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Processo n.º 553/13
3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A. foi condenado pela prática, em concurso real, de um crime de associação criminosa, p. e p. no artigo 89.º, n.º 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), de quatro crimes de contrabando qualificado, p. e p. no artigo 92.º, n.º 1, alínea b) e 97.º, alíneas b), c) e d) do RGIT, e de três crimes de venda ou ocultação, p. e p. no artigo 324.º do Código da Propriedade Industrial, na pena única de quatro anos e quatro meses de prisão. No decurso do processo, o arguido veio interpor recurso do despacho proferido pelas Varas Criminais de Lisboa (4ª Vara), que indeferiu pedido de junção aos autos de todos os elementos que compõem a ação encoberta, suscitando a questão de saber se “o arguido, sujeito a ação encoberta, assiste o direito de aceder ao conteúdo dos despachos judiciários de autorização e validação da ação encoberta, por si só assim poder exercer o controlo da legalidade daqueles despachos e contraditório”. Veio ainda interpor recurso do Acórdão final da 1ª instância, alegando a ilegalidade da prova obtida através da ação encoberta. O Tribunal da Relação de Lisboa conheceu de ambos os recursos por Acórdão datado de 20/02/2013, e decidiu negar provimento a ambos, mantendo na íntegra a decisão recorrida.
Referiu-se, no que toca ao recurso interlocutório:
“3.1. O recurso coloca essencialmente a questão de saber se ao arguido, sujeito a ação encoberta, assiste o direito de aceder ao conteúdo dos despachos judiciários de autorização e validação da ação encoberta, bem como a todos os demais elementos da ação encoberta, por só assim poder exercer o controlo da legalidade daqueles despachos e o contraditório?
Vejamos:
O recorrente assenta o reclamado direito de acesso aos despachos judiciários e aos relatos atinentes à ação encoberta aduzindo a seguinte argumentação:
- Sem o conhecimento daqueles despachos, a defesa fica impossibilitada de indagar da validade da medida, designadamente, da consistência da suspeita e dos pressupostos da proporcionalidade e subsidiariedade, e consequentemente, de fazer valer as consequências jurídicas da sua eventual ilegalidade e invalidade.
- Existindo uma ação encoberta mas não se encontrando nos autos os requisitos de que depende a sua validade, esse meio de prova não pode ser valorado contra o arguido sob pena de as normas constantes dos artigos 127º, 355º do CPP, por referência ao artigos 3º e 4º da Lei nº 101/2001, padecerem de inconstitucionalidade material por contenderem com o princípio do contraditório previsto no artº 32º, nºs. 1 e 5 da CRP.
- O relatório final junto aos autos é um documento sem qualquer valor jurídico, e no âmbito da ação encoberta foram realizadas várias diligências que não estão retratadas no relatório final, sendo com base nos relatos que consubstanciavam estas diligências que o arguido poderia exercer o contraditório.
- A interpretação dada pelo despacho recorrido às normas constantes do artº 4º da Lei nº 101/2001 e artº 340º do CPP colide com o disposto no artº 32º nº 1 e 5 do CPP, uma vez que limita desproporcionalmente o direito de defesa do arguido.
Apreciando.
(…)
3.1.3. Vejamos o que diz a lei quanto ao controlo de legalidade da ação encoberta.
Concretamente sobre esta matéria, o artº 3º, nº 3 da Lei nº 1 01/2001, de 25/08, consigna que a realização de uma ação encoberta no âmbito do inquérito depende de prévia autorização do competente magistrado do Ministério Público, sendo obrigatoriamente comunicada ao juiz de instrução, considerando-se a mesma validada se não for proferido despacho de recusa nas setenta e duas horas seguintes.
O nº 6 deste mesmo preceito consigna que a Polícia Judiciária fará o relato da intervenção do agente encoberto à autoridade judiciária competente no prazo máximo de quarenta e oito horas apás o termo de tal intervenção. Mas a junção aos autos desse relato só será ordenada, se for reputada “absolutamente indispensável em termos probatórios” (cfr. artº 4º, nº 1). Naturalmente, em nome da proteção que é devida ao agente encoberto, cuja verdadeira entidade tem que ser preservada.
Daqui resulta desde logo que a ação encoberta é levada a cabo, sempre, com o controle de uma autoridade judiciária, e a lei apenas prevê a junção aos autos do relato da PJ que vem previsto no nº 6 do artº 3, se a autoridade judiciária concluir pela sua indispensabilidade em termos probatórios (constituindo neste sentido um meio de prova).
O regime jurídico da “ação encoberta”, ao admitir apenas a junção deste relato, é já, ele próprio, uma expressão dos juízos de ponderação do legislador no que respeita à problemática da criminalidade grave.
Se atentarmos no respetivo processo de formação desta lei veremos que a questão da salvaguarda dos direitos e defesa e garantias dos cidadãos foi ponderada, designadamente, em sede de Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e de discussão no Plenário da Assembleia da República da proposta de Lei n° 79/VIII (que esteve na origem da Lei nº 101/2001) tendo sido introduzidas alterações no artº 3º quanto à legitimação da ação encoberta por forma a fazer intervir sempre o juiz de instrução criminal (atual redação dos nºs. 3 e 4 do artº 3º).
Cita-se ainda, no mesmo sentido, algumas considerações insertas na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 79/VIII, onde se deixou consignado que “A introdução deste regime deve, no entanto, ser feita com os cuidados adequados, quer para preservar as garantias de defesa em processo criminal quer para salvaguardar a segurança dos agentes envolvidos.
A primeira das preocupações traduz-se, desde logo, no princípio geral de que estas atuações estão sujeitas aos princípios da necessidade e proporcionalidade face à investigação a desenvolver. No mesmo sentido se estabelece uma supervisão jurisdicional destas atuações, que se traduz quer na necessidade de autorização prévia de magistrado quer no controlo jurisdicional a posteriori dessa mesma atuação e da prova obtida”.
Facilmente se alcança que o conhecimento pelos arguidos e de todos quantos tivessem acesso ao processo de outros elementos da ação encoberta, como o procedimento da autorização e validação inicial e subsequentes intervenções, permitiria o fácil acesso à identidade dos encobertos, ficando em crise a sua segurança e de suas famílias.
Assim, atendendo à especificidade deste regime e da sua “ratio”, o legislador não permitiu o acesso ilimitado à ação encoberta, enfatizando em contraponto a necessidade da intervenção de um Juiz no controlo do processo, a quem, em última instância, cabe julgar da legalidade da medida autorizada pelo Ministério Público.
Deste modo, e conforme claramente resulta da letra da lei e da ponderação dos valores em causa, o legislador apenas concebeu a junção aos autos do relato final, e mesmo este, apenas em caso de indispensabilidade em termos probatórios, sendo o controlo da legalidade da ação encoberta exercido pelo Ministério Público e pelo juiz de Instrução, nos termos dos nºs. 3 e 4 do artº 3º da Lei nº 101/2001. Esta é a solução legal, e não vemos em que é que, concretamente, o não acesso ao conteúdo dos despachos de autorização e validação limita desproporcionalmente o seu direito de defesa, pois sempre o relato e a inquirição dos agentes em audiência possibilitará um controlo posterior da legalidade da autorização.
