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Processo n.º 913/2012
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Tribunal da Relação de Lisboa, por decisão do Presidente da 3.ª Secção Criminal, resolveu o conflito negativo de competência para apreciação do estatuto processual do arguido A. suscitado entre o Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal e o Juiz da 4.ª Vara Criminal de Lisboa, no âmbito do processo comum coletivo n.º 79/05.9IDCBR, atribuindo tal competência a este último.
O arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da referida decisão mas o Tribunal da Relação não o admitiu, por irrecorrível, nos termos do artigo 36.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP). O arguido reclamou, então, da decisão de não admissão do recurso, nos termos do artigo 405.º do CPP, invocando a inconstitucionalidade material da norma do artigo 36.º, n.º 2, do CPP, por violação dos artigos 2.º, 20.º, n.º 1, e 32.º, nºs. 1 e 7, da Constituição da República Portuguesa (CRP), tendo o Supremo Tribunal de Justiça indeferido a reclamação, por decisão do seu Vice-Presidente de 3 de dezembro de 2012.
O arguido recorreu desta última decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), pretendendo, através dele, ver apreciada «a constitucionalidade da norma constante do artigo 36.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nos termos da qual a decisão sobre conflito (positivo ou negativo) de competência suscitado no âmbito do processo penal – in casu, negativo – é irrecorrível», por violação dos artigos 32.º, nºs. 1 e 7, 2.º e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), «designadamente quando conjugada esta irrecorribilidade com a unipessoalidade do órgão decisor».
O Tribunal recorrido admitiu o recurso.
O relator no Tribunal Constitucional proferiu decisão sumária a não julgar inconstitucional a norma do artigo 36.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, enquanto veda ao arguido a possibilidade de recorrer da decisão sobre o conflito de competência, por aplicação de anterior jurisprudência constitucional, que julgou transponível para o caso sub judicio.
O recorrente dela reclamou para a conferência, que acordou em deferir a reclamação e ordenar a notificação das partes para alegações.
O recorrente veio, então, apresentar alegações, onde conclui:
«1. Qualquer decisão proferida em processo de fiscalização concreta da constitucionalidade só produz efeitos no caso decidido (artigo 80.° da LOTC). Para se poder generalizar a solução obtida é preciso passar pelo processo previsto no n.º 3 do artigo 281.° da CRP e regulado pelo artigo 82.° da LOTC.
2. Não obstante, a prática decisória do Tribunal Constitucional tem transferido a solução de um processo de fiscalização concreta para outro processo de fiscalização concreta (mesmo que sobre norma diversa), como se a referida solução pudesse ter maior expressão do que a do caso em que foi proferida.
3. Na interpretação adotada nos autos, o órgão decisor de conflitos de competência em matéria penal não é nem um órgão coletivo, nem, sendo singular, um único por cada distrito judicial. No caso dos tribunais sujeitos à jurisdição do Tribunal da Relação de Lisboa, há três possíveis decisores, podendo a mesma questão de incompetência, suscitada entre os mesmos ou outros tribunais, vir a ser decidida por qualquer um deles.
4. A razão invocada para uma tal solução, anómala dentro do sistema de reso1ução de conflitos de competência jurisdicional, não pode ser aceite: a celeridade acrescida da não-decisão coletiva (que caberia na letra da lei e até é constitucionalmente imposta em caso de recusa de recurso) ou do não-recurso, num certo caso concreto, será anulada pela reiteração do problema em muitos outros, mercê da falta de um mecanismo de uniformização. Assim, a não intervenção de um órgão coletivo na decisão, ou a inexistência de recurso em situações de resolução de um conflito de competências há de servir, não para aumentar a capacidade de resposta do sistema, mas para a diminuir.
5. A1iás, como afirmado no voto de vencido lavrado no Acórdão n.° 387/99, só podem encontrar justificação constitucional desígnios de celeridade que sejam compatíveis com as garantias de defesa. E as garantias de defesa em causa são naturalmente todas aquelas que devam ter-se por consagradas no n° 1 do mesmo preceito, à cabeça das quais se encontra o direito ao recurso. Donde se conclui que a celeridade não permite manifestamente justificar constitucionalmente a irrecorribi1idade de certas decisões instrutórias.
