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Processo n.º 660/2013
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 406/2013:
«I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrida B., Lda, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), foi interposto recurso, em 20 de junho de 2013 (fls. 147 a 153), de acórdão proferido, em conferência, pela 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 06 de junho de 2013 (fls. 129 a 142), para que seja apreciada a constitucionalidade:
i) «Da interpretação dada ao artigo 303º do Código Civil (…): “Dado que a prescrição não é de conhecimento oficioso, a mesma só poderá ser eficaz se, para tanto, for invocada por aquele a quem aproveita, em articulado próprio, apresentado apenas dentro do prazo e em sede de contestação ou oposição à execução e subscrito por advogado ou defensor oficioso”» (fls. 149);
ii) «Da interpretação conjugada dada aos artigos 265º n.º 2 e 508º nº 1, b) do Código de Processo Civil: (…) “As normas constantes nos artigos 265º, n.º 2 e 508º, n.º 1, b), não se aplicam quando estejam em causa simples requerimentos, subscritos pela parte, mas tão-somente articulados. Assim, estando em causa um simples requerimento, e não um articulado, o juiz não está vinculado a providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação nem determinar a realização de atos necessários à regularização da instância”.» (fls. 149)
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo”, proferido a 01 de julho de 2013 (fls. 154), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que sempre seria forçoso apreciar o preenchimento de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, n.º 2, da LTC.
Sempre que o Relator verifique que não foram preenchidos os pressupostos de interposição de recurso, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Estando em causa um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, torna-se imprescindível que o recorrente tenha suscitado, de modo processualmente adequado, as questões de inconstitucionalidade normativa que pretende ver agora reapreciadas, conforme exigido pelo n.º 2 do artigo 72º do mesmo diploma. Isto porque, em sede de fiscalização sucessiva concreta, o Tribunal Constitucional apenas pode rever, em sede de recurso, as decisões que os tribunais recorridos tenham tomado, a propósito de específicas questões de inconstitucionalidade normativa.
Ora, em bom rigor, ao apresentar as suas alegações de recurso perante o tribunal recorrido, o recorrente nunca suscitou – de modo inequívoco e preciso – a constitucionalidade das interpretações normativas que agora pretende ver (re)apreciadas. Pelo contrário, o recorrente optou por dirigir a sua censura ao próprio despacho do tribunal de primeira instância – e não a uma específica norma jurídica –, tendo antes considerado que a violação de algumas normas e princípios constitucionais seria geradora de vícios daquele despacho. Senão, vejam-se as suas conclusões:
«(xv) o despacho objeto de recurso violou vários princípios constitucionais e processuais, nomeadamente, os princípios constitucionais do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva, plasmados nos artigos 20.º e 202.º, n.º 2, da CRP, bem como os princípios processuais da adequação formal, da cooperação entre as partes e da boa-fé processual, previstos nos artigos 265.º, n.º 2 e 3, 265.º-A, 266.º e 266.º-A, pois a nenhum cidadão pode ser preterida a ministração da justiça, devido a carência económica, como forma de evitar a violação do princípio da igualdade no acesso à justiça.
(…)
(xxiv) Ao não ter conhecido das exceções invocadas pelo Recorrente, por si ou através de mandatário constituído, o despacho supra referido:
a) Violou os princípios constitucionais do Acesso à Justiça e da Tutela Jurisdicional Efetiva, previstos nos artigos 20.º e 202.º, n.º 2 da CRP, bem como os Princípios da Adequação Formal, da Cooperação e da Boa Fé Processual, previstos nos artigos 265.º, n.º 2 e 3, 265.º-A, 266.º e 266.º-A, todos do CPC» (fls. 134 e 138).
