrevivência colmatar a perda de rendimento decorrente da morte do subscritor – em especial em razão da idade avançada do cônjuge sobrevivo e da idade escolar dos descendentes.
4.2. As medidas constantes das normas das alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto n.º 187/XII, por operarem a redução ou recálculo, consoante o caso, das diversas pensões abrangidas, têm por efeito imediato a redução do montante da pensão já atribuída e, assim, a afetação do direito ao recebimento de uma pensão de reforma, aposentação, invalidez ou sobrevivência e a correlativa redução do rendimento auferido para fazer face ao conjunto de práticas vivenciais comuns e necessidades específicas de cada uma das categorias de pensionistas visados pelas medidas.
Ora, no que respeita ao universo dos pensionistas afetados pelas medidas constantes daquelas alíneas a) a d) que auferem pensões menos elevadas, as medidas em causa não podem deixar de gerar um impacto significativo sobre a capacidade financeira de o respetivo titular fazer face à subsistência, a práticas vivenciais compatíveis com uma «existência condigna e independente» (na terminologia da CDFUE), com uma vida autónoma pós-laboral, bem como a encargos e compromissos assumidos em razão das suas limitações e necessidades específicas.
Afigura-se razoável supor que o segmento de pensionistas cujas pensões, por serem menos elevadas, é afetado pelas medidas em causa não dispõe de rendimento disponível ou dispõe de um rendimento disponível muito diminuto capaz de absorver ou fazer face à diminuição de rendimento que as medidas necessariamente implicam, por todo ou o essencial do montante das pensões ser alocado à satisfação de necessidades básicas inerentes à existência e a compromissos básicos que concorram para essa existência, como o custo da habitação, da alimentação, dos transportes e, em particular, da saúde, incluindo as despesas com lares – e porventura de outros custos derivados de outros direitos fundamentais – e de necessidades específicas em razão da sua qualidade. Com efeito, e de acordo com os dados do Inquérito às Despesas das Famílias 2010/2011 elaborado pelo INE (disponível em http://www.ine.pt) a despesa total anual média de um agregado (sem crianças dependentes) composto por 1 adulto idoso cifra-se em € 9.379 – a que corresponde uma despesa média mensal de € 781,58, em muito (cerca de 30%) superior ao limite regra de aplicação das medidas em causa e também superior ao valor mensal de referência para a determinação do mínimo de existência em termos de rendimento líquido de imposto previsto no artigo 70.º, n.º 1 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.
A diminuição do rendimento disponível no que respeita aos titulares de pensões menos elevadas pode, pois, implicar a afetação das práticas vivenciais e dos compromissos assumidos que garantam a sua segurança económica e a sua existência com independência em razão das suas necessidades específicas. Além do mais, pode pôr em risco a sua autonomia financeira e, por essa via, a sua dignidade – na medida em que a alteração da sua situação económica, por via da redução de uma pensão de valor menos elevado, determine a dependência, ou uma dependência acrescida, de terceiros e da componente assistencial do sistema de segurança social, bem como a diminuição da possibilidade de levar uma «existência condigna e independente» (na terminologia da CFDUE) que, indo além do limiar da mera subsistência, seja compatível com, e permita, um mínimo de satisfação de um conjunto de direitos inerentes à pessoa humana.
Ora, considerando a intensidade das consequências das medidas consagradas pelas normas sob apreciação na esfera pessoal dos pensionistas pelas mesmas afetados, inevitável será, portanto, concluir pela sua falta de razoabilidade, por excederem o que é tolerável no respeito da liberdade e autonomia individuais garantidas num Estado de Direito. Mesmo admitindo a relevância dos interesses invocados pelo legislador, globalmente considerados e a justificação por aquele apresentada de que a redução em 10% (ou o recálculo) do valor das pensões abrangidas corresponde à percentagem mínima da “diferença” entre o valor das pensões atribuídas pelo regime da segurança social face ao valor das pensões atribuídas pela CGA – o que permitiria aceitar a proporcionalidade das medidas, num mero controlo objetivo de relação meio-fim –, a convocação de uma dimensão aberta a razões atinentes à subjetividade dos visados conduz-nos necessariamente a um juízo de desproporção por excesso de sacrifício imposto aos pensionistas afetados. É excessivo pedir a quem aufere pensões de valores integralmente consumidos na satisfação das necessidades comuns a uma vivência normal, que contribua para o financiamento da sustentabilidade de uma das componentes do sistema público de pensões e, nessa medida, para o financiamento de pensões de outros.