6. Sendo as decisões sobre a própria competência dos tribunais decisões que se ligam com o princípio do juiz natural (cf. Conclusão 7) e fundadoras da sua atividade jurisdicional (cf. Conclusão 10), compreende-se mal que seja conforme com a Constituição um sistema fraco de resolução desse tipo de conflitos, sobretudo em matérias que, por dizerem respeito à definição do estatuto dos arguidos, mais exigiriam um sistema forte
7. Como se escreveu no Acórdão n.º 614/03 desse Venerando Tribunal, o princípio do juiz natural, ou do juiz legal, para além da sua ligação ao princípio da legalidade em matéria penal, encontra ainda o seu fundamento na garantia dos direitos das pessoas perante ajustiça penal e no princípio do Estado de direito no domínio da administração da justiça. É, assim, uma garantia da independência e da imparcialidade dos tribunais (artigo 203.° da Constituição). Designadamente, a exigência de determinabi1idade do tribunal a partir de regras legais (juiz legal, juiz predeterminado por lei, gesetzlicher Richter) visa evitar a intervenção de terceiros, não legitimados para tal, na administração da justiça, através da escolha individual, ou para um certo caso, do tribunal ou do(s) juízes chamados a dizer o Direito.
8. Onde a questão do conflito de competências seja desencadeada num caso em que os tribunais potencialmente competentes são vários, como no caso dos autos (A, B, C, D, E e F, por exemplo, pertencendo cada sucessivo par a um diferente distrito judicial), a delimitação do problema pode até ser determinada pela ordem pela qual forem chamados a intervir (A e B, ou C e D, sendo que a competência deveria de facto caber a F, por exemplo. Neste caso, a resolução do conflito negativo de competência caberia, quer na primeira sequência, quer na segunda, a um presidente de secção de um tribunal de 2 instância que pode tender a arbitrar como um conflito limitado - ou é um, ou é outro - o que, na verdade, seria uma forma de dissimular que a real competência pertence a outro tribunal).
9. Pelo menos nos casos em que a investigação dos crimes caiba ao DCIAP por virtude de uma invocada dispersão geográfica dos factos, a suscitação - deliberada ou fortuita - da intervenção sucessiva de dois tribunais territorialmente incompetentes (que, naturalmente, assim se considerarão) permite que a decisão sobre a competência última seja cometida a uma jurisdição escolhida (a um dos presidentes de secção do tribunal de 2a instância do mesmo distrito judicial em que os tribunais de 1ª instância se consideraram incompetentes) e sem relação com a que deveria realmente intervir. Será, assim, inconstitucional, por violação do princípio da igualdade e do princípio das garantias de defesa em processo penal a interpretação de qualquer norma que o permita (como a 1eitura literal do artigo 36.°, n° 2, do CPP consente).
10. A competência de cada tribunal sobre a determinação da sua própria competência é um princípio básico de funcionamento do sistema jurisdicional, e só os recursos devem interferir com a determinação que cada um faça dessa sua competência (as decisões sobre a competência ou as condições do seu exercício podem estar sujeitas a recurso. 8)
11. Nenhuma similitude é possível estabelecer entre esta questão e as que já foram alvo de decisão por parte do Tribunal Constituciona1, designadamente a do Acórdão n.° 593/2007.
12. O próprio Tribunal Constitucional já estabeleceu exceções a uma irrestrita previsão legal (n.° 3 do artigo 72.° da LOTC) e constituciona1 (n.° 3 do artigo 280.° da CRP), por ter entendido que assim o impunha a particular natureza de algumas decisões (Acórdão n.° 356/2009).
13. A jurisprudência constitucional já invocou por diversas vezes (Acórdãos nºs. 150/93, 345/99, 533/99, 412/00, 513/00, 157/01 e 279/01) a importância da tutela da aparência de imparcialidade e objetividade no exercício do poder jurisdicional. Essa aparência - pe1o menos - é afetada pela inadmissibilidade de recurso no caso de fixação da heterónoma da competência de um tribunal, em sentido oposto à anterior decisão deste, por um de vários possíveis decisores.
14. Sobretudo quando tal decisão tem a ver com a competência para impor medidas de coação a um sujeito processual que se presume - e, até trânsito da decisão condenatória, é - inocente.
15. Sobretudo quando a decisão sobre a (in)competência foi proferida por apenas dois dos vários possíveis tribunais com jurisdição sobre os factos investigados a nível central.
