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Processo n.º 321/2013
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 2ª Secção, do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, em 11 de abril de 2013 (fls. 213 e 214), ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 01 de abril de 2013 (fls. 207 e 210), que indeferiu reclamação de despacho do Juiz-Relator junto da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 14 de novembro de 2012 (fls. 202), que não admitiu recurso ordinário interposto para aquele Tribunal.
O recorrente pretende que seja apreciada a norma extraída da conjugação dos artigos 400º, n.º 1, alínea f), e 432º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretada no sentido de que “[n]ão é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recursos, pelas Relações, que confirmem decisão de primeira instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo que o recurso tenha como fundamento os vícios ínsitos no n.º 2 do artigo 410.º, do CPP, e que estes defluam da própria decisão da Relação” (fls. 213).
2. Notificado para o efeito, o recorrente proferiu as seguintes alegações, das quais se extraem as seguintes conclusões:
«1. O direito a recorrer entronca no direito de defesa, tendo a Constituição, na sua atual redação (a partir da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro), consagrado expressamente, entre as garantias de defesa do arguido, o direito ao recurso.' 2
2. O recorrente entende que o seu direito ao recurso foi ilegalmente restringido, porquanto, independentemente de se tratar (ou não) de uma decisão que, na generalidade, confirma a decisão da 1ª Instância, não se poderá simplesmente olvidar que do seu texto resulta, ex novo, uma manifesta desconformidade com o ordenamento jurídico (no caso, um erro notório na apreciação da prova), que lhe é prejudicial.
3. Dito de outro modo: tratando-se de um dos vícios elencados no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, será incontroversa a impossibilidade de tal questão já ter sido objeto de apreciação por um Tribunal, na medida em que, conforme dispõe a aludida disposição legal, o vício tem forçosamente de decorrer do texto da decisão que se acaba de proferir.
4. Face ao exposto, resulta claro que, na circunstância de estarmos perante uma decisão que, mesmo proferida em recurso, enferme de um dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, tal vício consubstanciará, de per si, fundamento de recurso para o STJ, sob pena de se ver violado o direito constitucional ao recurso, contido no n.º 1 do artigo 32.º da CRP.
5. Na verdade, e caso assim não se entendesse, estar-se-ia a permitir que uma decisão materialmente injusta e formalmente ilegal se sedimentasse na ordem jurídica, sem que estivesse previsto qualquer mecanismo legal de controlo por uma instância superior.
6. Porquanto, a interpretação do Tribunal da Relação do Porto, corroborada pelo Supremo Tribunal de Justiça, do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) conjugada com a al. b), do n.º 1 do artigo 432.º do Código do Processo Penal, no sentido de que:
• Não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de primeira instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo que o recurso tenha como fundamento os vícios ínsitos no n. º 2 do artigo 410.º, do CPP, e que estes defluam da própria decisão da Relação.
Sempre será inconstitucional, por violação do direito ao recurso, consagrado constitucionalmente no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.» (fls. 238 e 239)
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público produziu as seguintes contra-alegações, que ora se sintetizam:
«1. Delimitação do objeto do recurso
(…)
2. Apreciação do mérito do recurso.
2.1. É vasta a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o direito ao recurso em processo penal e que é uma das garantias de defesa expressamente consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
O Tribunal entende de maneira uniforme e unânime que não tem que haver um duplo grau de recurso, ou um terceiro grau de jurisdição, para que a exigência constitucional seja cumprida.
Neste sentido e mais concretamente sobre a norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, já o Tribunal se pronunciou, naturalmente proferindo sempre juízos negativos de inconstitucionalidade (vg. 645/2009, 277/2010, 308/2010).
Também foram apreciadas dimensões específicas daquela norma.
Assim, por exemplo, o Acórdão n.º 424/2009, não julgou inconstitucional a norma do artigo 400.º alíneas e) e f), conjugada com a norma do artigo 432.º n.º 1 alínea c) do CPP, na redação emergente da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão efetiva.
Por sua vez o Acórdão n.º 385/2011, não julgou inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que, apesar de ter confirmado a decisão de 1.ª instância em pena não superior a 8 anos, se pronunciou pela primeira vez sobre um facto que a 1.ª instância não havia apreciado.
Também o Acórdão n.º 659/2011, não julgou inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de não ser admissível o recurso de acórdão condenatório proferido, em recurso, pela Relação, que confirme a decisão de 1.ª instância e aplique pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo no caso de terem sido arguidas nulidades de tal acórdão.
2.2. Vejamos agora a especificidade do caso dos autos.
A Relação, apreciando um recurso interposto pelo arguido, detetou no acórdão proferido em 1.ª instância o vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do CPP.
Note-se que esta questão não tinha sido expressamente invocada pelo recorrente no recurso, mas apenas referida por ele na resposta apresentada ao parecer emitido pelo Ministério Público na Relação.
Diz-se a esse respeito no acórdão:
“Embora não faça parte, como é óbvio do objeto do recurso. Já que no mesmo não foi invocado, haverá que apreciar da sua eventual existência uma vez que o mesmo faz parte daqueles que o legislador considerou de conhecimento oficioso e que se encontram previstos no n.º 2 do art. 410.º do C.P.P.”
2.3. Portanto, tratando-se de um vício de conhecimento oficioso, a Relação conheceu desta matéria, ou seja, o tribunal de recurso aprecia mesmo oficiosamente vícios de que padeça a decisão recorrida.
Ora essa reapreciação oficiosa constitui uma vertente relevante, integrada no direito ao recurso.
Assim, a simples existência de uma norma com o conteúdo do artigo 400.º do CPP, com as competências ali atribuídas ao tribunal de recurso para conhecer oficiosamente da matéria de facto, constitui, por si só, uma norma que concretiza uma das dimensões do direito ao recurso.
De referir aqui que o sistema de revista alargado, previsto no artigo 410.º do CPP, tal como o nosso ordenamento jurídico a modelava “ainda é remédio jurídico ou válvula de segurança suficiente para erros grosseiros de julgamento” (Acórdão n.º 573/98).
Note-se que, na altura, das decisões do tribunal coletivo recorria-se diretamente para o Supremo Tribunal de Justiça e não havia registo de prova.
O Supremo Tribunal de Justiça funcionava, assim, como o primeiro tribunal de recurso e tinha a sua competência limitada pelo disposto no artigo 410.º, quanto ao âmbito de conhecimento da matéria de facto.
Naturalmente que hoje, com o registo da prova e a ampla competência das relações quando, em sede de recurso apreciam a matéria de facto, o sistema é diferente e muito mais respeitador do direito ao recurso.
Porém, a evocação daquela antiga jurisprudência não deixa de se revestir de alguma relevância.
2.4. Ora, como a leitura do acórdão da Relação o comprova, as relações conhecem amplamente da matéria de facto.
No caso concreto, após análise cuidada, conclui-se que, diferentemente do que o recorrente invocara, não tinha ocorrido erro de julgamento quanto aos pontos 46 a 50 da matéria de facto.
Seguidamente, apreciando parte da matéria de facto dada como provada, conclui-se haver uma contradição entre os factos e a fundamentação da sentença, ocorrendo vício da contradição previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP.
Porém, esse vício não foi considerado insanável e a Relação fez a correção necessária quanto aos pontos 40, alínea b), 40, alínea d) e 64 da decisão proferida em 1.ª instância.
Note-se que nos termos do artigo 426.º, n.º 1, do CPP, se for possível decidir a causa - como era e foi – é essa a solução que deve ser adotada.
Por outro lado, como se salienta na decisão ora recorrida, essa alteração da matéria de facto dada como provada, não alterou em nada o anteriormente decidido, quer no que respeita à integração do crime ou aos elementos de determinação da pena.
2.5. Não sendo admissível recurso do acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, por força do disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP, admitir o recurso nas circunstâncias dos autos, era abrir uma via de recurso não legalmente prevista, sendo certo que a não existência de mais um grau de recurso não se mostra violadora do direito ao recurso, como inequivocamente resulta da jurisprudência do Tribunal Constitucional já anteriormente referida.
Efetivamente, o artigo 410.º não dispõe sobre a admissibilidade do recurso, mas exclusivamente sobre o âmbito da competência do tribunal de recurso em matéria de facto.
Como se diz na decisão recorrida:
“E a inovação do disposto no art. 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, não procede, por este preceito se limitar a prever a possibilidade de incursão do STJ na matéria de facto no que respeita ao vício indicado, mas obviamente desde que o recurso seja admissível.”
2.6. Assim, é largamente transponível para a situação que agora cumpre apreciar, a fundamentação constante dos Acórdãos nºs 385/2011 e 659/2011, para a qual, respeitosamente, se remete.
3. Conclusões:
1.º A norma constante do artigo 400º, nº 1, alínea f), do CPP, ao restringir o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, em função da gravidade das penas aplicadas aos arguidos – e nos casos (como o dos autos) em que já foi exercitado o segundo grau de jurisdição quanto à decisão condenatória - não afronta o direito ao recurso em processo penal, consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição.
2.º O artigo 410.º do CPP não dispõe sobre a admissibilidade do recurso, mas exclusivamente sobre o âmbito da competência do tribunal de recurso em matéria de facto, pelo que, admitir recurso para Supremo Tribunal de Justiça quando se invocasse um vício dos identificados naquele preceito, seria abrir uma via de recurso não legalmente prevista nem constitucionalmente exigível.
3.º A interpretação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º, conjugado com a alínea b), do n.º 1 do artigo 432.º, ambos do CPP, segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de primeira instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo que o recurso tenha como fundamento os vícios ínsitos no n.º 2 do artigo 410.º, do CPP, não viola o direito ao recurso em processo penal (artigo 32º, nº 1, da Constituição), não sendo, por isso, inconstitucional.
4º Termos em que deve ser negado provimento ao recurso.» (fls. 24 a 33)
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A questão subjacente à alegada inconstitucionalidade da norma extraída da conjugação dos artigos 400º, n.º 1, alínea f), e 432º, n.º 1, alínea b), ambos do CPP, constitui tema recorrente da jurisprudência deste Tribunal, relativa às garantias de recurso em processo penal. Com efeito, o Tribunal Constitucional tem afirmado, de modo constante, unânime e reiterado, que o direito ao recurso penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP) não abrange um direito a um duplo grau de recurso. A mero título de exemplo, veja-se o Acórdão n.º 551/2009 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/):
«7. O Tribunal Constitucional tem uma jurisprudência consolidada no sentido de que no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição se consagra o direito ao recurso em processo penal, com uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido. Mas também que a Constituição não impõe, direta ou indiretamente, o direito a um duplo recurso ou a um triplo grau de jurisdição em matéria penal, cabendo na discricionariedade do legislador definir os casos em que se justifica o acesso à mais alta jurisdição, desde que não consagre critérios arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados. E que não é arbitrário nem manifestamente infundado reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada (Cfr., entre muitos, a propósito da anterior redação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na peculiar interpretação acima referida do que era a pena aplicável, acórdão n.º 64/2006 (Plenário), publicado no Diário da República, II Série, de 19 de maio de 2006). Essa limitação do recurso apresenta-se como “racionalmente justificada, pela mesma preocupação de não assoberbar o Supremo Tribunal de Justiça com a resolução de questões de menor gravidade (como sejam aquelas em que a pena aplicável, no caso concreto, não ultrapassa o referido limite), sendo certo que, por um lado, o direito de o arguido a ver reexaminado o seu caso se mostra já satisfeito com a pronúncia da Relação e, por outro, se obteve consenso nas duas instâncias quanto à condenação” (citado Acórdão n.º 451/03).»