4.3. Acresce referir que ainda que se possa admitir que o valor da percentagem, em absoluto, da redução do montante das pensões que as medidas preveem (10%, pelos motivos referidos) não se afigura muito elevado, quer os elementos de direito comparado apresentados pelo proponente das normas, quer a versão originária do Memorando de entendimento sobre as condicionalidades de política económica (datado de maio de 2011) no que respeita à redução de pensões, apontam para patamares de aplicação das medidas em causa superiores.
Com efeito, naquele Memorando, o n.º 1.11., ainda que no âmbito da Política Orçamental, previa uma medida de redução de pensões, mas apenas «acima de 1.500 euros» e nos moldes aplicáveis à redução das remunerações do setor público. Além disso, dos elementos de direito comparado apresentados pelo proponente da norma, com origem em documentos da União Europeia e do Governo da Irlanda, decorre que no caso da Grécia as medidas de redução de pensões mais exigentes (2013) deixam intocadas as pensões de valor inferior a € 1000 /mês e, no caso da Irlanda, as medidas de redução de pensões pagas aos funcionários públicos apenas se aplicam a pensões mensais superiores a € 1000.
E mesmo a consagração de medidas protetoras da idade (cfr. alíneas d) e e) do n.º 2 do artigo 7.º) – por via da isenção da redução das pensões em causa atribuídas pela CGA de valor mensal ilíquido superior a € 600 em razão de patamares mínimos crescentes em razão da idade dos beneficiários (75, 80, 85 e 90 anos) – não se afiguram suficientes para inverter o juízo de excesso ou irrazoabilidade já que a idade mínima que determina a elevação do patamar regra de aplicação das medidas é significativamente elevada e, mesmo assim, os patamares de isenção menos elevados são em regra inferiores ou muito próximos daqueles patamares de aplicação das medidas, previstos no direito comparado.
4.4. Assim, as medidas em causa de redução ou recálculo de pensões atribuídas pela CGA, no que respeita ao segmento afetado pela definição de um limiar de aplicação que corresponde a um valor de pensão relativamente baixo (€ 600) – o segmento dos titulares de rendimentos de pensões menos elevados – afigura-se representar, face aos fins de interesse público visados (e explicitados pelo proponente da norma quer na Exposição de Motivos da proposta quer nos vários documentos adicionais apresentados) a ponderar, e na sua dimensão subjetiva, um sacrifício, de intensidade significativamente acrescida, que ultrapassando os limites do princípio da proporcionalidade, se afigura excessivo (desrazoável) no quadro de um segmento de pensionistas afetados que, por ser mais carecido de proteção, convoca com maior acuidade o valor da solidariedade.
Pelo exposto, e atenta a dimensão subjetiva das medidas em causa no que respeita à intensidade do esforço, que excede a medida razoável do sacrifício, exigido aos pensionistas que auferem rendimentos de pensões menos elevados, mostra-se desrespeitado o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 2.º da Constituição, pelo que nos pronunciámos no sentido da inconstitucionalidade das normas das alíneas a), b), c) e d) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto n.º 187/XII.
Tendo em conta a configuração das normas sindicadas, este juízo de inconstitucionalidade, apesar de dirigido tão-só a parte dos respetivos conteúdos normativos, não pode, todavia, deixar de as comprometer na íntegra.
5. Importa todavia ponderar ainda se as normas respeitam outros limites impostos num Estado de Direito, em especial, por constituir o parâmetro de invalidade das normas de acordo com a fundamentação do Acórdão, o princípio da proteção da confiança.
5.1. Na nossa ponderação, no quadro do princípio da tutela da confiança, acompanhamos o Acórdão apenas quanto ao juízo da existência de uma expectativa legítima, e digna de especial tutela, por parte dos cidadãos, na continuidade de perceção de um determinado montante de pensão, no âmbito do direito à segurança social, com base em comportamentos encetados pelo Estado, tendo estes cidadãos feito planos de vida assentes nessa continuidade.
Reconhecido que estamos perante uma expectativa legítima, merecedora de tutela, a efetiva proteção dessa expectativa pelo princípio da tutela da confiança depende de um juízo de ponderação de interesses contrapostos. As expectativas dos particulares na continuidade do regime legal vigente devem ser ponderadas face às razões de interesse público que justificam a sua não continuidade.