16. Deve, portanto, ser julgada inconstitucional a norma do artigo 36.°, n.° 2, do CPP, interpretada no sentido de impedir o recurso da decisão de (apenas) um dos presidentes das secções criminais do Tribunal da Relação quando tal decisão incida sobre um conflito de competências entre tribunais de 1a instância sobre a aplicação de medidas de coação no âmbito de um processo-crime em que conflui a competência de vários tribunais, por ter sido a competência investigatória do Ministério Público em cada um deles avocada pelo DCIAP -, por violação dos referidos princípios e do disposto nos artigos 2.°, 13.°, 20.°, n.° 1, e 32.°, n°s. 1 e 7, da Constituição da República Portuguesa.».
O Ministério Público respondeu, concluindo, por seu lado, o seguinte:
«1. Pretende o arguido A., com a interposição do presente recurso, “ver (…) apreciada a constitucionalidade da norma constante do artigo 36º, nº 2 do Código de Processo Penal, nos termos da qual a decisão sobre conflito (positivo ou negativo) de competência suscitado no âmbito do processo penal – in casu, negativo – é irrecorrível”.
2. O recorrente fundamentou o seu pedido de declaração da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 36º, nº 2 do Código de Processo Penal, na alegada violação dos “artigos 32º, nº 1 e nº 7, 2º, e 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, designadamente quando conjugada esta irrecorribilidade com a unipessoalidade do órgão decisor”.
3. Tal pretensão já foi devidamente analisada na douta Decisão Sumária n.º 78/2013, concordando o recorrido Ministério Público com todas as conclusões substantivas nela alcançadas.
4. Concretizando, não viola, a norma ínsita no artigo 36º, nº 2 do Código de Processo Penal, o parâmetro de constitucionalidade plasmado no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional.
5. Não viola, igualmente, a referida norma contida no artigo 36º, nº 2 do Código de Processo Penal, o parâmetro de constitucionalidade plasmado no artigo 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, em consonância com a firme jurisprudência do Tribunal Constitucional.
6. Paralelamente, e também conforme resulta da Decisão Sumária n.º 78/2013, não se vislumbra que, quer o n.º 7 do artigo 32.º, quer o artigo 2.º, ambos da Constituição da República Portuguesa, indiciem a ocorrência de qualquer violação constitucional, por parte da norma extraída do artigo 36º, nº 2 do Código de Processo Penal.
7. Por fim, também não aduz, o recorrente, qualquer argumento que demonstre qual a medida em que poderão os seus direitos de defesa ser afetados pela decisão, irrecorrível, incidente sobre o conflito negativo de competência para apreciação do seu estatuto processual de arguido.
Em face do explanado, entende o Ministério Público, aqui recorrido, que deverá ser negado provimento ao presente recurso.».
Cumpre apreciar e decidir.
2. O recorrente, nas alegações do recurso, pugna a final pela inconstitucionalidade da «norma do artigo 36.º, n.º 2, do CPP, interpretada no sentido de impedir o recurso da decisão de (apenas) um dos presidentes das secções criminais do Tribunal da Relação quando tal decisão incida sobre um conflito de competências entre tribunais de 1ª instância sobre a aplicação de medidas de coação no âmbito de um processo-crime em que conflui a competência de vários tribunais, por ter sido a competência investigatória do Ministério Público em cada um deles avocada pelo DCIAP», por violação dos princípios consagrados nos artigos 2.º, 13.º, 20.º, nºs. 1 e 7, da CRP.
Especificou, contudo, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, em observância do correspondente ónus (artigo 75.º-A, n.º 1, da LTC), que pretendia ver apreciada a inconstitucionalidade da «norma constante do artigo 36.º, n.º 2, do CPP, nos termos da qual a decisão sobre conflito (positivo ou negativo) de competência suscitado no âmbito do processo penal (…) é irrecorrível», por violação dos artigos 32.º, nºs. 1 e 7, 2.º e 20.º, n.º 1, da CRP, «designadamente quando conjugada esta irrecorribilidade com a unipessoalidade do órgão decisor».
O relator no Tribunal Constitucional considerou, na decisão sumária proferida nos autos, que decorria do requerimento de interposição do recurso, no contexto do processado, estar especificamente em causa a inconstitucionalidade da «norma que, extraída do artigo 36.º, n.º 2, do CPP, não permite ao arguido recorrer da decisão sobre o conflito de competências». O recorrente, na reclamação para a conferência que procedentemente contra ela deduziu, não impugnou uma tal delimitação do objeto do recurso, pelo que, com o seu deferimento, os autos prosseguiram para alegações com tal objeto, que substancialmente corresponde aos termos em que o recorrente o delimitou no requerimento de interposição do recurso.
