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Processo n.º 996/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
O Ministério Público requereu o julgamento em processo sumário de A., no Juízo de Pequena Instância Criminal de Ílhavo (Processo n.º 1081/13.2PBAVR), imputando-lhe a prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, p.p. pelos artigos 22.º, 23.º, 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, d), do Código Penal.
Iniciada a audiência de julgamento foi proferido despacho que determinou a remessa do processo para a forma do processo comum, com fundamento na inconstitucionalidade da norma do artigo 381.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a 5 anos de prisão, por violação do artigo 32.º, n.º 1 e 2, do Código Penal.
O Ministério Público interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, pedindo a fiscalização de constitucionalidade da norma recusada.
Apresentou alegações com as seguintes conclusões:
“1. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório, nos presentes autos, do douto despacho judicial neles proferido, no qual a Mm.ª Juiz «a quo» decidiu:
- julgar inconstitucional a norma do artigo 381.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição RP, e recusar a sua aplicação ao caso vertente
- remeter, após trânsito, o processo para a forma de processo comum para julgamento por Tribunal Coletivo”.
2. Centrou-se, pois, o recurso do Ministério Público, na apreciação da constitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal, na dimensão da sujeição a julgamento, por tribunal singular, de crimes cuja pena máxima de prisão, abstratamente aplicável, seja superior a cinco anos.
3. Sobre esta matéria, já teve o Tribunal Constitucional oportunidade de se pronunciar, nos seus Acórdãos n.ºs 428/13 e 469/13, tendo julgado, em ambos, inconstitucional a norma do artigo 381º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro.
4. No Acórdão n.º 428/13, o Tribunal Constitucional decidiu, concretamente:
“julgar inconstitucional a norma do artigo 381º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação do artigo 32º, n.ºs 1 e 2, da Constituição”.
5. No Acórdão n.º 469/13, decidiu o Tribunal Constitucional:
“julgar inconstitucional a norma do artigo 381.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, sem que o Ministério Público tenha utilizado o mecanismo de limitação de pena a aplicar em concreto a um máximo de cinco anos de prisão previsto no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição”.
6. Em ambos os casos, considerou o Tribunal Constitucional que a norma em causa nos presentes autos, a ínsita no n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, é violadora das garantias de defesa do arguido, tal como consagradas no artigo 32.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
7. As razões apontadas para alcançar tal conclusão prendem-se com a constatação de que:
“o princípio da celeridade processual não é um valor absoluto e carece de ser compatibilizado com as garantias de defesa do arguido. À luz do princípio consignado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição, não tem qualquer cabimento afirmar que o processo sumário, menos solene e garantístico, possa ser aplicado a todos os arguidos detidos em flagrante delito independentemente da medida da pena aplicável. Tanto mais que mesmo o processo comum, quando aplicável a crimes a que corresponda pena de prisão superior a cinco anos, dispõe já de mecanismos de aceleração processual por efeito dos limites impostos à duração de medidas de coação que, no caso, sejam aplicáveis (artigos 215º e 218º do CPP)”.
8. A este argumento, acrescentaremos o anteriormente defendido pelo Ministério Público, no sentido de que a solução eleita pelo legislador, e plasmada no n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal, faz depender a atribuição da competência para o julgamento, no que concerne a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável seja superior a cinco anos, do facto incidental, e estranho ao objeto material do conhecimento do tribunal, da ocorrência de detenção em flagrante delito.
9. A par de tal verificação, inferimos que este facto, estranho à substância do litígio, acaba por determinar, que, de forma desigual e iníqua, factos da mesma natureza e gravidade, sejam julgados, distintamente, por um tribunal singular ou por um tribunal coletivo, conforme, respetivamente, o arguido tenha, ou não, sido detido em flagrante delito.
10. Resulta daqui que, após termos aceitado que o julgamento perante tribunal singular concede menores garantias de defesa ao arguido do que o julgamento perante tribunal coletivo, devemos concluir que a nova redação dada ao n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal, ao permitir que um arguido – detido em flagrante delito pela prática de um crime ao qual seja, abstratamente, aplicável pena de prisão superior a cinco anos – seja julgado perante tribunal singular, não assegura a este arguido “todas as garantias de defesa”, uma vez que não lhe assegura o julgamento perante tribunal coletivo, o qual lhe seria assegurado caso não tivesse sido detido em flagrante delito.
11. Verifica-se, pois, igualmente, a inconstitucionalidade da norma sob escrutínio, por violação do princípio da igualdade nas garantias do processo criminal, resultante da conjugação do disposto nos artigos 13.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, resultante da transgressão da dimensão de proibição do arbítrio, na medida em que o legislador ordinário decidiu tratar desigualmente (com injustificada diminuição das garantias de defesa do arguido) situações que, substancialmente, se representam iguais.
12. Segundo qualquer das perspetivas enunciadas, deve a norma constante do n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal ser, consequentemente, julgada inconstitucional
Nos termos do acabado de expor, deverá ser negado provimento ao presente recurso, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.”
