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Processo n.º 576/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza propôs no Tribunal Administrativo de Lisboa ação administrativa especial de anulação da Declaração de Impacte Ambiental favorável condicionada à alternativa 12 relativa ao Projeto dos Aproveitamentos Hidroelétricos (AH) de Gouvães, Padroselos, Alto Tâmega e Daivões, emitida pelo Secretário de Estado do Ambiente, em 21 de junho de 2010.
Foi proferida sentença que julgou improcedente esta ação.
A Autora interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Central Administrativo Sul.
Após a Autora, a convite do Desembargador Relator, se ter pronunciado sobre a possibilidade do recurso não ser conhecido, foi proferido acórdão, pelo Tribunal Central Administrativo Sul, que não conheceu do recurso por tê-lo considerado legalmente inadmissível.
A Autora recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, nos seguintes termos:
“I A DECISÃO RECORRIDA E O OBJECTO DO RECURSO
1.º Os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul acordaram «não tomar conhecimento do recurso jurisdicional interposto, por sua inadmissibilidade legal».
2.º Nos termos da decisão recorrida, que se transcreve de seguida:
«A Quercus (...) veio interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, datada de 31/08/2012, proferida em primeira instância pelo Mº Juiz relator, no quadro da utilização da faculdade conferida pela alínea i), do n.º 1 do art.º 27.º do CPTA, nos termos expressamente invocados na sentença – cfr. o disposto no º 3 do art.º 40.º do ETAF
A ação foi instaurada em 2010 e à mesma foi atribuído o valor de € 30.000,01.
Como estabelece o art.º 27.º n.º 2, o assim decidido pelo relator não é sindicável através de recurso para o Tribunal Superior, mas sim através de reclamação para a conferência do próprio Tribunal, ou melhor, para a formação de três juízes prevista no n.º 3 do art.º 40.º do ETAF.
Neste sentido, vide além de entre outros arestos do TCAS e do STA, ainda o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STA, sob o n.º 3/2012, datado de 05/06/2012, extraído do processo n.º 420/12, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 182, de 19109/2012.
Pelo que, afigurando-se-nos que a decisão recorrida era e é insuscetível de recurso imediato, mas suscetível de reclamação para a conferência, como estabelece nº 2 do citado art.º 27.º, não se pode conhecer do recurso, que aliás, nem deveria ter sido admitido como tal (cfr. n.º 5 do art.º 685.º - C do CPC).
O requerimento de interposição de recurso deveria ter sido convolado em reclamação, no caso de a recorrente ter respeitado o prazo legal de 10 dias para a sua apresentação.
Tendo as partes sido notificadas da sentença recorrida por ofícios expedidos em 13/09/2012 e tendo sido apresentado recurso jurisdicional em 17/10/2012, tal prazo não se mostra respeitado.
Assim, não é possível, concluir pela possibilidade de convolação do recurso em reclamação, visto não se mostrar respeitado o seu respetivo prazo legal de 10 dias. Não deveria ter sido proferido despacho de admissão de recurso, pois que, da decisão recorrida cabe reclamação para a conferência, ao abrigo dos arts 27.º, n.º 2 e 29.º, nº 1 do CPTA e do art.º 199 do CPC.
Esta interpretação não enferma do juízo de inconstitucionalidade apontado pela recorrente, pois não só está em causa a aplicação dos normativos de direito aplicáveis à situação, como tal entendimento foi já assumido pelo Supremo Tribunal Administrativo, quer em vários dos seus arestos, quer ainda nos termos em que este veio a fixar a jurisprudência, uniformizando a interpretação a expender quanto a caber a apresentação da reclamação para a conferencia e não o recurso imediato.»
3.º Considera, pois, a decisão recorrida que das sentenças proferidas pelo relator nos termos da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º do CPTA cabe reclamação para a conferência, ou formação de três juízes prevista no n.º 3 do art.º 40.º do ETAF, nos termos do disposto no n.º 2 do daquele preceito.
4.º Ora, o disposto na da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º do CPTA e no n.º 2 do mesmo preceito não pode ser interpretado como se determinasse que das sentenças proferidas pelo relator nos termos da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º do CPTA cabe reclamação para a conferência nos termos do disposto no n.º 2 do mesmo preceito.