Assim sendo, não pode o recorrente, em fase de alegações, aditar ao objeto do recurso elementos normativos e/ou processuais que dele não constavam, no momento em que interpôs o recurso de constitucionalidade, como fez ao sindicar agora a inconstitucionalidade da «norma do artigo 36.º, n.º 2, do CPP, interpretada no sentido de impedir o recurso da decisão de (apenas) um dos presidentes das secções criminais do Tribunal da Relação quando tal decisão incida sobre um conflito de competências entre tribunais de 1ª instância sobre a aplicação de medidas de coação no âmbito de um processo-crime em que conflui a competência de vários tribunais, por ter sido a competência investigatória do Ministério Público em cada um deles avocada pelo DCIAP».
Assim, e sem prejuízo de se vir a considerar, em apreciação do mérito das invocadas razões de inconstitucionalidade, a circunstância de a decisão cuja irrecorribilidade o recorrente considera constitucionalmente censurável ser da competência dos presidentes das secções criminais das relações (artigo 12.º, n.º 5, alínea a), do CPP) – que o recorrente destacou ao referir-se, no requerimento de interposição do recurso, à «unipessoalidade do órgão decisor» –, não integra claramente o objeto do recurso, tal como foi irreversivelmente fixado pelo recorrente no respetivo requerimento de interposição, a concreta matéria para cuja apreciação os tribunais ora em conflito declinaram competência (aplicação de medidas de coação) nem quaisquer outras especificidades processuais que os autos comportem (como seja, a avocação pelo DCIAP da respetiva competência investigatória e a alegada confluência de competência dos vários tribunais para os apreciar).
Cumpre, por isso, e tão só, aferir da inconstitucionalidade da «norma que, extraída do artigo 36.º, n.º 2, do CPP, não permite ao arguido recorrer da decisão sobre conflitos de competência», independentemente da concreta matéria sobre que recai a competência dessa forma fixada, designadamente à luz das garantias de defesa do arguido, em particular o direito ao recurso (artigo 32.º, n.º 1, da CRP) e do direito de acesso aos tribunais (artigo 20.º, n.º 1, da CRP).
3. No que respeita ao direito de recurso que a Constituição expressamente integra no estatuto jusconstitucional do arguido em processo penal (artigo 32.º, n.º 1, da CRP), o Tribunal Constitucional tem sustentado, em jurisprudência constante, que um tal direito, sendo um meio de garantia de defesa do arguido, se dirige primacialmente a assegurar que este possa ver reapreciada, pelo menos num grau de recurso, a decisão que o condena pela prática de um crime e todas as outras decisões que, não sendo condenatórias, restrinjam ou comprimam ao longo do processo os seus direitos fundamentais. Mas não se integra no âmbito da respetiva tutela constitucional a possibilidade de sindicar perante um tribunal superior todo e qualquer despacho do juiz proferido em processo penal, o que naturalmente decorre da necessidade de compatibilizar os fins do processo penal – que, como é sabido, visa a responsabilização criminal de quem atenta contra bens jurídicos penalmente tutelados – com as garantias de defesa do arguido, que, até ao trânsito em julgado da condenação, se presume inocente (artigo 32.º, n.º 2, da CRP) – cf., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 31/87, 259/88, 118/90, 332/91, 189/92, 265/94 e 610/96).
Ora, sem questionar que assim seja, pretende o recorrente que as especificidades normativas da presente questão de inconstitucionalidade reclamam decisão diferente daquela que o Tribunal Constitucional tem adotado nos diversos casos em que, por aplicação dessa jurisprudência, se não censuraram normas que vedam ao arguido o direito de recorrer de decisões judiciais proferidas em processo penal (cf., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 31/87, 118/90, 259/88, 353/91, 321/93, 265/94, 610/96, 468/97, 216/99, 387/99, 371/00, 375/00, 30/01, 158/03 e 565/07).