Especificamente sobre a alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do CPP, também o Tribunal tem, reiterada e unanimemente, entendido que a mesma não atenta contra o direito de recurso penal, na medida em que constitui uma restrição proporcionada desse mesmo direito fundamental, em homenagem a outros bens jurídicos constitucionalmente protegidos, como a celeridade na administração da Justiça. Por exemplo, foi dito, no Acórdão n.º 32/2006 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), que:
«7.
(…)
Partindo, portanto, do pressuposto de que o artigo 32º, n.º 1, da Constituição, quando estabelece que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”, não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição em relação a quaisquer decisões penais condenatórias, o que tem de perguntar-se é se será desrazoável, arbitrário ou desproporcionado não admitir o recurso para o Supremo nos casos, como o dos autos, em que a Relação mantém os factos provados e a qualificação jurídica, não obstante reduzir a medida concreta das penas parcelares e unitária (esta última para sete anos), revogando parcialmente a decisão de 1.ª instância.
Dito de outro modo: a questão de inconstitucionalidade colocada pelo recorrente não pode ser resolvida com a mera invocação da garantia de um terceiro grau de jurisdição, pois que, não podendo essa garantia ser reconhecida em todos os casos, tal resolução exige necessariamente a ponderação da razoabilidade, arbitrariedade ou desproporcionalidade da não admissão desse terceiro grau, no caso concreto.
Ora, realizando tal ponderação, dir-se-á que não é constitucionalmente censurável que a exclusão do terceiro grau de jurisdição resulte de se “qualificar como confirmatório da decisão condenatória, proferida em 1ª instância, o acórdão da Relação que – sem qualquer alteração ou convolação dos fundamentos essenciais ou substanciais – se limite, em mera «redução quantitativa», a atenuar a medida concreta da pena aplicada ao arguido, reduzindo a que lhe havia sido cominada na 1ª instância, por diversa reponderação do quadro de circunstâncias atenuantes”.»
Em sentido idêntico, pronunciou-se o Acórdão n.º 20/2007 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/):
«(…)
Ora a menor certeza na aplicação do direito ao caso que possa imputar-se à inexistência de uma rígida 'dupla conforme' nas instâncias não tem constitucionalmente que ser superada pelo acesso ao Supremo Tribunal de Justiça. Não podendo essa garantia ser reconhecida em todos os casos, tal resolução exige necessariamente a ponderação da razoabilidade, arbitrariedade ou desproporcionalidade da não admissão desse terceiro grau, na hipótese normativa considerada. E, repete-se, não é constitucionalmente censurável que a exclusão do terceiro grau de jurisdição resulte de se “qualificar como confirmatório da decisão condenatória, proferida em 1ª instância, o acórdão da Relação que – sem qualquer alteração ou convolação dos fundamentos essenciais ou substanciais – se limite, em mera «redução quantitativa», a atenuar a medida concreta da pena aplicada ao arguido, reduzindo a que lhe havia sido cominada na 1ª instância, por diversa reponderação do quadro de circunstâncias atenuantes. Não é desrazoável, quer reservar a possibilidade de recurso para Supremo para os casos mais graves em função da medida da pena quer, num sistema assim concebido, tratar do mesmo modo os casos em que a Relação, aplicando pena não superior a oito anos, confirma totalmente a decisão da 1.ª instância e os casos em que a Relação, aplicando pena não superior a oito anos, reduz a pena aplicada pela 1.ª instância.»
Nada na específica configuração do objeto do presente recurso afasta esta jurisprudência.
Ainda na vigência de redação anterior à reforma de 2007, o Acórdão n.º 390/2004 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), teve oportunidade de, a propósito da alínea e) do n.º 1 do artigo 400º do CPP, decidir no seguinte sentido:
«Sendo assim, não decorre forçosamente da garantia constitucional de um duplo grau de jurisdição que haja de ser sempre admissível o recurso para o tribunal superior nos casos em que o tribunal de recurso se pronuncie, pela primeira vez, sobre questões que influam na decisão da causa (ressalvando-se o recurso de constitucionalidade para o órgão jurisdicional específico não enquadrado na hierarquia dos tribunais) ou nos de, ao proferir a decisão, incorrer na violação de lei processual ou procedimental que seja sancionada com o estigma da nulidade.