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Fundamentação
A questão ora em apreço tem sido alvo de discussão, doutrinária e jurisprudencial, e reconduz-se a saber se a alteração da lei processual penal, provocada pela Reforma de 2013, que permite a sujeição a julgamento em processo sumário de arguidos da prática de crimes com pena abstratamente superior a cinco anos de prisão se afigura consentânea com a Lei Fundamental. A este propósito, a 3ª Secção deste Tribunal já teve oportunidade de apreciar a questão, tendo aprovado os Acórdãos n.º 428/2013, 469/2013 e 828/2013 (acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt), que concluíram pela inconstitucionalidade da norma extraída do n.º 1, do artigo 381.º, do Código de Processo Penal, por violação das garantias de defesa e do condicionamento da celeridade processual a essas mesmas garantias (artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição). Através do Acórdão n.º 428/2013, firmou-se a seguinte posição:
«4. A primeira questão de constitucionalidade que o novo critério legal definido para o âmbito do julgamento em processo sumário coloca é o das garantias de defesa do arguido.
Nos termos do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, o «processo criminal assegura todas as garantias de defesa ao arguido», o que engloba indubitavelmente «todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação» (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª edição, Coimbra, pág. 516). O n.º 2 do mesmo artigo, que associa o princípio da presunção da inocência do arguido à obrigatoriedade do julgamento «no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa» (n.º 2, in fine), tem subjacente o direito a um processo célere, partindo da perspetiva de que a demora do processo penal, além de prolongar o estado de suspeição e as medidas de coação sobre o arguido, acabará por esvaziar de sentido e retirar conteúdo útil ao princípio da presunção de inocência (idem, pág. 519).
No entanto, o princípio da aceleração de processo – como decorre com evidência do segmento final desse n.º 2 – tem de ser compatível com as garantias de defesa, o que implica a proibição do sacrifício dos direitos inerentes ao estatuto processual do arguido a pretexto da necessidade de uma justiça célere e eficaz (ibidem).
As exigências de celeridade processual não podem, por conseguinte, deixar de ser articuladas com as garantias de defesa, sendo que a Constituição, por força do mencionado n.º 2 do artigo 32º, valora especialmente a proteção das garantias de defesa em detrimento da rapidez processual. O que permite definir a forma ideal de processo como o resultado de uma tensão dialética entre esses dois fins constitucionalmente garantidos (ALEXANDRE DE SOUSA PINHEIRO/PAULO SARAGOÇA DA MATTA, Algumas notas sobre o processo penal na forma sumária, Revista do Ministério Público, ano 16º, Julho-setembro de 1995, n.º 63. pág. 160).
5. A forma de processo sumário corresponde a um processo acelerado quanto aos prazos aplicáveis e simplificado quanto às formalidades exigíveis.
(…)
6. Como o Tribunal Constitucional tem reconhecido, o julgamento através do tribunal singular oferece ao arguido menores garantias de defesa do que um julgamento em tribunal coletivo, desde logo porque aumenta a margem de erro na apreciação dos factos e a possibilidade de uma decisão menos justa (entre outros, os acórdãos n.ºs 393/89 e 326/90). E por razões inerentes à própria orgânica judiciária, o tribunal singular será normalmente constituído por um juiz em início de carreira com menor experiência profissional, o que poderá potenciar uma menor qualidade de decisão por confronto com aquelas outras situações em que haja lugar à intervenção de um órgão colegial presidido por um juiz de círculo.
Daí que a opção legislativa pelo julgamento sumário deva ficar sempre limitada pelo poder condenatório do juiz definido em função de um critério quantitativo da pena aplicar, só assim se aceitando – como a jurisprudência constitucional tem também sublinhado – que não possa falar-se, nesse caso, numa restrição intolerável às garantias de defesa do arguido.
Acresce que a prova direta do crime em consequência da ocorrência de flagrante delito, ainda que facilite a demonstração dos factos juridicamente relevantes para a existência do crime e a punibilidade do arguido, poderá não afastar a complexidade factual relativamente a aspetos que relevam para a determinação e medida da pena ou a sua atenuação especial, mormente quando respeitem à personalidade do agente, à motivação do crime e a circunstâncias anteriores ou posteriores ao facto que possam diminuir de forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
E estando em causa uma forma de criminalidade grave a que possa corresponder a mais elevada moldura penal, nada justifica que a situação de flagrante delito possa implicar, por si, um agravamento do estatuto processual do arguido com a consequente limitação dos direitos de defesa e a sujeição a uma forma de processo que envolva menores garantias de uma decisão justa.
Como se deixou entrever, o princípio da celeridade processual não é um valor absoluto e carece de ser compatibilizado com as garantias de defesa do arguido. À luz do princípio consignado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição, não tem qualquer cabimento afirmar que o processo sumário, menos solene e garantístico, possa ser aplicado a todos os arguidos detidos em flagrante delito independentemente da medida da pena aplicável. Tanto mais que mesmo o processo comum, quando aplicável a crimes a que corresponda pena de prisão superior a cinco anos, dispõe já de mecanismos de aceleração processual por efeito dos limites impostos à duração de medidas de coação que, no caso, sejam aplicáveis (artigos 215º e 218º do CPP).
A solução legal mostra-se, por isso, violadora das garantias de defesa do arguido, tal como consagradas no artigo 32º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.»
Concordando-se com a ponderação levada a cabo nestes dois Acórdãos, mais não resta do que, remetendo para a mais extensa fundamentação deles constante, concluir pela inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 381º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação do artigo 32º, n.ºs 1 e 2, da Constituição, assim se corroborando o juízo formulado pela decisão recorrida.
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Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) julgar inconstitucional a norma extraída do n.º 1, do artigo 381.º, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, quando interpretada no sentido de que o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação dos n.ºs 1 e 2, do artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa;
e, em consequência:
b) negar provimento ao recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da LTC.
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Sem custas.
Lisboa, 10 de dezembro de 2013. – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins – Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro