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Processo n.º 539/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em Conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, proferido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que negou provimento ao recurso interposto pelo Réu A., veio este interpor recurso da mesma decisão para o Tribunal Constitucional, através de requerimento, que se transcreve:
«A., R. e Recorrente nos autos, não se conformando com o, aliás douto, Acórdão que não acolheu os argumentos do Recorrente, no sentido da aplicação do artigo 3º da Lei 14/2009 de 1/4, tendo-o declarado inconstitucional, vem, nos termos da Lei 28/82 de 15/11 e suas posteriores alterações (Lei 143/85, Lei 88/95, Lei 13-A/98) nomeadamente os seus artigos 70 nº 1 a1. b) e 72 nº al. b) e nº 2, interpor o competente Recurso para o Tribunal Constitucional, pretendendo que se sentencie, que foi violado o artº 20 nº 4 da Constituição da República Portuguesa, sendo que o Recorrente foi confrontado com a decisão de inconstitucionalidade na Sentença, da qual recorre para o Tribunal da Relação do Porto e, após, para o Supremo Tribunal de Justiça, que continua a reafirmar a inconstitucionalidade do art. 3º da Lei 14/09 e da aplicação da caducidade do prazo de 10 anos previsto no art. 1817 nº 1 do C.C. com a redação da Lei 14/09 de 1/4 à presente ação que foi intentada em 26/01/2006.»
2. Pela decisão sumária n.º 490/2013, proferida ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso, com os seguintes fundamentos:
«4. Sabido que a decisão que admitiu o recurso não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional) e, entendendo-se que, no caso em apreço, o recurso não é admissível, cumpre proferir decisão sumária, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
5. Como se disse, o recorrente dirige-se a este Tribunal ao abrigo da alínea b) do artigo 70.º da LTC, norma em que se prevê a aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Ora, o recorrente dirige o recurso à recusa de aplicação do artigo 3.º da Lei 14/09, de 1 de abril, em conjugação com o n.º 1 do artigo 1817.º, do Código Civil, na redação conferida pela mesma lei, o que não encontra cabimento na referida alínea do n.º 1 do artigo 70.º, mas sim na alínea a) do preceito.
Sendo entendimento pacífico que o requerimento de interposição de recurso fixa irremediavelmente o seu objeto, sem lugar à convolação da espécie de recurso exercidas pelo recorrente, cumpre afastar o conhecimento do recurso, por inidoneidade objetiva.
Dito isto, importa assinalar que o entendimento constante dos acórdãos do Tribunal Constitucional referidos na decisão recorrida tem sido reiterado em pronúncias posteriores e recentes.»
3. Inconformado, o recorrente reclama da decisão sumária para a conferência, nos seguintes termos:
«RECLAMAÇÃO que apresenta para a Conferência o Recorrente A. ao abrigo do nº 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, nos termos e com os seguintes fundamentos:
1º
O Recorrente requereu a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional junto do Tribunal a quo em 29/5/2013.
2º
No Requerimento de Recurso o Recorrente disse expressamente que recorria por não terem sido acolhidos os seus argumentos 'no sentido de aplicação do artigo 3º da Lei 14/2009, de 1/4, tendo-o declarado inconstitucional'.
3º
Por lapso, o Recorrente mencionou que o fazia ao abrigo 'da Lei 28/82 de 15/11 e suas posteriores alterações (Lei 143/85, Lei 88/95, Lei 13-A/98) nomeadamente os seus artigos 70º, nº 1, al. b) e 72º nº al. b) e nº 2'.
4º
Ou seja, apesar de dizer que recorre pugnando pela aplicação de norma que o Tribunal a quo recusou aplicar com fundamento em inconstitucionalidade, que em bom rigor corresponde à alínea a) do art. 70º da LCT; menciona a alínea b) que corresponde a aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada.
5º
Aliás, é expressamente reconhecido na decisão sumária deste Tribunal que 'o recorrente dirige o recurso à recusa de aplicação do artigo 3º da Lei 14/09, de 1 de abril, em conjugação com o nº 1 do artigo 1817º, do Código Civil, na redação conferida pela mesma lei, o que não encontra cabimento na referida alínea do nº 1 do artigo 70º, mas sim na alínea a) do preceito'.
6º
Resulta do disposto no nº 5 do art. 75º-A da LCT, 'se o requerimento de interposição do recurso não indicar algum dos elementos previstos no presente artigo, o juiz convidará o requerente a prestar essa indicação no prazo de 10 dias'.
7º
Acrescenta o nº 6 do art. 75º-A da LCT que 'O disposto nos números anteriores é aplicável pelo relator no Tribunal Constitucional, quando o juiz ou o relator que admitiu o recurso de constitucionalidade não tiver feito o convite referido no nº 5'.
8º
Ou seja, se o Recorrente se tivesse esquecido de referir a alínea, era convidado a indicar;
9º
Uma vez que por lapso escreveu b) em vez de a), apesar do exposto no requerimento se subsumir indubitavelmente à alínea a), pois, repita-se, é referido 'no sentido de aplicação do artigo 3º da Lei 14/2009, de 1/4, tendo-o declarado inconstitucional', é-lhe negado o direito a recorrer.
10º
Se a própria Lei reconhece o convite ao aperfeiçoamento no caso de omissão, por maioria de razão, deverá convidar-se ao aperfeiçoamento no caso de contradição evidente.
11º
Nem se compreende como é defensável nos dias de hoje que a justiça formal se sobreponha à justiça material.
12º
O timbre do legislador nas mais recentes alterações processuais, prima pela verdade material em detrimento da verdade formal;
13º
Veja-se, a título de exemplo, o artigo 146º do CPC, com as alterações da Lei 41/2013, de 26 de junho, que consagra a possibilidade das partes retificarem 'erros de cálculo ou de escrita, revelados no texto da peça processual apresentada' e nº 2 desta norma 'deve ainda o juiz admitir, a requerimento da parte, o suprimento ou a correção de vícios ou omissões puramente formais de atos praticados, desde que a falta não deva imputar-se a dolo ou culpa grave e o suprimento ou a correção não impliquem prejuízo relevante para o regular andamento da causa'.
14º
É também esta tónica que inspira a redação dos nºs 5 e 6 do art. 75º-A da LTC.
15º
E deverá ser essa a tónica a presidir às decisões judiciais, pois é um poder-dever dos juízes convidar as partes a aperfeiçoarem os seus articulados, aclararem ou retificarem eventuais lapsos evidentes.
16º
Por outro lado, se 'o requerimento de interposição de recurso fixa irremediavelmente o seu objeto' (como se lê na decisão sumária), então, irremediavelmente, o Recorrente delimitou o objeto do recurso à 'aplicação do artigo 3º da Lei 14/2009 de 1/4' que o Tribunal a quo julgou inconstitucional, tal como se lê no Requerimento de Interposição de Recurso.
Sem conceder,
17º
É ainda referido na decisão sumária que 'o entendimento constante dos acórdãos dos Tribunal Constitucional referidos na decisão recorrida tem sido reiterado em pronúncias posteriores e recentes'.
18º
Porém, nem se digna a enumerar quais os acórdãos.
19º
Embora alguns acórdãos sejam referidos nas decisões das instâncias inferiores, convenientemente para chegar à conclusão a que chegam; ignoram a existência de acórdãos em sentido contrário.
Nomeadamente,
20º
– O Acórdão nº 285/2011 do Tribunal Constitucional em que se defende a constitucionalidade do artigo 3º da Lei 14/2009, de 1 de abril;
– Os Acórdãos nºs 412/2011 e 515/2012 do Tribunal Constitucional em que se julga constitucional a aplicação de prazos de caducidade à ação de investigação de paternidade, nomeadamente, o prazo consagrado no art. 1817º, nº 1 do Código Civil, por força da redação da Lei 14/2009, de 1 de abril.
21º
Por isso, a questão que subjaz ao Recurso não é tão reiterada como faz crer a decisão sumária, pois ainda é objeto de decisões contraditórias, tanto pelo Tribunal Constitucional como pelas instâncias a quo.
22º
Não conhecer do recurso interposto para este Tribunal é uma negação infundada do direito à justiça e acesso ao Direito - direito constitucionalmente consagrada no art. 20º da CRP e previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem - arts. 8º e 10º da DUDH e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem - art. 6º.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deverá ser admitida a presente reclamação para a Conferência e, consequentemente:
A - Ser conhecido o recurso interposto pelo Recorrente A. para este Tribunal. »
4. Não foi apresentada resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. Confrontado com a decisão sumária n.º 493/2013, em que se decidiu não conhecer do recurso por inidoneidade objetiva, vem o recorrente reclamar para a conferencia, dizendo, no essencial, que incorreu em lapso de escrita evidente quando referiu a via de recurso constante da al. b), do n.º1, do artigo 70.º da LTC, querendo, na realidade, ter inscrito a alínea a) do mesmo número e preceito.