5.º A norma constante do n.º 2 do artigo 27.º do CPTA, interpretada no sentido de que as decisões proferidas no âmbito de Ações Administrativas Especiais de valor superior à alçada do Tribunal Administrativo de Círculo, quando julgadas pelo Tribunal singular ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º do CPTA, não são suscetíveis de recurso ordinário para o Tribunal Central Administrativo, nos termos do n.º 1 do artigo 142.º do mesmo código, mas apenas de reclamação para a conferência, é inconstitucional.
6.º Esta interpretação viola o direito ao recurso como corolário do princípio estruturante do acesso universal ao direito e à tutela jurisdicional efetiva plasmado no n.º 1 do artigo 20.º da CRP.
7.º Desde logo, o recurso das decisões jurisdicionais é uma garantia imprescindível que não pode ser limitada desta forma excessiva.
8.º Mas, tal interpretação viola ainda os princípios da segurança e da confiança jurídicas decorrentes do princípio do Estado de Direito Democrático tal como consagrado no artigo 2.º da CRP.
9.º Tal como definido por Gomes Canotilho1, o princípio da segurança jurídica, enquanto implicado pelo princípio do Estado de Direito Democrático, comporta duas ideias basilares: (i) a de estabilidade, no sentido de que as decisões estatais, incluindo as leis, «não devem poder ser arbitrariamente modificadas, sendo apenas razoável a alteração das mesmas quando ocorram pressupostos materiais particularmente relevantes»; e (ii) a da previsibilidade que, no essencial se «reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos atos normativos».
10.º Daí que a realização e efetivação do princípio do Estado de Direito imponha um certo grau de calculabilidade e previsibilidade sobre as situações jurídicas, ou seja, que se mostre garantida a confiança na atuação dos entes públicos.
11.º Motivo pelo qual se vem requerer a fiscalização concreta da constitucionalidade, das normas constantes dos artigos 27.º, n.º 1 alínea i) e n.º 2 quando interpretadas no sentido que das decisões proferidas no âmbito de Ações Administrativas Especiais de valor superior à alçada do Tribunal Administrativo de Círculo, julgadas pelo Tribunal singular ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º, não cabe recurso ordinário para o Tribunal Central Administrativo, nos termos do n.º 1 do artigo 142.º do mesmo código, mas apenas reclamação para a conferência.
II DA LEGITIMIDADE DA ORA RECORRENTE
12.º A ora recorrente suscitou as questões de constitucionalidade durante o processo, em sede de pronúncia, a 21 de Março de 2013.
13.º De facto, a ora Recorrente interpôs Recurso da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que foi admitido pelo Tribunal a quo a 26 de Outubro de 2012 e distribuído no Tribunal Central Administrativo Sul a 10 de Janeiro de 2013.
14.º Depois da distribuição a ora recorrente foi ainda notificada para responder ao Parecer apresentado peio Ministério Publico, nos termos do disposto no artigo 146.º, n.º 2 do CPTA.
15.º Apenas depois da sua resposta, a ora Recorrente foi notificada para se pronunciar sobre despacho em que se considerava que não deveria ter sido admitido o recurso ao abrigo dos artigos 27.º, n.º 2 e 29.º, n.º 1 do CPTA dado o decidido pelo relator não ser «sindicável através de recurso para o Tribunal Superior, mas sim através de reclamação para a conferência do próprio Tribunal, ou melhor para a formação de três juízes prevista no n.º 3 do art.º 40.º do ETAF».
16.º Assim sendo, a ora Recorrente invocou expressamente as questões que pretende ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, nos artigos 76.º e 77.º da sua pronúncia sendo, pois, parte legítima de acordo com o disposto nos n.ºs 1 alínea b) e 2 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82, na redação da Lei n.º 13-A/98 de 26 de Fevereiro.
Nestes termos, por estar em tempo e ter legitimidade, requer a V. Ex.a. se digne admitir o recurso ora interposto dirigido ao Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, na redação da Lei n.º 13-A/98 de 26 de Fevereiro, para fiscalização concreta da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 27.º, n.º 1 alínea i) e n.º 2 do CPTA quando interpretadas no sentido que das decisões proferidas no âmbito de Ações Administrativas Especiais de valor superior à alçada do Tribunal Administrativo de Círculo, julgadas pelo Tribunal singular ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º, não cabe recurso ordinário para o Tribunal Central Administrativo, mas apenas reclamação para a conferência.