Daqui decorre que o recorrente apenas colocou em crise, perante o tribunal recorrido, a constitucionalidade do próprio despacho proferido pelo tribunal de primeira instância. Na medida em que o artigo 277º, n.º 1, da CRP, apenas admite a fiscalização da constitucionalidade de “normas jurídicas” – e não de “atos jurisdicionais”, enquanto tais –, torna-se evidente que o tribunal recorrido não foi devidamente confrontado com qualquer questão de constitucionalidade dotada de uma verdadeira dimensão normativa. Tanto assim é que a decisão recorrida nunca conhece, expressa e especificadamente, da constitucionalidade das interpretações normativas que constituem objeto do presente recurso, limitando-se a convocar, “ad latere”, vários princípios com sede constitucional para justificar a decisão vertida no despacho do tribunal de primeira instância.
Por fim, a circunstância de a referência ao artigo 508º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil (CPC), só constar expressamente da decisão ora recorrida – e não do despacho de primeira instância – não dispensaria o recorrente do ónus de prévia suscitação da sua inconstitucionalidade, por dois motivos: i) em primeiro lugar, o recorrente fixou como objeto do presente recurso uma interpretação conjugada daquele preceito com o artigo 265º, n.º 2, do CPC, pelo que o conteúdo normativo ínsito no artigo 508º, n.º 1, alínea b), do CPC, não se afigura autonomizável (ou sequer profundamente inovador) face ao primeiro daqueles preceitos; ii) em segundo lugar, sendo-lhe possível antecipar a aplicação do n.º 2 do artigo 265º do CPC – que regula o “suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação”, não podia deixar de antever que esse mesmo suprimento ocorre na “fase de sanação”, que encontra na alínea b) do n.º 1 do artigo 508º do CPC uma das suas bases jurídicas sustentadoras.
Ora, como a jurisprudência consolidada neste Tribunal tem reiterado, só constitui decisão-surpresa, que dispensa o ónus de prévia suscitação, a decisão se afigure insólita ou imprevisível, não podendo ser objetivamente antecipável pelo recorrente. Sucede que a convocação da alínea b) do n.º 1 do artigo 508º do CPC constitui uma consequência inevitável da equação da possibilidade de suprimento da falta de pressupostos processuais, que permanece diretamente imbricada com o referido preceito legal.
Torna-se, por conseguinte, evidente que o recorrente não colocou o tribunal recorrido perante as específicas questões de inconstitucionalidade que pretendia ver agora apreciadas, antes se tendo limitado a questionar a constitucionalidade do próprio despacho perante aquele reclamado.
III – Decisão
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, decide-se não conhecer do objeto do recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário, na modalidade dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos.»
2. Inconformado com a decisão proferida, a recorrente veio deduzir a seguinte reclamação, cujos termos ora se sintetizam:
«6ª
No requerimento de interposição de recurso que o recorrente remeteu ao tribunal a quo, em 20 de junho de 2013, requereu que fosse julgada a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 303.º do CC e 265.º, n.º 2 e 508.º, n.º 1, alínea b), ambos do CPC, com a interpretação e aplicação que lhes foi dada pelo Tribunal da Relação, a saber:
(i) Da interpretação dada ao artigo 303.º do CC, cuja constitucionalidade se pretendia ver apreciada: “Dado que a prescrição não é de conhecimento oficioso, a mesma só poderá ser eficaz se, para tanto, for invocada por aquele a quem aproveita, em articulado próprio, apresentado apenas dentro do prazo e em sede de contestação ou oposição à execução e subscrito por advogado ou defensor oficioso.”
(ii) Da interpretação conjugada dada aos artigos 265.º, n.º 2 e 508.º, n.º 1, alínea b) do CPC, cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada: “As normas constantes nos artigos 265º, n.º2 e 508º, n.º1, b), não se aplicam quando estejam em causa simples requerimentos, subscritos pela parte, mas tão-somente articulados. Assim, estando em causa um simples requerimento, e não um articulado, o juiz não está vinculado a providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação nem determinar a realização de atos necessários à regularização da instância.”.