A argumentação do recorrente é apelativa e mereceria acolhimento, não fosse o texto do requerimento afastar a presença do erro de escrita, suscetível de retificação nos termos do artigo 249.º do CC, ou de ser percebido como tal pelo destinatário, no que concerne à vontade real do declarante relativamente à espécie de recurso para o Tribunal Constitucional que pretendia mobilizar.
Com efeito, o recorrente não se limitou a inscrever no recurso menção da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC: indicou igualmente, em demonstração da sua legitimidade, o disposto no n.º 2 do artigo 72.º da LTC.
Ora, esse preceito prevê apenas os “recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º”, excluindo nomeadamente os recursos interpostos ao abrigo da alínea a), o que significa que o recorrente não escolheu – ou não ponderou aquando da formalização do requerimento de interposição de recurso – outra via de recurso, para além daquela a que fez referência, nos termos impostos pelo n.º 1 do artigo 75.ºA da LTC.
Assim sendo, cumpre concluir que, dentre a tipologia dos erros ou enganos, não deparamos com erro de escrita, mormente com erro de escrita evidente.
Nessa medida, a pretensão do recorrente envolve o sentido material de convolação, procurando que o Tribunal, corrigindo (substituindo) o impulso (real) da parte, faça seguir o recurso por via apropriada a atingir o resultado visado.
Ora, não estamos aí no plano da cooperação ou da mera adequação formal do requerimento de interposição do recurso, mas sim na conformação oficiosa do tipo ou espécie de recurso, domínio em que a jurisprudência do Tribunal Constitucional não tem admitido qualquer alteração subsequente. Como se disse no Acórdão n.º 420/08 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt):
«[A] jurisprudência constitucional tem um entendimento rigoroso e exigente do ónus de especificação da alínea do n.º 1 do artigo 70° da Lei n.º 28/82 com base na qual o recurso é interposto, considerando que lhe não compete suprir um erro ou vício de qualificação pela parte. Na verdade, é sobre o recorrente que recai o ónus de indicar, com precisão, o tipo de recurso que pretende interpor, mediante a identificação da alínea do nº 1 do artigo 70º da LTC ao abrigo da qual o recurso é interposto (artigos 75º-A, nº 1, 76º, nº 2, e 78º-A, nº 2, da LTC). Esta indicação deve fazer-se no requerimento de interposição do recurso, pois é através do requerimento de interposição que se fixa a espécie e o âmbito do recurso.
A lei não confere ao Tribunal qualquer poder oficioso de convolar para um outro recurso aquele que o recorrente indicou no requerimento (cf. Acórdãos nºs 77/2000, 348/2002, 468/2003, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), ainda que o recorrente tenha aberto durante o processo a via do recurso que, alegadamente, pretendia interpor.
Em suma, a indicação precisa, no requerimento de interposição, da alínea que identifica a espécie do recurso que o recorrente pretende interpor é preclusiva, no sentido de não ser permitido ao recorrente alterar posteriormente essa menção, por lhe corresponder um tipo específico de procedimento, com requisitos próprios, apenas verificáveis naquela oportunidade processual.
Ora, a exigência de identificação da espécie de recurso que constitui a via de acesso ao Tribunal Constitucional determina que, nos casos em que se verifica a omissão dessa menção, ou ela seja não seja explícita, o Tribunal convide o recorrente a suprir a falta, sob cominação de o recurso ser 'logo julgado deserto'. É esta a génese do convite previsto no artigo 75º-A, nºs 5 e 6, da LTC que, conforme o Tribunal tem ponderado, “rege apenas e expressamente para os casos de omissão, no requerimento de interposição de recurso, das indicações impostas nos nºs 1 a 4 do mesmo artigo 75º-A”, o que não se verificou nos presentes autos.»
Não encontrando razões para postergar esse entendimento, que reafirmamos, cumpre considerar, como na decisão sumária, que o recurso interposto – correspondente a via dirigida a impugnar a aplicação de norma ou interpretação normativa inconstitucional - não comporta objeto conforme com os fundamentos decisórios em que assentou a decisão recorrida, pelo que não pode ser conhecido.
Improcede, assim, a reclamação.
III. Decisão
6. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão sumária reclamada;
b) Condenar o reclamante nas custas, fixando-se em 7 (sete) Ucs a taxa de justiça devida, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido pelo reclamante.
Lisboa, 28 de novembro de 2013.- Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.