A ora Recorrente está isenta de custas nos termos do disposto nas alíneas b) e f), do n.º 1, do artigo 4.º do Regulamento das Custas Judiciais aplicável ex vi artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 91/2008, de 2 de Junho.”
Apresentou alegações, com as seguintes conclusões:
“A. As normas constantes do artigo 27.º, n.º 1 alínea i) e n.º 2 do CPTA quando interpretadas no sentido que das sentenças proferidas no âmbito de Ações Administrativas Especiais de valor superior à alçada do Tribunal Administrativo, de Círculo julgadas por juiz singular ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º, não cabe recurso ordinário para o Tribunal Central Administrativo, mas apenas reclamação para a conferência são inconstitucionais por violação dos princípios da segurança e da confiança jurídicas decorrentes do princípio do Estado de Direito Democrático tal como consagrado no artigo 2.º da CRP, bem como por violação do direito ao recurso como corolário do princípio estruturante do acesso universal ao direito e à tutela jurisdicional efetiva plasmado no n.º 1 do artigo 20.º da CRP.
B. In casu, a ora Alegante intentou ação administrativa especial ao abrigo do disposto no artigo 2.º da Lei de Ação Popular contra ato administrativo lesivo do interesse ambiental e, portanto, para defesa do ambiente enquanto direito constitucional fundamental, pedindo a anulação da DIA favorável condicionada à alternativa 12 relativa ao Projeto dos Aproveitamentos Hidroelétricos de Gouvães, Padroselos, Alto Tâmega e Daivões, emitida pelo Senhor Secretário de Estado do Ambiente, a 21 de junho de 2010.
C. Não obstante o processo cautelar dependente dos presentes autos ter sido deferido em sede de recurso, pelo Tribunal Central Administrativo Sul, em 25 de outubro de 2012, a 17 de setembro de 2012 a ora alegante foi notificada de «sentença/acórdão» composto por 37 páginas relativo à matéria supra identificada que julgou improcedente o pedido.
D. Não podendo conformar-se com tal decisão a ora alegante interpôs recurso nos termos do disposto nos artigos 140.º, 141.º n.º 1, 142.º n.º 1 e 144.º do CPTA, apresentando, ao abrigo do disposto no artigo 144.º, n.º 2 do mesmo diploma, as respetivas alegações.
E. Por Acórdão de 24 de abril de 2013, os juízes do Tribunal Central Administrativo Sul acordaram «não tomar conhecimento do recurso jurisdicional interposto, por sua inadmissibilidade legal»; tal Acórdão assenta no enunciado critério normativo que das sentenças proferidas no âmbito de Ações Administrativas Especiais de valor superior à alçada do Tribunal Administrativo de Círculo, julgadas pelo Tribunal singular ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º, não cabe recurso ordinário para o Tribunal Central Administrativo, mas apenas reclamação para a conferência.
D. Ora, a realização e efetivação do princípio do Estado de Direito exige um elevado grau de calculabilidade e previsibilidade sobre as situações jurídicas, ou seja, que se mostre garantida a confiança na atuação dos entes públicos impondo-se que a lei satisfaça exigências de certeza, compreensibilidade, razoabilidade, determinabilidade, estabilidade, previsibilidade.
G. Tais exigências são evidentemente frustradas se se admitir que a norma que determina que «dos despachos do relator cabe reclamação para a conferência» comporte a interpretação normativa supra mencionada.
H. Não só (i) o regime previsto no capítulo I do título VII do CPTA que regula os recursos jurisdicionais em contencioso administrativo; como (ii) o teor do artigo 27.º do CPTA; e, por fim, (iii) a notificação recebida a 17 de setembro de 2012 aludindo à «sentença/acórdão de que se junta cópia» geraram à ora Alegante a legítima expectativa do direito ao recurso a interpor num prazo de 30 dias.