Em conclusão, o pretendido acesso aos despachos judiciários de autorização e validação, assim como o acesso a quaisquer outras peças para além do relato a que alude o nº 6 do artº 3º da Lei nº 101/2001, não tem fundamento legal, e como refere o M° P° na sua resposta ao recurso, “equivaleria a esvaziar a lei, a desvirtuá-la na sua “ratio” e sentido”.
3.1.4. Invoca ainda o recorrente que o facto de as várias diligências realizadas no âmbito da ação encoberta não estarem retratadas no relato junto aos autos leva a que fique preterido o exercício do contraditório, daí reclamar o acesso a todos os elementos que compõem a ação encoberta.
Mas também aqui sem razão.
Antes de mais, importa referir que do relato da ação encoberta consta a referência à autorização para a ação encoberta e sua posterior validação, bem como se mencionam outras autorizações e validações judiciais para diligências várias ali indicadas, constando ainda do despacho do MP que ordenou a junção aos autos da ação encoberta a data de autorização, o seu âmbito e respetivos fundamentos.
Consta assim a suficiente informação para que o recorrente possa exercer o contraditório nesta matéria.
Depois, e como acima deixamos elencado, o Ministério Público, ainda em fase de Inquérito, determinou a junção aos autos do relato da ação encoberta e procedeu à inquirição do agente “Belchior”, subscritor do relato, vindo o relato a ser indicado na acusação como meio de prova e os agentes encobertos indicados como testemunhas.
Uma vez que foi ordenada a junção do relato, e vistas as exigências do contraditório em audiência, este só poderá ter relevância em termos probatórios com a intervenção do próprio agente encoberto.
E foi o que ocorreu na audiência de julgamento, procedendo-se à inquirição dos dois agentes encobertos, após a produção da restante prova testemunhal.
O princípio do contraditório assenta nesta perspetiva no direito de o arguido intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos ou outros elementos de prova juntos aos autos.
E o recorrente cedo ficou a saber da existência de prova obtida através da ação encoberta, e em sede de audiência teve a possibilidade de amplamente contraditar, quer o teor do relato e respetivos documentos, quer o depoimento dos agentes encobertos, como aliás o fez, sem qualquer limitação do seu direito de defesa, designadamente, na vertente do exercício do contraditório: todas as provas foram objeto de apreciação em contraditório na audiência, tendo tido a possibilidade de oferecer as suas provas, de controlar as provas contra si oferecidas e de discretear o resultado de umas e outras.
Deste modo, mostra-se plenamente respeitado o princípio do contraditório.
3.1.5. Da validade da prova recolhida.
Nesta matéria, existindo ação encoberta, considera o recorrente que não se encontrando nos autos os requisitos de que depende a sua validade, esse meio de prova não pode ser valorado contra o arguido sob pena de as normas constantes dos arts. 127º e 355º do CPP padecerem de inconstitucionalidade material por contenderem com o princípio do contraditório previsto no artº 32º, nº 5 da CRP.
Ora, o artº 355º, sob a epigrafe Proibição de valoração de provas, estabelece no nº 1 que “Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência” Contém este preceito afloramentos do princípio do contraditório e da imediação da prova, visando obstar a que concorram para a formação da convicção do tribunal provas que não tenham sido apresentadas ou se não mostrem juntas ao processo, ou seja, a valoração de provas sobre as quais os intervenientes não tenham tido a possibilidade de contraditar.
O raciocínio do recorrente cai por terra face ao decidido supra quanto à impossibilidade legal de junção aos autos de outros elementos da ação encoberta que não o relato.
Deste modo, nada impede que a prova assim obtida seja valorada, nos termos do artº 127º e 335º, ambos do CPP, não estando o recorrente preterido de exercer amplamente o contraditório, como aliás o fez, como supra referido.
3.1.6. Por fim, tendo presente toda a argumentação supra aduzida, dir-se-á que a interpretação dada pelo despacho recorrido às normas constantes dos artºs 3º e 4º da Lei nº 101/2001, 127º e 355º do CPP, em nada colide com o disposto no artº 32º, nºs 1 e 5 da CRP, não se registando a alegada inconstitucionalidade.
Termos em que nenhuma censura nos merece o despacho recorrido que temos por acertado, fazendo uma correta interpretação dos normativos convocados, improcedendo por isso o recurso”.
No que toca ao recurso principal, acrescentou ainda o Tribunal da Relação de Lisboa, no que aos presentes autos interessa:
“Como vimos, o recorrente na síntese da motivação que trouxe às conclusões, colocando em causa a validade da prova alcançada através de ação encoberta, suscita as seguintes questões:
- Da inexistência jurídica de ação encoberta visto que dos autos não constam os respetivos despachos de autorização da ação encoberta.
- Da violação do prazo de 48 horas previsto no artº 3º, nº 6 da Lei nº 101/2001, de 25/08.
(…)
Vejamos:
3.3.1. A questão do acesso ao conteúdo dos despachos judiciários.
O recorrente vem de novo invocar a falta de acesso ao conteúdo dos despachos judiciários de autorização e validação da ação encoberta, considerando igualmente que a impossibilidade de a defesa aceder a tais despachos “atenta com os princípios da contraditoriedade, da oralidade e da imediação”.
Esta questão foi suscitada por via de recurso interlocutório já supramente decidido e para o qual se remete, nada mais havendo a considerar.
3.3.2. Da violação do prazo de 48 horas previsto no artº 3º, nº 6 da Lei nº 101/2001, de25/08
O recorrente pugna pela nulidade da prova obtida através da ação encoberta alegando que não foi respeitado prazo de 48 horas previsto no artº 3º, nº 6 da Lei nº 101/2001, dispondo que “A Polícia Judiciária fará o relato da intervenção do agente encoberto à autoridade judiciária competente no prazo máximo de 48 horas após o termo daquela”.
Diz o recorrente que este prazo se conta a partir do último encontro ocorrido entre o agente encoberto e os suspeitos ou, quando muito, desde a última intervenção do agente encoberto, estando em qualquer dos casos ultrapassado tal prazo.
E defende que a violação deste prazo segue o mesmo regime das proibições de prova, argumentando com o facto de a ação encoberta sacrificar direitos fundamentais, entre os quais, o direito à palavra, à informação e à intimidade.
E, por último, considera que qualquer interpretação que considere que o incumprimento da prazo de 48 horas se traduz numa mera irregularidade inquina aquela norma de inconstitucionalidade material por violar os arts. 18º, 25º e 32º da CRP.
Decidindo.
Sobre esta matéria pronunciou-se a decisão recorrida em sede de fundamentação sobre a matéria de facto, considerando que o relato foi elaborado no prazo legal. “Com efeito, não é pelo facto de o último encontro que o mesmo agente encoberto participou ter ocorrido numa determinada data que faz com que a ação encoberta imediatamente cesse. E que comece de imediato a correr o prazo para elaboração e junção de relato da ação. Com efeito, como se verifica dos autos, sucederam-se vários encontros entre encoberto e arguidos e a ação encoberta foi prosseguindo”.
Mas dizemos nós, que mesmo a entender-se que o prazo foi ultrapassado como defende o recorrente, tal violação nunca operaria, do nosso ponto de vista, a nulidade da prova.