5.2. De acordo com a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 171/XII, são os seguintes os fins das medidas legislativas previstas no Decreto n.º 187/XII:
(i) Contribuir para a sustentabilidade financeira do sistema previdencial público de pensões, aproximando o valor das prestações que assegura ao valor das contribuições que recebe.
(ii) Promover a justiça social, a equidade contributiva e a solidariedade intergeracional, através do aprofundamento da convergência do regime da CGA com o sistema previdencial do regime geral, aproximando as respetivas regras de formação das pensões e operando um reequilíbrio relativo entre o esforço contributivo exigido aos trabalhadores passados e atuais e os benefícios atribuídos aos pensionistas atuais e futuros.
(iii) Correlativamente, constituir também um contributo para o equilíbrio das contas públicas através da redução da despesa com pensões num quadro de consolidação orçamental sustentada e de compromissos assumidos no âmbito do Programa de Assistência Económica e Financeira, ainda em curso.
É nosso entendimento que nenhum destes fins pode ser visto como um objetivo isolado, independente dos demais, obedecendo a sua prossecução a um sentido global e de conjunto: garantir a capacidade de financiamento sustentado por parte do Estado do sistema público de pensões (abrangendo, ainda, a CGA), através da implementação de critérios de equidade na afetação e distribuição de recursos escassos. Esta meta global, além de revelar uma tendencial vocação estrutural, não pode deixar de ser considerada um interesse público relevante. Por seu lado, o modelo em concreto de configuração da concretização legal deste objetivo, no seio da reforma estrutural visada, constitui competência que se integra já na liberdade de conformação do legislador democrático.
5.3. No âmbito do presente processo de fiscalização, foram juntos aos autos diversos documentos – alguns de natureza técnica, outros de natureza não técnica. São de atender os documentos que incluem análises de natureza técnica como, em especial: i) a “Análise comparada da evolução dos regimes da CGA e SS ao longo do tempo” [com a descrição de 35 grupos de regimes especiais da CGA e apresentação de 84 exemplos de aplicação das regras aos dois regimes (CGA e RGSS) onde se elencam os vários regimes de cálculo da pensão que vigoram na CGA e na SS desde 1973 evidenciando a disparidade das respetivas fórmulas de cálculo (pp. 29 e ss.) e se conclui, nomeadamente, que «as pensões atualmente em pagamento são as que traduzem as historicamente mais elevadas taxas de substituição quando quem as recebeu suportou as mais baixas taxas de quotização» (p. 50) a confirmar o «esforço contributivo desigual realizado no passado pelos atuais pensionistas e no presente pelos atuais subscritores» (p. 49)]; ii) o “Relatório de Avaliação Atuarial do regime de pensões da Caixa Geral de Aposentações – Formulação Atual e Impacto das Medidas Legislativas” [em especial o seu n.º 5 “Projeções sobre a sustentabilidade financeira da CGA”, realizadas em três cenários (o cenário base ou do modelo atual; o cenário teórico de reabertura virtual retroativa do regime a novas inscrições desde 2006 e o cenário incorporando as medidas legislativas recentemente propostas e em avaliação), e respetivos anexos (n.º 6)]. Relevantes afiguram-se também os dados de direito comparado fornecidos, como a “Análise comparativa das medidas dirigidas à Administração Pública na Grécia, Irlanda e Espanha” ou o documento “Pensions at a Glance 2013 – OECD and G20 indicators”, entre outros.
Apesar de nenhum destes elementos informativos ter sido sujeito a contraditório, nem por isso eles devem ser ignorados, em especial nos segmentos que traduzem estudos técnicos, levando, todavia, em consideração que as conclusões alcançadas, em especial no que respeita à avaliação atuarial, são função dos pressupostos definidos a priori. A posição constitucional do poder jurisdicional exige ao juiz um dever acrescido de ponderação quando sindica opções político-legislativas baseadas em conclusões tecnicamente fundadas. Esta ponderação é dificultada pela natureza urgente da fiscalização preventiva.
5.4. Antes do mais, cumpre precisar que, de acordo com o proponente das normas, as medidas legislativas em apreciação não visam a igualação entre as pensões atribuídas pela CGA e as atribuídas pelo regime geral, antes visam diminuir as diferenças identificadas entre os dois regimes.