E, nessa linha de argumentação, destaca, por um lado, a circunstância de a decisão de que se pretende recorrer ser proferida por um órgão unipessoal (o presidente da secção criminal do tribunal da relação a quem os autos vierem a ser distribuídos) e, por outro, incidir sobre matéria de particular relevo constitucional, por respeitar à competência dos tribunais para decidir a aplicação de medidas de coação. Por outro lado, sustenta-se, ainda, em refutação das razões de celeridade e eficácia que o Tribunal Constitucional tem invocado para justificar constitucionalmente a irrecorribilidade de certas decisões judiciais, que, sendo negligenciável o atraso implicado no exercício do reclamado direito ao recurso, são particularmente relevantes, na perspetiva do direito de defesa do arguido, os ganhos decorrentes da possibilidade de ver reapreciada por um tribunal superior, no caso, o Supremo Tribunal de Justiça, a decisão tomada pelo presidente de uma das três secções criminais do tribunal da relação, em matéria de tal relevo constitucional (reduzir-se-á, deste modo, o risco de erro judiciário, potenciar-se-á maior qualidade da decisão e o estabelecimento de uma «orientação definitiva» sobre a matéria e, finalmente, permitir-se-á ao arguido a invocação de novas razões de defesa não antes aduzidas).
Deve começar por dizer-se que, não integrando o objeto do recurso a matéria para cujo conhecimento os tribunais em conflito negaram, no caso, competência (definição do estatuto coativo do arguido), é irrelevante o que o recorrente invoca a esse respeito; o que está em causa é, pois, a conformidade constitucional da norma que veda ao arguido a possibilidade de recorrer da decisão que resolve o conflito de competências entre tribunais no âmbito do processo criminal, independentemente de se tratar de competência material ou funcional, não relevando, pois, nem a natureza da matéria nem a fase do processo em que o conflito se suscite.
A exigência constitucional de que o julgamento se faça «no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa» (artigo 32.º, n.º 2, da CRP), traz implícita a ideia de que a celeridade do processo penal, sendo um princípio de ordenação eficaz dos meios de realização do poder punitivo do Estado, encontra o seu limite referencial de adequação no sujeito (arguido) que por ele é visado. O que significa que as soluções que nela encontram justificação apenas são constitucionalmente aceitáveis se e na medida em que não afetem relevantemente os direitos do arguido, impedindo ou condicionando de forma desnecessária ou desproporcional o exercício do direito que lhe assiste em nuclearmente se defender da imputação de que praticou um crime.
A impossibilidade de recorrer da decisão que resolve o conflito de competências suscitado entre dois tribunais, encontrando justificação na necessidade de dotar o processo penal de mecanismos que garantam o seu célere e eficaz desenvolvimento, comprime intoleravelmente os direitos de defesa do arguido?
Não se questiona a sensibilidade constitucional de toda a matéria atinente à organização e competência dos tribunais, que entronca no princípio do juiz natural e da exigência de que a parcela de jurisdição atribuída a cada tribunal seja objeto de prévia e clara determinação legal; não se afigura, porém, que a definição judicial, em caso de conflito, de qual seja o tribunal competente para apreciar determinada matéria ou intervir em dada fase do processo assuma expressivo grau de incidência na esfera jurídico-processual do arguido em termos de implicar para este, só por si, o direito de a ver reapreciada por um tribunal superior.
Trata-se, no contexto do processado, de uma questão claramente prévia e incidental de cuja resolução depende o prosseguimento do processo; e é com o seu desencadear, tendente à determinação do responsável pela prática do crime e sua punição, que as exigências de garantia de defesa do arguido mais se fazem sentir, assumindo-se como limite ou critério referencial de legitimidade constitucional da forma como se desenvolve o processo penal e realiza os fins de direito penal substantivo que lhe estão afetos.
Por outro lado, não se pode sustentadamente afirmar que a intervenção jurisdicional na resolução de um conflito de competências nos termos em que está legalmente consagrada possa comprometer os valores tutelados pelo princípio do juiz natural; o critério de definição de competências está fixado na lei e é exclusivamente por respeito ao critério legal previamente fixado que o presidente das secções criminais do tribunal da relação, que está hierarquicamente posicionado acima dos tribunais em conflito, decide o conflito suscitado sobre tal matéria. Aliás, a decisão que é neste âmbito proferida representa materialmente uma reapreciação judicial das decisões proferidas em primeira instância sobre a questão de competência nela apreciada, em relação à qual tiveram as partes oportunidade processual de se pronunciar, rebatendo ou reforçando as razões invocadas em fundamento das decisões em conflito (artigo 36.º, n.º 1, do CPP).