Mesmo entendendo que as proibições de prova constituem não só instrumentos de proteção de direitos individuais, mas também de interesses de caráter supraindividual, representados pelo Estado e pela comunidade, e que, enquanto valores do Estado de Direito, consubstanciam barreiras à busca da verdade, sempre se distinguem das meras regras de produção de prova que “visam apenas disciplinar o procedimento exterior da prova na diversidade dos seus métodos, não determinando a sua violação a reafirmação contrafáctica através da proibição de valoração. As regras de produção de prova configuram, na caracterização de FIGUEIREDO DIAS, “meras prescrições ordenativas de produção da prova, cuja violação não poderia acarretar a proibição de valorar como prova (...) mas unicamente a eventual responsabilidade (disciplinar, interna) do seu autor (V. Manuel de Andrade, op. cit, p. 84)
Ainda Manuel de Andrade (ob cit), citando PETERS as regras de produção da prova visam dirigir o curso da obtenção da prova sem excluir a prova. Do que aqui se trata não é de estabelecer limites à prova como sucede com as proibições de prova, mas apenas disciplinar os processos e modos como a prova deve ser regularmente levada a cabo”.
E neste caso, não se nos suscitam dúvidas que em face deste normativo em análise, estamos perante uma mera regra de produção de prova, cuja violação não arrasta consigo uma proibição de valoração, antes fará emergir uma mera irregularidade, que não tendo sido tempestivamente arguida, mostra-se sanada (artº 123º, do CPP). Tal interpretação em nada contende com os preceitos constitucionais invocados pelo recorrente.
Deste modo, considerando que o atraso na entrega do relato não configura uma proibição de prova, indefere-se a pretensão do recorrente.
3.3.4. Da ilegalidade da ação encoberta, por falta de autorização para crime de catálogo.
Invoca o recorrente o seguinte:
A ação encoberta iniciou-se com fundamento em suspeitas da prática dos crimes de contrabando qualificado (arts. 92º, nº 1, al. b) e 79º, al. d), do RGIT) e de corrupção ativa para ato ilícito (artº 374º, nº 1 do CP).
A questão que coloca o recorrente é a de saber se com base nestes dois crimes poderia ter sido autorizada a ação encoberta?
Não tem dúvidas de que o crime de corrupção caiba na al. m) do artº 2 da lei nº 101/2001, de 25/08, mas já não admite que o crime de contrabando tenha cabimento na al. o) do artº 2º do mesmo diploma, por se não tratar de “infração económica- financeira”.
E mesmo que se pudesse entender que estava incluída através deste requisito, faltava o outro requisito: de a infração económico-financeira ter sido cometida de forma organizada.
Avança que é ao tempo que têm de estar reunidos todos os requisitos, e nessa altura não estavam reunidos indícios de qualquer organização.
Conclui então que a ação encoberta se desencadeou com o fundamento na suspeita do crime de catálogo, de corrupção ativa para ato ilícito, só que o M° P° não acusou por corrupção.
E uma vez abandonada a perseguição do crime originário, não podem ser valorados os meios invasivos em matéria de conhecimentos da investigação relativos a crimes não pertencentes ao catálogo. Ou seja, não tendo sido acusado de tentativa de corrupção, tendo a ação encoberta prosseguido para investigação do crime de contrabando - que não pertence ao catálogo- os meios de prova recolhidos não podem ser utilizados para prova deste crime.
Só vários meses depois se alargou a autorização da ação encoberta para o crime de tráfico de estupefacientes
Além disso, entende o recorrente que desde o início foram violados os princípios da subsidiariedade - o crime de corrupção poderia ser investigado através de meio menos invasivo (admitindo as escutas ou através e notas marcadas), da legalidade, da necessidade e da proporcionalidade e da subsidiariedade, sendo, por esta via, nula a ação encoberta.
Assim conclui que ação encoberta é nula na sua fase inicial com todas as consequências ao nível da contaminação das provas, não podendo ser valorada para prova do crime de contrabando, nem para o de associação criminosa por não haver despacho a autorizar o alargamento.
Vejamos:
(…)
Mas o ponto está em saber se o crime de contrabando, em face dos indícios recolhidos, se enquadra na al. o) do nº 2 da lei n° 101/2001?
Temos para nós que sim.
Se atentarmos nos bens jurídicos protegidos, o crime de contrabando visa, além do mais, satisfazer os interesses económicos do Estado, sendo, por isso, enquadrável no conceito de infração económica-financeira.
E os indícios apontavam para o seu cometimento de “forma organizada” (al. o), e “com dimensão internacional (al. p), desde logo pela referência a importação de contentores com cigarros pelo porto de Lisboa, o que, por outro lado, tem de ter subjacente uma ação organizada.
Depois, a investigação não se faz com regra e esquadra, querendo dizer-se que os indícios iniciais podem vir a progredir na indiciação de uma realidade mais ampla e mais grave, como seja, neste caso, a indiciação de um associação criminosa, infração também abrangida no leque do referido art° 2°, al. i) do citado diploma, o que não poderia deixar de relevar, tratando-se de um dos crimes de catálogos.
Por último refira-se que não vemos que a consideração de o crime de contrabando enquadrar o conceito de crimes económico-financeiros possa contender com o estatuído nos arts. 2º, 29º e 202º, da CRP, como afirma o recorrente.
Temos assim que a ação encoberta foi autorizada, com observância dos requisitos legais, obedecendo aos princípios da subsidiariedade, necessidade e proporcionalidade, sendo, assim, válida, não assistindo razão ao recorrente'.
Deste Acórdão veio o ora recorrente requerer aclaração, o que foi indeferido por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/05/2013.
2. O recorrente interpôs recurso do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa para o Tribunal Constitucional, mediante longo requerimento, em que suscita três questões de inconstitucionalidade:
a) em primeiro lugar, sustenta que o Acórdão recorrido, que confirmou o despacho que negou ao recorrente o acesso a todos os elementos que compõem a ação encoberta “interpretou as normas constantes do artigo 4.º da Lei 101/2001 e do artigo 340º do CPP, com o sentido de que o tribunal ordenando a junção aos autos do relato a que alude o preceito citado, o mesmo fica cumprido com a junção de um relatório final elaborado por um inspetor da PJ. Esta interpretação colide com o disposto no artigo 32º. Nº1 e 5, do CPP, uma vez que limita desproporcionadamente o direito de defesa do arguido”.
b) em segundo lugar, sustenta que “as normas constantes dos artigos 3º, nº6, da Lei 101/2001, 123º e 190º do CPP, aqui aplicáveis por analogia (…) foram interpretadas com o sentido de que a violação do prazo de 48 horas previsto naquele preceito consubstancia uma irregularidade e por isso sanável com o decurso do tempo. Esta interpretação inquina aquelas normas de inconstitucionalidade material por contenderem com o estatuído nos artigos 18º, 32º e 34º da Constituição da República Portuguesa”.
c) Por fim, alegou o recorrente que, “a dar-se uma interpretação à norma do artigo 2.º, al. o), da Lei n.º 101/2001 no sentido de que os crimes de contrabando qualificado se enquadram no conceito de crimes económico-financeiros, a mesma padece de inconstitucionalidade material por contender com o estatuído nos artigos 2.º, 29.º, 32.º, e 202.º da CRP, uma vez que os tribunais estariam a invadir a competência legislativa de outros órgãos de soberania”.