A circunstância de a redução se dirigir apenas aos pensionistas da CGA tem como fundamento invocado pelo legislador, partindo da diversidade de regimes existentes, as conclusões, alcançadas com base em cálculos técnicos (a partir de 84 casos reais), cujos resultados “demonstram, quando analisados numa perspetiva global (única aconselhável), que a disparidade do grau de benefícios entre o regime da CGA e o da SS a favor do primeiro, é real, tendo variado ao longo do tempo, situando-se quase sempre acima dos 10%” (“Análise Comparada da Evolução dos Regimes da CGA e SS ao longo do tempo”, cit. acima, p. 43). Trata-se, portanto, tão-só de um contributo para aproximação das realidades, repercutindo o seu efeito na diminuição sustentada do défice do Orçamento de Estado.
Ora, na opção legislativa em análise, pretende-se atenuar o impacto dos tratamentos diferenciados passados (justificados com fundamento em escolhas legislativas legítimas ao tempo em que foram aprovadas) sobre as necessidades de financiamento do sistema público de pensões e o Orçamento de Estado, afetando exclusivamente os direitos dos beneficiários resultantes daquelas escolhas. A medida da diferença, enquanto globalmente considerada, não se afigura excessiva.
O critério dessa diferença indicado pelo legislador, mesmo que seja apenas o «possível», em especial, como este alega, por falta de elementos quanto ao histórico de registo de remunerações dos subscritores da CGA inscritos até 31 de agosto de 1993 relativos às pensões, não incide sobre os que não têm a sua pensão calculada de acordo com aquelas regras.
5.5. Além disto, contrariamente ao que decorre da fundamentação do Acórdão, entendemos que da leitura global e geral da exposição de motivos e do conjunto de documentos juntos, não se podem considerar as normas em causa como totalmente desenquadradas de uma reforma estrutural (ou, pelo menos, tendencialmente estrutural) enunciada ou desadequadas a prosseguir os interesses públicos de especial relevo enunciados, considerados no seu todo.
No juízo de ponderação que deve ser feito entre as expectativas legítimas dos particulares e o interesse público global invocado, assume particular importância a premência da adoção de medidas estruturais para viabilizar, a prazo, a sustentabilidade do sistema público de pensões no seu todo (onde ainda se integra a CGA).
Neste balanceamento, a importância relativa do “bem comum” (traduzido na garantia da sustentabilidade financeira do sistema público de pensões) prosseguido pelas medidas legislativas em análise faz prevalecer o interesse público mesmo sobre um investimento de confiança acrescido na manutenção do regime, como aquele que é ditado pela circunstância de se ser titular de direitos adquiridos (direitos já constituídos mas não vencidos). A compressão destes não se apresenta como excessiva (não esquecendo o nosso juízo de desproporcionalidade parcial das medidas, tendo em conta o seu limiar, cfr. n.º 4). Por um lado, tendo em conta que só vale para o futuro (ressalvando os efeitos já vencidos). Por outro lado, porque o sistema português de segurança social, em particular na sua componente contributiva e, mais especificamente, previdencial, é um sistema que repousa numa lógica de repartição e não numa racionalidade de capitalização individual, não existindo vinculação a um princípio contratualista. O valor da pensão não representa, assim, o retorno das contribuições pagas no passado.
A lógica ou a racionalidade sistémica é, portanto, de repartição e não de capitalização. Ora, o critério de repartição assenta num princípio de solidariedade, que convoca a responsabilidade coletiva na realização das finalidades do sistema. A contribuição do conjunto de pensionistas da CGA abrangidos pelas medidas para assegurar a sustentabilidade do sistema de pensões ainda encontra, pois, justificação no princípio da solidariedade intra e intergeracional que também deve ser tido em conta neste âmbito. O sistema público de pensões assenta numa ideia de solidariedade e igualdade social. E esta solidariedade conforma a afetação dos recursos. Determinante afigura-se, o imperativo de garantir a sustentabilidade e solvabilidade do sistema de segurança social (relacionado com a capacidade do Estado o financiar, de forma sustentada) e que é condição da sua subsistência.
Quando a medida legislativa é ditada por razões fundamentadas de imperioso e premente interesse público, o interesse individual na manutenção do regime legal não pode deixar de ceder diante do interesse do Estado em alterá-lo. Neste caso, o legislador deve atuar, em nome da sua incumbência constitucional de garante da sustentabilidade do sistema (artigo 63.º, n.º 2 da Constituição), procurando uma distribuição equitativa dos recursos disponíveis.
Maria de Fátima Mata-Mouros
Maria José Rangel de Mesquita