7º
A interpretação dada aos artigos 303.º do CC e 265.º, n.º 2 e 508.º, n.º 1, alínea b), ambos do CPC, que motivou a interposição de recurso do recorrente para o Tribunal Constitucional apenas foi fixada, naqueles termos, pelo acórdão do Tribunal da Relação proferido em 06 de junho de 2013, conforme decorre do teor das folhas 6 a 8 daquela decisão.
Aliás,
8º
Só no acórdão do Tribunal da Relação é que foi feita, pela primeira vez nestes autos, a análise e interpretação judicial dos artigos 303.º do CC e 265.º, n.º 2 e 508.º, n.º 1, alínea b) do CPC, que apenas ocorreu na sequência da apresentação das alegações recursivas, em que o executado chamou à colação a violação daqueles preceitos.
9º
Ora, se atentarmos no teor do despacho proferido no tribunal de primeira instância objeto de recurso, no que tange à exceção perentória de prescrição, em momento algum é feita qualquer interpretação ou referência aos artigos 265.º, n.º 2 e 508.º, n.º 1, alínea b) do CPC.
10º
Sendo que, o artigo 303.º do CC apenas é referido por mera remissão para um acórdão citado pelo Mm.º Juiz e também não é objeto de qualquer interpretação ou análise acrescida.
11º
Posto isto, seria impossível ao recorrente prever a interpretação que o Tribunal da Relação de Lisboa iria dar às normas que motivaram o presente recurso, visto que o despacho proferido em primeira instância, apesar de ter pugnado pelo indeferimento da pretensão do executado, não desenvolveu qualquer interpretação ou análise dos artigos 303.º do CC e 265.º, n.º 2 e 508.º, n.º 1, alínea b) do CPC, sendo que, no que toca aos últimos dois preceitos legais, não foram sequer mencionados.
12º
Para que o recorrente pudesse suscitar nas suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação a inconstitucionalidade das interpretações normativas que agora pretende ver apreciadas, necessitava de efetuar um exercício de prognose que não lhe poderá ser exigível, na medida em que, na decisão proferida em primeira instância não foi feita qualquer aplicação ou interpretação daqueles preceitos.
13º
Como tal, o recorrente nunca poderia suscitar a interpretação inconstitucional daqueles artigos quando eles não foram sequer objeto de aplicação pelo tribunal da primeira instância.
Aliás,
14º
Tal como se referiu supra, os preceitos em causa, maxime os artigos 265.º, n.º 2 e 508.º, n.º 1, alínea b) do CPC, apenas foram judicialmente aplicados, pela primeira vez, no acórdão do Tribunal da Relação.
15º
Pelo que, não era expectável a sua suscitação prévia pelo recorrente.
Acresce que,
16º
Relativamente ao artigo 303.º do CC, contrariamente ao referido na decisão sumária que se reclama, o recorrente suscitou, de modo processualmente adequado, a questão de inconstitucionalidade normativa que pretendia ver reapreciadas, uma vez que invocou, logo nas alegações recursivas, a constitucionalidade da interpretação normativa daquele artigo.
17º
No artigo 41.º das alegações de recurso, referiu o recorrente que “[i]nterpretar o artigo 303.º do CC no sentido em que a invocação da prescrição apenas pode ser feito na oposição à execução, mediante constituição obrigatória de mandatário, constitui uma violação manifesta dos princípios constitucionais e processuais invocados”.
18º
No trecho em destaque, o recorrente colocou em crise, perante o Tribunal da Relação de Lisboa, a constitucionalidade da interpretação dada ao artigo 303.º do CC.
19º
Como tal, sem prescindir de tudo o que supra foi referido, pelo menos no que toca ao primeiro dos preceitos referidos no requerimento de interposição de recurso, a questão da inconstitucionalidade normativa foi suscitada de modo processualmente adequado, em conformidade com o artigo 72.º, n.º 2 do LTC.