3. O Relator redigiu o seguinte despacho, datado de 9 de julho de 2013:
“Para alegações, mais se convidando as partes a pronunciar-se sobre a possibilidade de o Tribunal Constitucional não conhecer do objeto do recurso por falta dos seus pressupostos de admissibilidade na parte em que se invoca a inconstitucionalidade dos artigos 340.º 127.º e 355.º do CPP (por os mesmos não terem sido aplicados na decisão recorrida como ratio decidendi, pois que aquela decisão assentou apenas nas normas constantes dos artigos 3.º, n.º6 e 4.º, n.º1 da Lei n.º 101/2001), bem como quanto à alegada inconstitucionalidade da norma constante do n.º 6 do artigo 3.º da Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto, por o tribunal a quo não a ter interpretado no sentido que lhe é imputado pelo recorrente (o tribunal de primeira instância considerou que o relatório foi junto aos autos no prazo legal) e, por fim, quanto à última questão de constitucionalidade invocada, respeitante à norma do artigo 2.º, al. o) da Lei n.º 101/2001, interpretada no sentido de que os crimes de contrabando qualificado se enquadram no conceito de crimes económico-financeiros (uma vez que o recorrente visa impugnar apenas e tão só o juízo de subsunção feito pelo Tribunal a quo)”.
4. O recorrente apresentou alegações, concluindo do seguinte modo:
1. Decorre inequivocamente da fundamentação do texto da decisão recorrida que esta, para estribar o indeferimento da pretensão do recorrente, se fundou nas normas constantes dos artigos 3º e 4º da Lei 101/2001, normas estas em que o recorrente fundou a alegação da inconstitucionalidade material;
2. Portanto, ainda que o recorrente tivesse suscitado a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 127º, 340º e 355º do Código de Processo Penal e a decisão recorrida nelas não se tivesse fundado, o certo é que permanecia a invocação das restantes normas: artigos 3º e 4º da Lei 101/2001;
Porém, a decisão recorrida pronunciou-se e fundou a sua decisão também sobre as normas constantes dos artigos 127º, 340 e 355º do Código de Processo Penal;
3. Por outro lado, apesar da junção aos autos do relato final, este, não é mais que o resumo feito por um agente encoberto daquilo que, no seu entender, se passou ao longo daquele período. Ora, este relato final pode até ser um embuste para a defesa. Pode deturpar o que se passou na ação encoberta. Dificilmente o agente encoberto que subscreveu o relato final consignará, caso tal fosse verdade, que provocou os suspeitos à prática do crime. Dificilmente o agente encoberto, que subscreveu o relato final, dará a conhecer que o colaborador da Policia provocou os suspeitos.
Acrescem ainda que há dados/elementos constantes da ação encoberta que só a defesa sabe se têm ou não interesse para a sua estratégia (exercício do contraditório);
4. Acresce que, um dos elementos mais importantes para o arguido exercer os seus mais elementares direitos é o acesso aos despachos de autorização e de controlo. O recorrente ficou sem saber se, nestes autos, houve autorização e controlo judicial. No mínimo o arguido sempre assistiria o direito de sindicar a legalidade da ação encoberta. Ora, não há, não vislumbramos modo de controlar a legalidade de uma ação encoberta senão através do acesso aos despachos que a autorizaram bem como às diligências de prova constantes da respetiva ação encoberta;
5. A impossibilidade de o arguido aceder a todos os elementos da ação encoberta, designadamente os despachos de autorização e de controlo, atentam contra os princípios do contraditório, da informação do direito de audiência bem como constituem uma manifesta desproporcionalidade do direito de defesa do arguido inquinando a interpretação das referidas normas de inconstitucionalidade material;
6. É sobre a fundamentação da decisão do Tribunal da Relação que o recorrente incide a sua discordância e, consequentemente, suscita a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 3º, nº6 da Lei nº101/2001, sendo certo que a decisão recorrida se pronúncia sobre o prazo de 48 horas (fundando a sua decisão na sua ultrapassagem);
7. A norma constante do artigo 3º, nº6 da Lei nº101/2001 visa proteger direitos fundamentais do cidadão. O prazo apertado de 48 horas tem em vista permitir à entidade judiciaria um controlo da atividade do Órgão de Policia Criminal, uma vez que, a ação desta contende com direitos fundamentais, designadamente o direito à palavra e à informação;
8. O recorrente suscitou esta questão segundo uma determinada dimensão normativa: a norma constante do artigo 2º, al. o), da Lei nº101/2001 foi interpretada com o sentido de ser possível levar a efeito uma ação encoberta, além do mais, com o fundamento no cometimento de um crime de catálogo: contrabando qualificado. Ora, o recorrente suscita a inconstitucionalidade da interpretação que permite desencadear uma ação encoberta na interpretação segundo a qual um crime o crime económico-financeiro abarca o crime de contrabando. Nesta perspetiva interpretativa o julgador estaria a criar um novo instrumento invasivo dos direitos fundamentais, – o baseado em crimes de contrabando –, a ação encoberta;
9. Resumindo o pensamento plasmado no parecer de Costa Andrade, “É neste horizonte axiológico e político-criminal que, em boa hermenêutica, deve buscar-se o sentido e alcance do conceito “infrações económico-financeiras” no contexto destes dispositivos legais. E isto a dar-se como adquirida a sua solvabilidade constitucional, coisa que está longe de ter por si a força da evidência. Isto tendo em conta a manifesta violação do princípio da reserva de lei, nas suas dimensões de determinabilidade e clareza. Basta perguntar: alguém pode com segurança, enumerar, de forma cabal e esgotante, todas as infrações subsumíveis no conceito, com exclusão de todas as que não lhe pertencem? Pôr assim o problema é dar-lhe a resposta: uma resposta abertamente negativa, outra forma de dizer violação do princípio de determinabilidade.”
5. O Ministério Público apresentou alegações, concluindo do seguinte modo:
“VI Conclusões
41. O presente recurso de constitucionalidade foi interposto pelo arguido A., em 29 de maio de 2013, a fls. 8412 a 8424 dos autos supraepigrafados, nele sendo suscitadas diversas questões de constitucionalidade, identificadas pelo subscritor sob três distintas epígrafes, a saber:
“1. Da não junção aos autos de todos os elementos da ação encoberta;
2. Da consequência jurídica da violação do prazo de 48 horas a que se refere o artigo 3º, nº 6, da Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto; e
3. Violação da separação de poderes”.
42. No que concerne à última das questões, a respeitante à apreciação da norma ínsita na alínea o) do artigo 2.º da Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto, verifica-se que o recorrente não pretende ver apreciada a desconformidade entre aquela norma e quaisquer princípios ou regras constitucionais mas, meramente, impugnar o juízo subsuntivo a que procedeu o tribunal «a quo» que, para além do mais, não é escrutinável pelo Tribunal Constitucional.
43. Pela razão exposta, não deverá o Tribunal Constitucional, nesta parte, tomar conhecimento da questão invocada pelo recorrente, atenta a sua inadmissibilidade, uma vez que não existe um verdadeiro objeto normativo na suposta matéria de constitucionalidade suscitada.
44. Também no tocante à matéria do recurso subordinada à epígrafe “da consequência jurídica da violação do prazo de 48 horas a que se refere o artigo 3º, nº 6, da Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto”, somos levados a concluir que dela não deverá o Tribunal Constitucional, igualmente, tomar conhecimento.
45. Efetivamente, atendendo a que o tribunal «a quo» não interpretou a norma contestada no sentido invocado pelo recorrente, no caso dos presentes autos, uma vez que não considerou que tivesse ocorrido qualquer violação do prazo estabelecido no artigo 3º, nº 6, da Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto, apura-se não pretender o recorrente questionar a desconformidade da norma legal com o referente constitucional mas, unicamente, impugnar a aplicação do direito ao caso concreto, por parte da decisão recorrida.