Acresce que os presidentes das secções criminais dos tribunais da relação com competência para decidir o conflito (artigo 12.º, n.º 5, alínea a), do CPP) intervêm no exercício estrito de funções jurisdicionais (cf., sobre a competência jurisdicional dos presidentes dos tribunais superiores, Acórdãos nºs. 351/2007, 525/2007 e 593/2007), sendo que a alea inerente ao regime de distribuição imperante, podendo o presente incidente ser distribuído a qualquer um dos presidentes das várias secções criminais que poderão integrar o tribunal da relação é, em si mesma, garantia acrescida para a defesa do arguido, não representando a mera eventualidade de decisões diferentes sobre a mesma matéria, apesar de tudo condicionadas pelas particularidades de cada incidente, razão suficiente para censurar constitucionalmente a norma que veda a sua reapreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, cujas competências materiais de apreciação assentam numa justificada lógica de intervenção excecional baseada em critérios que assentam na natureza e gravidade das decisões recorridas (artigo 432.º do CPP).
Finalmente, se é certo que a colegialidade do órgão decisor objetivamente oferece mais garantias ao arguido, inexiste qualquer exigência constitucional de que as decisões em matéria penal sejam proferidas por um tribunal coletivo ou de que, sendo proferidas por um juiz singular, assista ao arguido, apenas em razão disso, o direito de as ver reapreciadas por um tribunal superior. O que releva, para este efeito, não é tanto quem decide sem possibilidade de recurso mas a matéria sobre que recai a decisão (singular) irrecorrível, pois que é em função dela que se afere da suscetibilidade de afetação dos direitos do arguido e, atenta a sua maior ou menor virtualidade ofensiva, da exigência constitucional de que sobre ela recaia o direito de recurso.
Ora, é evidente que o direito de recurso, representando um meio de reação contra os próprios atos judiciais, constitui sempre uma garantia de defesa acrescida para o arguido, reduzindo o risco de erro judiciário, potenciando uma maior qualidade e uniformidade da decisão e permitindo ao arguido a invocação de novas razões de defesa não antes aduzidas, como invocado pelo recorrente. O que sucede é que, não sendo o direito ao recurso um direito ilimitado e absoluto, como não o é, no contexto de um processo em que confluem dialecticamente valores constitucionais potencialmente conflituantes, nem sempre a realização dos valores tutelados com a sua expressa consagração constitucional deve prevalecer sobre outros que também merecem tutela constitucional, como são todos os bens jurídicos violados pelo crime que, através do processo penal, se quer eficazmente reprimir.
O ponto ideal de conciliação deve ser encontrado, no caso, em aplicação dos princípios imperantes em matéria de restrição dos direitos fundamentais (artigo 18.º da CRP), pela ponderação da necessidade, adequação e proporcionalidade da solução que, no contexto do processo penal e das diversas garantias de defesa que ele oferece, veda ao arguido, em relação a determinados atos judiciais, a possibilidade de recurso. E, vista em contexto a norma que prevê a irrecorribilidade da decisão de conflito, que justificadamente se pretende imediata, atenta a natureza prévia e incidental da questão que é dela objeto - sem particular grau de complexidade e com graves efeitos bloqueadores na dinâmica do processado -, nela não se descortina, pelas razões antes aduzidas, quaisquer indicadores de desnecessidade ou excesso que a tornem suscetível de censura constitucional.
Finalmente, invocando o recorrente a inconstitucionalidade da norma ora em apreciação também à luz dos parâmetros de validade enunciados nas normas dos artigos 2.º, 13.º, 20.º, n.º 1, da CRP, nada aduz que possa valer autonomamente como razão demonstrativa da alegada violação dos específicos direitos e princípios consagrados nesses preceitos constitucionais. Assim sendo, não se descortinando na norma do n.º 2 do artigo 36.º do CPP qualquer afetação do direito de acesso ao direito e aos tribunais - que, aliás, se realiza com a prolação de uma decisão judicial em prazo razoável -, do princípio da igualdade ou dos princípios inerentes ao Estado de Direito Democrático, impõe-se, também nessa perspetiva valorativa, a formulação de um juízo de não inconstitucionalidade.
4. Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma extraída do n.º 2 do artigo 36.º do Código de Processo Penal que veda ao arguido a possibilidade de recorrer da decisão sobre conflitos de competência;
b) Negar, em consequência, provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.
Lisboa, 7 de janeiro de 2014. – Carlos Fernandes Cadilha – Maria José Rangel de Mesquita – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.