Nada impõe que se leve a autonomização da questão da nulidade da decisão em relação à questão de fundo tão longe que seja constitucionalmente exigível a existência de um 2º grau de jurisdição especificamente para esta questão, considerando o regime de arguição e conhecimento das nulidades em processo penal por via de recurso, a possibilidade de arguir as nulidades perante o órgão que proferiu a decisão, quando aquele recurso não existir, e, como no presente caso, a existência de duas decisões concordantes em sentido condenatório (o Tribunal da Relação confirmou a decisão da 1ª instância nesse sentido).
É claro que o legislador poderia, na sua discricionariedade legislativa, admitir esse recurso, mesmo nas hipóteses em que o fundamento deste resida na arguição de nulidades processuais, assim ampliando o âmbito material do direito de recurso, mas a sua inadmissibilidade não será constitucionalmente intolerável.
Nesta perspetiva, poder-se-á dizer que, em caso de recurso relativo a decisão condenatória, seja com fundamento em nulidades processuais, seja com fundamento em erros de julgamento atinentes ao fundo da causa, o seu objeto apelante de um terceiro grau de jurisdição será sempre o acórdão condenatório em si próprio. É certo que, quando o fundamento do recurso se consubstancie em uma causa de nulidade do acórdão condenatório, não poderá afirmar-se ter sido exercida a garantia do duplo grau de jurisdição por uma forma definitiva. Mas uma tal situação apenas demanda, numa perspetiva de garantia constitucional do acesso aos tribunais que o recorrente convoca (art.º 20º da CRP), que esse mesmo grau de jurisdição se possa (deva) pronunciar de modo formalmente válido sobre o objeto do recurso. Nesta perspetiva ganha todo o sentido a possibilidade de o tribunal recorrido poder suprir as nulidades e de o tribunal ad quem apenas conhecer delas quando, sendo admissível o recurso, aquele o não tenha feito ou não as haja atendido (art.º 379º, n.º 2, e 414º, n.º 4, do CPP; cf., no domínio do processo civil, o art.º 668º, n.º 3 do Código de Processo Civil). Deste modo, a apreciação de nulidades de acórdão condenatório não postula a necessidade de existência de mais um grau de recurso. A reclamação perante o órgão jurisdicional que exerce o segundo grau de jurisdição configura-se, assim, como um instrumento jurídico adequado de garantir o acesso aos tribunais, na sua dimensão de direito a obter uma decisão formalmente válida, que é a dimensão que o recorrente aqui questiona.
Aliás, admitindo-se a constitucionalidade das normas que preveem a existência apenas de um duplo grau de jurisdição, mesmo quando está em causa a “bondade” do julgamento efetuado, maiores razões existem para não se terem por desconformes com a Lei Fundamental aquelas disposições que limitam o recurso ao mesmo segundo grau de jurisdição em caso de existência de nulidades da decisão, que advêm essencialmente da violação de regras processuais ou procedimentais, quando está aí garantido o direito de reclamação para apreciação dessas nulidades para o órgão jurisdicional que exerceu o último grau de jurisdição.»
E, ainda mais recentemente – já a propósito da redação atual da alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do CPP –, o Tribunal Constitucional reiterou idêntico entendimento, através do Acórdão n.º 659/2011, da 2ª Secção, que viria a ser, mais tarde, corroborado pelo Acórdão n.º 194/2012, da 3ª Secção (ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Através do referido Acórdão n.º 659/2011, esclareceu-se que:
«Também no caso dos autos, tendo sido assegurado aos arguidos um duplo grau de jurisdição (uma vez que tiveram a possibilidade de, face à mesma imputação penal, defender-se perante dois tribunais: o tribunal de 1.ª instância e o tribunal da Relação), a questão que se coloca é a de saber se, tendo sido arguidas nulidades do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, é inconstitucional limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, por aplicação da regra da dupla conforme, prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal.