46. No que respeita à, igualmente suscitada, inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 340.º, 127.º e 355.º do Código de Processo Penal, demonstram os autos que tais normas não constituíram o fundamento jurídico determinante da decisão recorrida, não tendo sido a sua ratio decidendi, razão pela qual, também aqui, deverá o Tribunal Constitucional decidir pela não cognoscibilidade da questão apresentada pelo recorrente.
47. Restando, por fim, a matéria da alegada inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 101/2001, por referência ao disposto no n.º 6 do artigo 3.º do mesmo diploma, dir-se-á que, também quanto a ela, deverá o Tribunal Constitucional decidir pelo não conhecimento de tal questão.
48. O recorrente alega que o tribunal «a quo» interpretou a norma contestada “com o sentido de que o tribunal ordenando a junção aos autos do relato a que alude o preceito citado, o mesmo fica cumprido com a junção de um relatório final elaborado por um inspetor da PJ”. Ora, apura-se que tal interpretação nunca foi perfilhada pelo tribunal recorrido.
49. Ou seja, nunca a douta decisão impugnada formulou a interpretação normativa que o recorrente engendrou no seu requerimento, tendo-se limitado a, aplicando a norma constante do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 101/2001, ao caso concreto, impedir o acesso ilimitado do arguido à ação encoberta, não tendo, pois, a aludida interpretação, constituído a ratio decidendi da deliberação.
50. Acresce que, independentemente dos vícios formais que impedem o conhecimento, por parte do Tribunal Constitucional, da questão suscitada, sempre se dirá que, mesmo substantivamente, seria a mesma infundada, uma vez que a Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto, garante aos arguidos o pleno exercício do contraditório e das garantias de defesa em processo criminal, ao assegurar-lhes o confronto processual com toda a prova recolhida pelos agentes encobertos, nomeadamente através da inquirição de tais agentes em sede de julgamento, como, aliás, ocorreu no caso vertente.
Por força do acabado de expor, entende o Ministério Público, aqui recorrido, que não deverá o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do objeto do presente recurso”.
6. Na sequência de notificação das alegações do Ministério Público, o recorrente veio responder nos seguintes termos:
1. Violação da separação de poderes
Refere o recorrido, a este propósito, que o recorrente não pretende questionar a conformidade da norma da norma da al. o) do art. 2.º da Lei 101/2001 de 25 de agosto, mas sim o juízo de subsunção da norma infraconstitucional. Cita depois uma parte, escolhida, das suas alegações.
O recorrente, logo no seu requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional colocou assim a questão:
Alegou o recorrente que, a:dar-se uma interpretação à norma do artigo 2º al.. o), da Lei nº 101/2001 no sentido de que os crimes de contrabando qualificado se enquadram no conceito de crimes económico-financeiros, a mesma padece de inconstitucionalidade material por contender com o estatuído nos artigos 2º, 29º, 32º e 202º da CRP, uma vez que os tribunais estariam a invadir a competência legislativa de outros órgãos de soberania
Depois, nas suas alegações para este TC, acrescenta:
Portanto, o recorrente não se insurge contra o juízo de subsunção – apesar de a questão também poder ser vista nesta perspetiva – mas sim, ou melhor, sobretudo, contra a interpretação que permite suportar, como crime de catálogo, o crime de contrabando qualificado. Neste sentido o julgador ultrapassou a sua jurisdição invadindo a competência exclusiva do legislador.
Ainda, a decisão sumária invocada, porque proferida no contexto diferente, e tendo por base uma decisão diferente, não pode ser para aqui convocada.
Pelo que, salvo o devido respeito por outra posição, a argumentação do MP deve ser declarada improcedente.
2. Violação do prazo de 48 horas
A razão de decidir da decisão recorrida foi inquestionavelmente com base na norma constante do artigo 3º, nº 6 da Lei 101/2001, como resulta claramente da mesma, “E neste caso, não se nos suscitam dúvidas que em face deste normativo em análise, estamos perante uma mera regra de produção de prova, cuja violação não arrasta consigo uma proibição de valoração, ante fará emergir uma mera irregularidade, que não tendo sido tempestivamente arguida, mostra-se sanada (art. 123 do CPP). Tal interpretação em nada contende com os preceitos constitucionais invocados pelo recorrente.”
O centro argumentativo da decisão rodeia a interpretação da norma constante do artigo 3º, nº 6 da Lei 101/2001, como resulta abertamente da argumentação dirigida, quase em exclusivo, para aquela norma.
Por outro lado, já por várias vezes o Tribunal Constitucional se pronunciou quanto à qualificação de um vício como irregularidade ou nulidade.
Na verdade, por ocasião do acórd5o 350/2006 foi objeto a seguinte questão de inconstitucionalidade:
Constitui, assim, objeto do presente recurso a questão de constitucionalidade da interpretação das normas dos artigos 61.º, n.º 1, alínea b) (“1. O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as exceções da lei, dos direitos de: (...) b) Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete; (...)”, 118.º, n.ºs 1 e 2 (“1. A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei. 2. Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular. (...)”, 119.º (que enumera as nulidades insanáveis, referindo, na alínea c), “a ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência”), 120.º (que enumera as nulidades dependentes de arguição), 123.º, n.º 1 (“1. Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado”), e 194.º, n.º 2 (“2. A aplicação referida no número anterior [aplicação de medida de coação, por despacho do juiz, sob promoção do Ministério Público] é precedida, sempre que possível e conveniente, de audição do arguido e pode ter lugar no ato do primeiro interrogatório judicial”), do CPP, no sentido de que constitui mera irregularidade, a arguir no próprio ato, a prolação de despacho judicial a determinar a aplicação da medida de coação de prisão preventiva do arguido, na sequência de promoção do Ministério Público, sem que ao arguido, representado por mandatário constituído, presente ao ato, tenho sido dado oportunidade de se pronunciar sobre essa promoção, e sem se invocar razão justificativa da impossibilidade ou inconveniência dessa audição.
Estava em causa a classificação de um vício pelo Tribunal da Relação num determinado acórdão como irregularidade, quando o recorrente afirmava em recurso que atentos os valores constitucionais em causa, deveria ser tratada como nulidade.
Ou seja, o tribunal constitucional já se pronunciou diretamente quanto classificação de determinado vício como irregularidade ou nulidade.
O mesmo aconteceu em vários outros acórdãos deste Tribunal ali citados:
- 429/2005
* se face aos princípios do contraditório e garantias de defesa, determinada nulidade deveria ser sanável ou não;
- 208/2003
* se a omissão da documentação das declarações orais até final da audiência constituía ou não uma mera irregularidade;
- 203/2004
* que estava em causa a arguição no próprio ato de irregularidade.
Pelo que salvo sempre o devido respeito por outra posição, deve improceder o pedido do recorrido para que este TC não conheça desta questão.
3. Da não junção aos autos de todos os elementos da ação encoberta
A questão de constitucionalidade que o recorrente suscitou prende-se com a circunstância da possibilidade de ser valorado o meio de prova ação encoberta sem o recorrente ter conhecimento (constarem dos autos) os pressupostos da sua validade, ou seja, os despachos que autorizaram esse meio intrusivo.