20º
Pelo que, deverá o presente recurso ser admitido, uma vez que se encontram preenchidos todos os seus pressupostos de admissibilidade previstos nos artigos 75.º-A e 76.º, n.º 2 do LTC.»
3. Notificada para o efeito, a recorrida deixou esgotar o prazo sem que viesse aos autos apresentar qualquer resposta.
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. A própria construção da linha argumentativa da reclamação denuncia e implica a improcedência da mesma quanto à questão da inconstitucionalidade dos artigos 265º, n.º 2, e 508º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil (CPC). Isto porque é o próprio reclamante quem vem admitir que:
«8º
Só no acórdão do Tribunal da Relação é que foi feita, pela primeira vez nestes autos, a análise e interpretação judicial dos artigos 303.º do CC e 265.º, n.º 2 e 508.º, n.º 1, alínea b) do CPC, que apenas ocorreu na sequência da apresentação das alegações recursivas, em que o executado chamou à colação a violação daqueles preceitos.»
Ora, na medida em que o próprio reclamante admite não ter invocado, em alegações de recurso produzidas perante o Tribunal da Relação de Lisboa, os preceitos legais cuja constitucionalidade agora pretendia ver apreciada, torna-se incontornável concluir que lhe cabia – nesse momento processual – ter equacionado a possibilidade de aplicação da interpretação normativa que acabou por ser acolhida por aquele tribunal e que não se afigura, de modo algum, surpreendente ou insólita. Não é a circunstância de uma norma ainda não ter sido aplicada que impede o recorrente de antecipar, de acordo com critérios de razoabilidade e previsibilidade (ainda para mais, quando representado por Advogado), as soluções potencial e possivelmente aplicáveis a determinada questão jurídica controvertida.
Por essa razão, indefere-se a reclamação e mantém, portanto, a decisão anteriormente proferida quanto aos artigos 265º, n.º 2, e 508º, n.º 1, alínea b), do CPC.
Ainda assim, este Tribunal não pode deixar de ter em consideração a invocação – só agora explicitada pelo recorrente, ao arrepio do artigo 75º-A, n.º 2, da LTC, que imporia que tal tivesse ocorrido em sede de requerimento de interposição de recurso – de que teria suscitado a inconstitucionalidade da interpretação normativa extraída do artigo 303º do Código Civil (CC), quando, através do artigo 41º das alegações de recurso perante o Tribunal da Relação de Lisboa, afirmou que “[i]nterpretar o artigo 303.º do CC no sentido em que a invocação da prescrição apenas pode ser feito na oposição à execução, mediante constituição obrigatória de mandatário, constitui uma violação manifesta dos princípios constitucionais e processuais invocados”.
Apesar de não ter levado esta invocação às conclusões do recurso então interposto – que fixaram o objeto do mesmo –, certo é que pode extrair-se daquele excerto uma suscitação processualmente adequada de questão idêntica à que constitui a primeira parte do presente recurso de constitucionalidade. Assim sendo, revê-se parcialmente a decisão reclamada, aceitando-se o cumprimento do ónus decorrente do n.º 2 do artigo 72º da LTC, quanto à alegada inconstitucionalidade do artigo 303º do Código Civil. Deverão, por conseguinte, prosseguir os autos para alegações, apenas quanto àquela parte do objeto do recurso.
III - DECISÃO
Em face do exposto, decide-se:
a) Indeferir a presente reclamação, quanto à interpretação normativa extraída dos artigos 265º, n.º 2, e 508º, n.º 1, alínea b), do CPC;
b) Deferir a presente reclamação, quanto à interpretação normativa extraída do artigo 303º do Código Civil;
E, em consequência:
c) Convidar o recorrente a proferir alegações escritas, nos termos do n.º 1 do artigo 79º da LTC, restrita à questão da inconstitucionalidade do artigo 303º do Código Civil.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 10 UC´s, na proporção do respetivo decaimente, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário, na modalidade dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos.
Lisboa, 10 de dezembro de 2013. – Ana Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.