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Processo n.º 718/13
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, em que são recorrentes A., B., C. e D. e é recorrido o Município de Elvas, os primeiros interpuseram recurso, ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
2. Pela Decisão Sumária n.º 536/2013, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão, na parte que agora releva, tem a seguinte fundamentação:
“(…) 3. De acordo com as alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade haja sido suscitada durante o processo. Suscitação que há de ter ocorrido de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Ora, independentemente da falta de verificação de outros requisitos, relativamente à “norma” cuja apreciação é requerida pelos recorrentes, não pode dar-se como verificado o requisito objetivo de suscitação prévia nos presentes autos.
Na reclamação que interpuseram para o tribunal recorrido (Tribunal Central Administrativo Sul) os recorrentes limitaram-se a refutar a interpretação dada pelo tribunal recorrido ao sistema de recursos previsto no CPTA, que classificam de “manifestamente inconstitucional”, e, socorrendo-se de jurisprudência de sentido divergente, concluem que «Perante a contradição no texto da decisão entre a qualificação dada de “sentença” e a invocação do art. 27.º, n.º 1 do CPTA, não pode deixar de se admitir o recurso jurisdicional tempestivamente interposto pelos ora reclamantes, sob pena de ser posta em causa a garantia jurisdicional efetiva, prevista no art. 268.º, n.º 4, o direito de acesso ao direito e à justiça previsto no art. 20.º, e de ser posto em causa os ditames do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 2.º, todos da CRP».
Desta forma, os recorrentes limitaram-se a aludir a uma pretensa inconstitucionalidade da interpretação seguida no tribunal recorrido, da qual discordam, sem, contudo, chegarem a precisar ou enunciar a interpretação normativa (com caráter de generalidade) que teria estado na base do decidido e cuja desconformidade com a Constituição pretendiam ver apreciada. E sendo assim, incumpriram o ónus de suscitação adequada de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa reportada às disposições legais a que agora fazem referência no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.
Termos em que não é possível conhecer do recurso.”
3. Da decisão sumária vêm agora os recorrentes reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, sustentando a reclamação essencialmente nos seguintes fundamentos:
“(…)3. Contrariamente ao que se afirma naquela douta decisão, na reclamação para o Tribunal Central Administrativo Sul que apresentaram colocaram este tribunal perante a exata e específica questão de inconstitucionalidade normativa que pretendem ver apreciado no recurso interposto para o Tribunal Constitucional;
4. Assim é que, logo no n.º 4 daquela reclamação, relativamente ao despacho de não admissão do recurso ao abrigo dos artigos 27.º, n.º 1, alínea i) e 29º, n.º 1 do CPTA, os Recorrentes escreveram expressamente que:
“É deste despacho que se reclama por, no entender dos ora reclamantes, ser ilegal por representar uma completa dissonância com o sistema de recursos vertido no art. 142.º, n.º 1 do CPTA, e por a interpretação nele seguida ser manifestamente inconstitucional, por atentar contra os princípios derivados de confiança e estabilidade e acesso ao direito e justiça vertidos nos artigos 2º e 20º da CRP”;
5. Tendo densificado essa sua alegação na matéria vertida nos números 16 a 24 dessa mesma peça processual, onde se pode ler:
6. No n.º 16 da reclamação:
“Ainda que se entenda que o n.º 2 do art. 27.º CPTA permite uma interpretação extensiva, ao ponto de abarcar sob o termo “despachos”, as sentenças, ou seja, usar o termo “despachos”, num sentido idêntico ao de “decisões” na alínea i) do n.º 1 do art. 27.º CPTA (...) é uma aplicação inconstitucional do n.º 2 do art. 27.º do CPTA e da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º’ do CPTA, aplicar os mesmos no sentido de considerar que apesar de um Tribunal apelidar certo ato seu de sentença e essa ser uma decisão de mérito que remete para um regime de recurso jurisdicional, entender um Tribunal superior que a qualificação dada não estava, afinal, correta e que, como tal, as reações jurisdicionais dessas não se poderiam ter conformado com essa qualificação que os próprios tribunais haviam dado”;
7. E no 17:
“Esse entendimento atenta, designadamente, contra os princípios do Estado de Direito Democrático (art. 2.º CRP) e seus corolários ao nível dos princípios derivados de confiança e estabilidade e acesso ao direito (art. 20.º CRP), já que a confiança das partes processuais se vê posta em causa perante quaisquer decisões jurisdicionais, já que deixam de poder confiar na qualificação que os tribunais - órgãos de soberania com competência para administrar a justiça - fazem dos seus próprios atos”;
8. Tendo, ainda, referido no n.º 18 do mesmo articulado que:
“A enveredar-se pelo entendimento defendido no despacho de que se reclama, estar-se-ia «(...) perante a imposição de um ónus processual às partes no processo de ultrapassarem as qualificações que os próprios tribunais façam dos seus atos, obrigando a que, mesmo sem que essa qualificação tenha sido posta em causa por tribunal superior, as partes julguem e apurem o erro do julgador e enveredem por meio de reação em discordância com o que o próprio tribunal que terá de admitir o meio de reação dispôs em qualificação desse ato» ;
9.E no n. 19 que:
“Enveredar e consagrar tal imposição às partes no processo é claramente inconstitucional por criação de um sistema de indefesa face às garantias de acesso ao direito e justiça (art. 20.º CRP) e ulteriormente face à própria garantia da tutela jurisdicional efetiva (art. 268.º, n.º 4), por violação de um parâmetro de proporcionalidade nas imposições colocadas às partes no processo, quanto às condições em que podem utilizar os meios de reação”; (...) É claramente abusivo e coloca em causa o uso das garantias recursivas ou de reação, colocar a obrigação às partes de usarem meios contenciosos em discordância com a qualificação do ato que o próprio órgão de soberania que julga a questão impôs, quando o nosso sistema de reação contra decisões judiciais assente exclusivamente no pressuposto de qualificação do ato como “despacho” ou “sentença” para conduzir as partes no processo aos meios que poderão usar; (...)”; Defronta o princípio da confiança e da estabilidade jurídica do processo - o due process - definir em lei processual que a seleção de meios contenciosos se faz por apelo a um critério de nominação do ato pelo tribunal, para, posteriormente, quando o particular se conforma com essa nominação não vincula e há mesmo o dever de contrariar uma qualificação jurisdicional”;
10. E no n.º 20 que:
(...) a interpretação e aplicação das normas de processo e que é seguida pelo despacho reclamado, «leva a conclusões contrárias aos ditames do Estado de Direito, em que os princípios pro actione não habilitam tais condutas processuais que promovam a indefesa e incerteza das partes que recorrem ao processo para a sua tutela»;
11. Para concluírem no n.º 24 que:
“Perante a contradição no texto da decisão entre a qualificação dada de “sentença” e a invocação do art. 27.º, n.º 1 do CPTA, não se pode deixar de se admitir o recurso jurisdicional tempestivamente interposto pelos ora reclamantes, sob pena de ser posta em causa a garantia da tutela jurisdicional efetiva, prevista no art. 268.º, n.º 4, o direito de acesso ao direito e à justiça previsto no art. 20.º, e de ser posto em causa os ditames do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 2.º, todos da CRP”.