A douta decisão reclamada fundamenta o não conhecimento do recurso do recorrente na circunstância de a decisão recorrida ter sustentado a sua decisão em que o controlo da legalidade da ação encoberta é exercido pelo MP e pelo juiz de instrução nos termos dos n.ºs 3 e 4 do art. 3 da lei 101/2001 sem que o arguido tenha o direito de a exercer.
Ora, o recorrente alegou no seu recurso para o Constitucional, além do mais, que “a única interpretação de acordo com a constituição é aquela que concede o direito ao arguido de aceder aos elementos da ação encoberta, sobretudo aos despachos que autorizaram e controlaram a respetiva ação a fim de poder exercer o contraditório, como seja sindicar a legalidade da mesma”.
Portanto, entendemos que a questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente – obrigatoriedade de constarem dos autos os pressupostos da validade da ação encoberta sobretudo para o arguido sindicar a validade dos respetivos despachos de autorização – foi efetivamente apreciado pela decisão recorrida – esta decidiu que esses despachos não têm de constar dos autos não tendo assim o arguido direito de os sindicar, aliás, mais decidiu que é ao Ministério público e Juiz de Instrução que compete essa sindicância.
Não deve assim a questão prévia apresentada pelo recorrido ser procedente.
Por outro lado é bem diferente a decisão recorrida aqui e a que esteve em análise na decisão sumaria 201/2013.
Sumariamente, o que o acórdão recorrido aqui refere – bem diferente da argumentação do TRC – é que a defesa não tem a possibilidade de sindicar a legalidade da ação encoberta, porque esta é controlada pela acusação e pelo juiz.
Aliás, o acórdão recorrido, notou bem que o recorrente não poderia sequer aceder aos despachos de autorização e validação da ação encoberta, independentemente do acesso irrestrito a todo o seu conteúdo.
Na verdade, a estes elementos fundamentais disse que não!
Questão que o recorrente também aqui discute.
Pelo que no vemos impedimento ao conhecimento de mais esta questão.
Cumpre por fim dizer, que não obstante o recorrido ter doutamente apresentado variada argumentação para o não conhecimento das questões objeto deste recurso, quanto ao seu mérito, limitou-se ao ponto 39.
Ignora, por certo, salvo o devido respeito, a propósito do seu argumento, que as testemunhas prestam depoimento sobre factos que tem conhecimento direto – n.º 1 do art. 128.º do CPP – não sobre atos processuais de que, além do mais não foram autores nem são da sua competência.
Ou seja, aceita o recorrido, tal como o acórdão censurado, que o arguido não tem o direito de controlar a legalidade da ação encoberta através do acesso aos despachos de autorização e validação, e/ou outros atos ou diligências de prova ao constantes, pois esse exercício compete ao MP e juiz de instrução.
Devem assim as questões prévias apresentadas pelo recorrido serem declaradas como improcedentes e o recurso merecer provimento.
II Fundamentação
7. Admitido o recurso, cumpre, antes de mais, decidir se é possível conhecer do seu objeto, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76º, n.º 3, da LTC). Também o facto de as partes terem sido notificadas para alegar não implica que se tenha de conhecer do objeto do presente recurso. Tanto assim é que as mesmas foram notificadas para se pronunciarem sobre o eventual não conhecimento do mesmo.
8. Os recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade estão condicionados à verificação de determinados pressupostos. Em primeiro lugar, são recursos respeitantes a questões de constitucionalidade normativa, “identificando-se assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Em segundo lugar, a norma objeto do recurso tem de ter constituído a ratio decidendi da decisão recorrida – i.e., tem de haver exata correspondência entre a norma imputada de inconstitucional pelo recorrente e aquela que fundamentou a decisão do Acórdão recorrido. Atenta a natureza instrumental do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, apenas assim um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá repercutir-se efetivamente na solução a dar ao caso concreto.
Nos presentes autos, como se verá sumariamente de seguida, é manifesto que tal não aconteceu no que toca às três questões de constitucionalidade suscitadas pelo recorrente.
9. A primeira questão respeita às normas constantes do artigo 4.º, n.º1, por referência ao artigo 3.º, n.º6, da Lei 101/2001, de 25 de agosto, e do artigo 340.º do CPP, interpretadas no sentido de que o tribunal, ordenando a junção aos autos do relato a que alude o referido artigo 4.º, o mesmo fica cumprido com a junção de um relatório final elaborado por um inspetor da PJ. Foi esta (como aliás o recorrente refere no requerimento de interposição de recurso e nas suas alegações), que foi a questão de inconstitucionalidade suscitada durante o processo (cfr. fls. 8430).
É certo que no requerimento de interposição de recurso perante o Tribunal Constitucional, o recorrente invoca ainda que, existindo uma ação encoberta mas não se encontrando nos autos os requisitos de que depende a sua validade, esse meio de prova não pode ser valorado contra o arguido sob pena de as normas constantes dos artigos 127.º, 355.º do CPP, por referência aos artigos 3.º e 4.º da Lei 101/2001 padecerem de inconstitucionalidade material por contenderem com o princípio do contraditório previsto no artigo 32.º n.º 1 e 5 da CRP. Nesta segunda formulação, o recorrente acrescenta, pois, três preceitos à primeira (os artigos 127.º, 355.º do CPP, e artigo 3.º da Lei 101/2001).
Não obstante, é a primeira formulação que deve ser tida em conta, por ter sido a que foi suscitada perante o tribunal a quo, de forma a este poder tomar conhecimento atempadamente desta questão de constitucionalidade, e assim estar em condições de, eventualmente, usar do poder que lhe garante o artigo 204.º da Constituição. Assim, tal como se referiu no convite feito ao recorrente por despacho datado de 9 de julho de 2013, apenas se analisará da aplicação pela decisão recorrida dos artigos 3.º, n.º6 e 4.º, n.º1 da Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto.
9.1. Neste contexto, há que analisar da possibilidade de se conhecer da inconstitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 4.º (por referência ao artigo 3.º, n.º6) da Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto, interpretada no sentido de que o tribunal, ordenando a junção aos autos do relato a que alude o preceito citado, o mesmo ficar cumprido com a junção de um relatório final elaborado por um inspetor da PJ. Considerou o Ministério Público que esta questão não podia ser conhecida pelo Tribunal Constitucional. O recorrente, em resposta, vem advogar que “a questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente – obrigatoriedade de constarem dos autos os pressupostos da validade da ação encoberta sobretudo para o arguido sindicar a validade dos respetivos despachos de autorização – foi efetivamente apreciado pela decisão recorrida”.
Considera o recorrente que a interpretação da norma resultante da conjugação desses preceitos “com o sentido de que o tribunal ordenando a junção aos autos do relatório final elaborado por um inspetor da PJ (…) colide com o disposto no artigo 32.º, n.º1 e 5 do CPP, uma vez que limita desproporcionadamente o direito de defesa do arguido”.
A questão ora suscitada pelo recorrente, já fora por ele, de modo idêntico, invocada no Processo n.º 268/13, que correu termos na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, tendo sido solucionada pela Decisão Sumária n.º 201/2013 da seguinte forma:
“O recorrente A. pretende a apreciação das «normas constantes do artigo 4º da Lei 101/2001 e do artigo 340º do CPP, com o sentido de que o tribunal ordenando a junção aos autos do relato a que alude o preceito citado, o mesmo fica cumprido com a junção de um relatório final elaborado por um inspetor da PJ».