(…)
Importa, antes de mais, ter em consideração o regime de arguição e conhecimento das nulidades em processo penal, que garante, mesmo em caso de irrecorribilidade, a possibilidade de serem arguidas nulidades da decisão perante o tribunal que a proferiu (como, aliás, aconteceu no presente caso), tendo este poderes para suprir as eventuais nulidades cuja existência reconheça (cfr. artigos 379.º, n.º 2, e 414.º, n.º 4, do Código de Processo Penal).
Ora, sendo certo, conforme se disse, que o artigo 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental, não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição em relação a quaisquer decisões penais condenatórias, resta verificar se, nos casos em que o Tribunal da Relação profere acórdão em que mantém a decisão condenatória da 1.ª instância e é arguida a nulidade de tal acórdão, se mostra cumprida a garantia constitucional do direito ao recurso, quando exige que o processo penal faculte à pessoa condenada pela prática de um crime a possibilidade de requerer uma reapreciação do objeto do processo por outro tribunal, em regra situado num plano hierarquicamente superior.
Com uma reapreciação jurisdicional, independentemente do seu resultado, revela-se satisfeito esse direito de defesa do arguido, pelo que a decisão do tribunal de recurso já não está abrangida pela exigência de um novo controle jurisdicional. E o facto de, na sequência dessa reapreciação, terem sido arguidas nulidades do acórdão do Tribunal da Relação não constitui motivo para se considerar que estamos perante uma primeira decisão sobre o thema decidendum, relativamente à qual é necessário garantir também o direito ao recurso.
Com efeito, a circunstância de os recorrentes terem arguido nulidades do acórdão do Tribunal da Relação não modifica o objeto do processo uma vez que, tal como a decisão da 1.ª instância, o acórdão do Tribunal da Relação que sobre ela recai limita-se a verificar se o arguido pode ser responsabilizado pela prática do crime que estava acusado e, na hipótese afirmativa, a definir a pena que deve ser aplicada, o que se traduz num reexame da causa.
O Acórdão do Tribunal da Relação constitui, assim, já uma segunda pronúncia sobre o objeto do processo, pelo que não há que assegurar a possibilidade de aceder a mais uma instância de controle, a qual resultaria num duplo recurso, com um terceiro grau de jurisdição.
Por outro lado, existindo sempre a possibilidade de arguir as referidas nulidades perante o tribunal que proferiu a decisão, mesmo quando esta seja irrecorrível, a apreciação de nulidades do acórdão condenatório não implica a necessidade de existência de mais um grau de recurso, tanto mais em situações, como a dos autos, em que existem duas decisões concordantes em sentido condenatório (uma vez que o Tribunal da Relação confirmou a decisão da 1ª instância nesse sentido).
Acresce que, se fosse entendido que a arguição da nulidade de um acórdão proferido em recurso implicaria, sempre e em qualquer caso, com fundamento no direito ao recurso em processo penal, a abertura de nova via de recurso, ter-se-ia de admitir também o recurso do acórdão proferido na terceira instância, com fundamento na sua nulidade, e assim sucessivamente, numa absurda espiral de recursos.
Impõe-se, pois, concluir que não é constitucionalmente censurável, neste caso, a exclusão do terceiro grau de jurisdição e que a interpretação normativa objeto de fiscalização não viola o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.»
Em conclusão, na linha da fundamentação dos Acórdãos n.º 659/2011 e n.º 194/2012, não deve julgar-se inconstitucional uma interpretação como aquela que constitui objeto dos presentes autos.
III – Decisão
Pelos fundamentos supra expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 400º, n.º 1, alínea f), e 432º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretada no sentido de que “[n]ão é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recursos, pelas Relações, que confirmem decisão de primeira instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo que o recurso tenha como fundamento os vícios ínsitos no n.º 2 do artigo 410.º, do CPP, e que estes defluam da própria decisão da Relação”;
E, em consequência:
b) Negar provimento ao recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s.
Lisboa, 6 de Março de 2014.- Ana Guerra Martins – Fernando Vaz Ventura - João Cura Mariano – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.