12. De tais referências resulta que, relativamente ao despacho de não admissão de recurso de decisão individualmente tomada pelo juiz de primeira instância, as ora reclamantes suscitaram concretamente a questão da inconstitucionalidade da interpretação das normas convocadas para a decisão da causa e por ela aplicadas, tendo-o feito de modo direto, explícito e percetível através da indicação das disposições legais sobre cuja interpretação se faz recair a suspeita do vício de inconstitucionalidade;
13. Os recorrentes colocaram, assim, o tribunal recorrido perante a exata e específica questão da inconstitucionalidade normativa que pretendem ver agora apreciada, ou seja: a apreciação da constitucionalidade da norma extraída do art. 27.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2 do CPTA, quando interpretada em qualquer uma das seguintes interpretações normativas:
a) no sentido de considerar que, apesar do tribunal apelidar o seu ato de sentença e essa ser uma decisão de mérito que remete para um regime de recurso jurisdicional, entender o tribunal superior que a qualificação dada não estava correta, e que, como tal, a reação jurisdicional dessa não se poderia ter conformado com a qualificação que o próprio tribunal havia dado;
b) no sentido de que, não obstante o tribunal designar a decisão como sentença, a mesma é insuscetível de recurso, já que proferida por juiz singular (relator) com invocação da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º do CPTA, com o que era obrigatório o uso de reclamação para a conferência, sendo irrelevante a qualificação que o tribunal emissor da decisão dá à mesma, mais considerando que sob o termo “despacho” constante do n.º 2 do art. 27.º do CPTA também se integram por interpretação extensiva as “sentenças”. 14. Deste modo, deve considerar-se que as ora reclamantes suscitaram a inconstitucionalidade destas específicas interpretações normativas, de modo processualmente adequado, respeitando o que lhe era imposto pelo n.º 2 do art. 72.º da LCT, e, em consequência, admitir-se o recurso interposto pelas ora reclamantes.(…)”
4. Notificado da reclamação, o recorrido não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. Como resulta do acima exposto, foi proferida decisão de não conhecimento do objeto do recurso com fundamento na falta de suscitação prévia e adequada da questão de constitucionalidade.
Para contrariar o decidido os reclamantes, limitam-se a sublinhar que ao longo da reclamação que interpuseram para o tribunal (aqui recorrido), do despacho de não admissão do recurso, «colocaram este tribunal perante a exacta e específica questão de inconstitucionalidade normativa que pretendem ver apreciada no recurso interposto para o Tribunal Constitucional».
Para demonstrarem aquela afirmação, reproduzem o alegado nos pontos 4., 16., 17., 18., 19., 20. e 24. da reclamação que apresentaram no tribunal recorrido.
6. De acordo com as alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (ao abrigo das quais foi interposto o recurso), cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade, ou ilegalidade, haja sido suscitada durante o processo. Suscitação que há de ter ocorrido de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Para que o Tribunal Constitucional conheça de um pedido de fiscalização concreta da constitucionalidade (ou ilegalidade) é, portanto, necessário que em fase anterior à do requerimento de recurso para este Tribunal, no decurso do processo, o recorrente tenha identificado expressamente a questão de inconstitucionalidade (ou ilegalidade), de forma expressa, direta e clara de modo a criar para o tribunal a quo o dever de pronúncia sobre a precisa norma em causa. Como tem sido entendimento uniforme do Tribunal Constitucional, a identificação da inconstitucionalidade deve ser feita em termos de o Tribunal «a poder enunciar na decisão, de modo a que os respetivos destinatários e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa norma não pode ser aplicada em tal sentido» (cfr., entre muitos, o Acórdão n.º 367/94, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt).
7. Ora, os recorrentes manifestamente não cumpriram o ónus de suscitação prévia adequada da questão de constitucionalidade e ilegalidade que pretendem ver sindicada pelo Tribunal Constitucional, como decorre do acima já exposto. Na verdade, como resulta da leitura da reclamação que apresentaram para o Tribunal Central Administrativo Sul, os reclamantes limitaram-se a refutar a interpretação dada pelo tribunal recorrido ao sistema de recursos previsto no CPTA, que classificaram de “manifestamente inconstitucional”. Dos pontos 4., 16., 17., 18., 19., 20. e 24. da reclamação que apresentaram no tribunal recorrido, ora destacados pelos reclamantes, não resulta a enunciação de qualquer interpretação normativa (com carácter de generalidade), antes a reiterada discordância relativamente à interpretação dada pelo tribunal recorrido à norma constante do artigo 27.º do CPTA.
Desta forma, não suscitaram qualquer questão de inconstitucionalidade ou ilegalidade normativa perante o tribunal recorrido, incumprindo, pois, o ónus estabelecido no artigo 72.º, n.º 2 da LTC.
Em face do exposto, impõe-se confirmar a decisão de não conhecimento do recurso.
III. Decisão
8. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 25 de novembro de 2013.- Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes – Maria Lúcia Amaral.