Constitui requisito do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é questionada pelo recorrente. Requisito que não se pode dar por verificado nos presentes autos.
Com efeito, o que decorre da decisão recorrida é antes que o relato a que os artigos 3.º, n.º 6, e 4.º, n.º 1, da Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto, fazem referência não incide sobre a publicitação do procedimento, onde se incluem os despachos que autorizam e validam a ação encoberta.
A não verificação daquele requisito do recurso de constitucionalidade obsta, nesta parte, ao conhecimento do seu objeto, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC”.
Reagindo à reclamação apresentada, reiterou o Tribunal Constitucional a posição assumida, decidindo no Acórdão n.º 470/2013, que:
“Na decisão sumária reclamada entendeu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto, na parte relativa à apreciação da constitucionalidade das «normas constantes do artigo 4º da Lei 101/2001 e do artigo 340º do CPP, com o sentido de que o tribunal ordenando a junção aos autos do relato a que alude o preceito citado, o mesmo fica cumprido com a junção de um relatório final elaborado por um inspetor da PJ», por não se poder dar como verificado o requisito da aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, de tal norma. Para contrariar este entendimento, o reclamante transcreve uma parte da decisão recorrida, concluindo que «uma interpretação que limite o arguido de aceder a todos os elementos constantes da ação encoberta inquina de inconstitucionalidade aquelas normas jurídicas.
Importa ter presente que o Tribunal da Relação de Coimbra acordou que a decisão que indeferiu a integração nos autos da generalidade dos elementos da ação encoberta, por não estar prevista na Lei n.º 101/2001 e por haver razões que o justifiquem não merece censura. E, para assim decidir, interpretou os artigos 3.º, n.º 6, e 4.º, n.º 1, da Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto, no sentido de que o relato a que fazem referência não incide sobre a publicitação do procedimento, onde se incluem os despachos que autorizam e validam a ação encoberta. Para o que importava apreciar e decidir não relevou, pois, de todo, a interpretação de que, ordenando o tribunal a junção aos autos do relato a que alude o preceito citado, o mesmo fica cumprido com a junção de um relatório final elaborado por um inspetor da PJ. Por outro lado, entendeu que dos preceitos legais em causa não decorre a integração nos autos do processo, dos elementos, da ação encoberta.
Ora, é afinal contra este entendimento que o recorrente se insurge – «uma interpretação que limite o arguido de aceder a todos os elementos constantes da ação encoberta inquina de inconstitucionalidade aquelas normas jurídicas». Tal entendimento (a integração nos autos da generalidade dos elementos da ação encoberta não está prevista na Lei n.º 101/2001) não encontra, porém, qualquer suporte nas normas cuja apreciação foi requerida pelo recorrente – as «normas constantes do artigo 4º da Lei 101/2001 e do artigo 340º do CPP, com o sentido de que o tribunal ordenando a junção aos autos do relato a que alude o preceito citado, o mesmo fica cumprido com a junção de um relatório final elaborado por um inspetor da PJ».
Há que confirmar, pois, a decisão reclamada”.
9.2. O recorrente vem dizer, na resposta ao MP, que a decisão aqui recorrida e a que esteve em análise na decisão sumaria 201/2013 são diferentes. No entanto, no caso vertente, como se verá de seguida, também aqui o tribunal a quo, apesar de se ter fundado nas normas constantes dos artigos 4.º, n.º1 e 3.º, n.º6 da Lei 101/2001, não as aplicou com o sentido atribuído pelo recorrente às mesmas.
Senão vejamos. A fls.8430 do requerimento de interposição de recurso, o recorrente afirma, como se viu, que “o douto despacho interpretou a[s] norma[s] constante[s] do artigo 4º da Lei 101/2001 (…) com o sentido de que o tribunal ordenando a junção aos autos do relato a que alude o preceito citado, o mesmo fica cumprido com a junção de um relatório final elaborado por um inspetor da PJ”.
Ora, em boa verdade, o acórdão recorrido não aplicou a norma constante do artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 101/2001, por referência ao disposto no n.º 6 do artigo 3.º do mesmo diploma nesse sentido. O Tribunal da Relação de Lisboa só menciona o artigo 4.º, n.º1 da Lei nº 101/2001 para explicitar que o mesmo, quando se refere à junção do relatório da PJ respeitante à realização da ação encoberta, o faz com o objetivo de preservar a proteção do agente encoberto – como aliás, decorre da epígrafe (“proteção de funcionário e de terceiro”) e ratio desse mesmo preceito. Assim o demonstra a seguinte passagem: “a junção aos autos desse relato só será ordenada, se for reputada “absolutamente indispensável em termos probatórios” (cfr. artº 4º, nº 1). Naturalmente, em nome da proteção que é devida ao agente encoberto, cuja verdadeira entidade tem que ser preservada. Daqui resulta desde logo que a ação encoberta é levada a cabo, sempre, com o controle de uma autoridade judiciária, e a lei apenas prevê a junção aos autos do relato da PJ que vem previsto no nº 6 do artº 3, se a autoridade judiciária concluir pela sua indispensabilidade em termos probatórios (constituindo neste sentido um meio de prova)”.
Assim, nem a norma constante do 4.º, n.º1 da Lei nº 101/2001, nem a aplicação que o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa fazem da mesma, respeitam ao âmbito dos elementos que se podem juntar ao processo quando neste tenha sido levada a cabo uma ação encoberta. Quer a referida norma, quer o aresto em análise limitam-se a referir que, em atenção à proteção do agente encoberto, apenas se junta o referido relatório se e quando isso for julgado indispensável. E não, como pretende o recorrente, que apenas a junção do relatório é admissível.
9.3. Se o Tribunal da Relação de Lisboa em algum momento teceu algumas considerações sobre se o referido relatório seria ou não suficiente para a garantia dos direitos de defesa do arguido, tê-lo-á feito com base num outro qualquer preceito, que não o artigo 4.º, n.º1, - nomeadamente, os n.º 3 e 4 do artigo 3.º (cuja constitucionalidade não constitui, neste ponto, objeto do recurso, como resulta do requerimento de interposição do recurso). De facto, é com base nessas disposições, entre outras considerações, – e não na norma constante do artigo 4.º, n.º1, da Lei n.º 101/2001 -, que o tribunal a quo desenvolve toda a argumentação respeitante à suficiência das garantias constitucionais do arguido. O Tribunal da Relação de Lisboa fundamenta-se nesses preceitos, bem como no conteúdo do próprio relatório (de onde consta referência à autorização e posterior validação do mesmo por autoridade judiciária), no prazo de 48 h previsto para a comunicação do relato, e ainda na possibilidade de inquirição dos agentes em audiência (que aliás, ocorreu no processo) para demonstrar que se preveem garantias suficientes para a efetivação dos direitos de defesa do arguido. É essa a ratio decidendi do Acórdão recorrido, e não a norma constante do artigo n.º 1 do artigo 4.º da Lei 101/2001, de 25 de agosto, destinada à proteção do agente encoberto, que fundou a solução alcançada pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
9.4. Isto significa, assim, que, pura e simplesmente, o Acórdão recorrido não aplicou a norma constante do n.º1 do artigo 4.º da Lei nº 101/2001 com o sentido aqui imputado de inconstitucional pelo recorrente.
Por força do exposto, não deverá o Tribunal Constitucional conhecer desta questão de constitucionalidade apresentada pelo ora recorrente.
10. A segunda questão de inconstitucionalidade diz respeito à norma constante do n.º 6 do artigo 3.º da Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto, interpretada no sentido de que a apresentação do relatório para além do prazo nela estipulado, ou seja, 48 horas, tem como consequência uma irregularidade.
Ora, o Tribunal Constitucional não pode conhecer desta questão, pois também esta norma não foi aplicada pelo tribunal a quo com o sentido aqui invocado. De facto, contrariamente ao que o recorrente alega, o Tribunal da Relação de Lisboa não chegou, sequer, a considerar que o referido prazo de 48 horas estava ultrapassado. Assim, atente-se na seguinte passagem do aresto recorrido, que é bem clara neste ponto: “Sobre esta matéria pronunciou-se a decisão recorrida em sede de fundamentação sobre a matéria de facto, considerando que o relato foi elaborado no prazo legal. «Com efeito, não é pelo facto de o último encontro que o mesmo agente encoberto participou ter ocorrido numa determinada data que faz com que a ação encoberta imediatamente cesse. E que comece de imediato a correr o prazo para elaboração e junção de relato da ação. Com efeito, como se verifica dos autos, sucederam-se vários encontros entre encoberto e arguidos e a ação encoberta foi prosseguindo»”. O que o recorrente refere nas suas alegações como tendo constituído a ratio decidendi do Tribunal da Relação de Lisboa foi, em boa verdade, um simples obiter dictum, como aliás, ressalta dos termos em que o aresto prossegue: “Mas, dizemos nós, que mesmo a entender-se que o prazo foi ultrapassado como defende o recorrente, tal violação nunca operaria, do nosso ponto de vista, a nulidade da prova”. Como se denota desta sequência argumentativa, a decisão do tribunal a quo assenta primordialmente na consideração de que não ocorreu qualquer violação de prazo. As demais considerações são meramente suplementares, e não, como pretende o recorrente, o inverso.
Ora, não tendo o tribunal a quo considerado que tenha ocorrido qualquer violação do prazo estabelecido no artigo 3º, nº 6, da Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto, verifica-se que a norma, ou sentidos normativos imputados de inconstitucionais pelo recorrente não coincidem com aqueles que constituíram os fundamentos da decisão recorrida.
Não se verifica assim, a exigida coincidência perfeita entre a norma – ou interpretação normativa – imputada de inconstitucional no requerimento de interposição do recurso, e a norma – ou interpretação normativa – efetivamente aplicada pelo tribunal a quo para fundamentar a decisão final.
Assim sendo, resta concluir pela impossibilidade de conhecer também desta questão de constitucionalidade, por falta de um dos pressupostos legais de admissibilidade do recurso, a saber: ter a decisão recorrida aplicado, como ratio decidendi, a exata interpretação normativa do artigo 3º, nº 6, da Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada.
11. A última questão de inconstitucionalidade suscitada diz respeito à norma do artigo 2.º, al. o) da Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto, no sentido de que os crimes de contrabando qualificado se enquadram no conceito de crimes económico-financeiros.
Conforme já sugerido no despacho de fls. 8459, verifica-se que a questão de constitucionalidade aqui suscitada também não cumpre um dos requisitos exigidos no sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade. De facto, o recorrente não pretende ver apreciada a desconformidade entre aquela norma e quaisquer princípios ou regras constitucionais. A verdadeira pretensão da recorrente é discutir no presente recurso se o tribunal recorrido esteve bem ao subsumir o crime de contrabando qualificado na referida norma. Demonstrativa dessa sua pretensão é, aliás, como bem nota o Ministério Público nas suas alegações, a seguinte afirmação do próprio recorrente: “(…) a norma constante do artigo 2º, al. o), da Lei nº 101/2001 foi interpretada com o sentido de ser possível levar a efeito uma ação encoberta, além do mais, com o fundamento no cometimento de um crime de catálogo: contrabando qualificado. Ora, o recorrente suscita a inconstitucionalidade da interpretação que permite desencadear uma ação encoberta na interpretação segundo a qual [um crime] o crime económico-financeiro abarca o crime de contrabando”.
11.2. Ora, como assim se vê, e contrariamente ao que o recorrente alega, não é a inconstitucionalidade de uma norma, mas do juízo subsuntivo feito em concreto pelo Tribunal a quo, que considerou que o conceito de “crime económico-financeiro” englobava o crime de contrabando, para efeitos de aplicação de uma ação encoberta, que é aqui questionado.
E não se diga que se trata de uma interpretação normativa suscetível de generalização. O Tribunal tem reiteradamente afirmado que nada obsta a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito. No entanto, como se referiu no Acórdão nº 138/2006 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), a “distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto”.
Ora, no caso concreto, tal como se acabou por decidir também no já referido Acórdão n.º 470/2013, a interpretação normativa feita pelo Tribunal da Relação de Lisboa foi modelada por «elementos circunstanciais» que constam do acórdão. Atente-se, para este efeito, na seguinte passagem do mesmo: “Se atentarmos nos bens jurídicos protegidos, o crime de contrabando visa, além do mais, satisfazer os interesses económicos do Estado, sendo, por isso, enquadrável no conceito de infração económica-financeira. E os indícios apontavam para o seu cometimento de “forma organizada” (al. o), e “com dimensão internacional (al. p), desde logo pela referência a importação de contentores com cigarros pelo porto de Lisboa, o que, por outro lado, tem de ter subjacente uma ação organizada. Depois, a investigação não se faz com regra e esquadra, querendo dizer-se que os indícios iniciais podem vir a progredir na indiciação de uma realidade mais ampla e mais grave, como seja, neste caso, a indiciação de um associação criminosa, infração também abrangida no leque do referido art° 2°, al. i) do citado diploma, o que não poderia deixar de relevar, tratando-se de um dos crimes de catálogos”.
11.3. Mas se assim é, i.e., se o que verdadeiramente se pretende discutir é o juízo normativo que foi feito pelo tribunal a quo, há que relembrar a jurisprudência há muito firmada pelo Tribunal Constitucional, no sentido de que apenas normas podem constituir objeto do recurso de constitucionalidade. De facto, tem sido sucessivamente repetido que no sistema português, os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade têm necessariamente objeto normativo, devendo incidir sobre a apreciação da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas, e não sobre a apreciação de desconformidade constitucional imputada pelo recorrente à decisão judicial, em si mesmas considerada, atenta a inexistência no nosso ordenamento jurídico-constitucional da figura do “recurso de amparo” contra atos concretos de aplicação do Direito.
Assim, também esta questão não poderá ser conhecida, uma vez que o recorrente visa impugnar apenas e tão só o juízo de subsunção feito pelo Tribunal a quo, faltando assim a verificação de um dos pressupostos mencionados no que toca ao conhecimento dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade, a saber: a natureza normativa da questão de constitucionalidade posta no requerimento de interposição de recurso. Reportando-se o vício alegado à decisão judicial em si mesma, está o mesmo fora do âmbito dos poderes de cognição deste Tribunal, o que obsta ao seu conhecimento.
III Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional, em não conhecer do objeto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em vinte (20) unidades de conta.
Lisboa, 7 de janeiro de 2014. – Lino Rodrigues Ribeiro – Carlos Fernandes Cadilha - Maria José Rangel de Mesquita – Maria Lúcia Amaral.