I. A expectativa criada aquando da propositura da ação com valor superior à alçada do Tribunal Administrativo de Círculo pelo direito processual (maxime, pelo regime de recursos em contencioso administrativo) é a de se estar perante um processo que, em caso de improcedência do pedido, admitia um recurso jurisdicional a interpor num prazo de 30 dias, expectativa esta que sempre norteou a atuação da Autora.
J. Contra tal entendimento não poderá entender-se que não se encontra violado o direito ao recurso jurisdicional, uma vez que o mesmo sempre poderia ser exercido apenas ficando dependente da prévia reclamação para a conferência no prazo estipulado legalmente, nos termos do n.º 2 do artigo 27.º do CPTA, pois tal entendimento nem sequer tem qualquer acolhimento na interpretação desta norma, que determina literal e inequivocamente que dos despachos do relator cabe reclamação para a conferência e não que das sentenças do relator cabe reclamação para a conferência.
K. Assim, se a disposição normativa que determina que «dos despachos do relator cabe reclamação para a conferência» vier a ser interpretada no sentido que das sentenças proferidas pelo relator, nos termos da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º do CPTA cabe reclamação para a conferência violar-se-ão irremediavelmente as expectativas de estabilidade e validade não só do regime geral de recursos do contencioso administrativo como também do próprio regime estabelecido pelo artigo 27.º do CPTA.
L. Isto, quando nenhuma razão de interesse público justifica, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa pois inexiste, in casu, qualquer necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes sobre o direito ao recurso da ora alegante.
M. A interpretação das normas constantes do artigo 27.º do CPTA, no sentido que as decisões proferidas no âmbito de Ações Administrativas Especiais de valor superior à alçada do Tribunal Administrativo de Círculo, quando julgadas pelo Tribunal singular ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º do CPTA, não são suscetíveis de recurso ordinário para o Tribunal Central Administrativo, mas apenas de reclamação para a conferência, não cumpre nenhum objetivo de celeridade processual antes exigindo uma «etapa» adicional e irrelevante para o julgamento da causa.
N. Mesmo que assim não se entendesse, o que só se admite por mero dever de patrocínio, no confronto destes dois objetivos - por um lado, o imperativo de celeridade na apreciação de recursos sem fundamento ou manifestamente dilatórios, por outro, a garantia de recurso contra atos jurisdicionais - a frustração do direito ao recurso afigura-se contrária ao artigo 2.º da CRP, por ser excessivamente onerosa.
O. Por outro lado, a interpretação normativa em crise viola ainda o direito à reapreciação judicial das decisões judiciais decorrente não só do princípio do Estado de Direito mas também enquanto dimensão do direito de acesso ao direito e aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva tal como consagrado no artigo 20.º da CRP.
P. Na verdade tal interpretação normativa permite uma restrição ao direito de recurso por intermédio de uma exigência puramente formal, que exatamente por ser «destituída de qualquer sentido útil e razoável quanto à disciplina processual» revela-se imposta de forma arbitrária.
Q. Tal restrição ao direito ao recurso só seria lícita se se conformasse com as exigências decorrentes do regime do artigo 18.º da CRP aplicável aos direitos fundamentais de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias consagrados na CRP por força do disposto no artigo 17.º, também da CRP e, particularmente, se se conformasse com o cumprimento do princípio da proporcionalidade, inscrito na parte final do n.º 2 do referido preceito e consequentes exigências de adequação, necessidade e razoabilidade.
R. Acontece que, a interpretação normativa de que nos ocupamos acarreta consequências desconformes com o princípio da proporcionalidade porquanto dificulta, de modo excessivo ou intolerável, a atuação procedimental facultada às partes impossibilitando o exercício do direito: a imposição de uma reclamação para a conferência a interpor num período de 10 dias não pode ser considerada adequada, nem necessária ou razoável.
S. Neste contexto, sempre terá de se considerar que o facto de a legislação processual administrativa admitir a interposição de recurso num prazo de 30 dias em todas as ações administrativas especiais de valor superior à alçada, nos termos do regime estabelecido nos artigos 140.º e seguintes do CPTA, para depois a interpretação normativa de que nos ocupamos vir restringir tal direito ao recurso, num conjunto de situações dependentes de uma decisão irrecorrível do Relator, consubstanciaria não só violação do direito ao recurso decorrente do direito de acesso ao direito e aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva como do princípio da igualdade, consagrado pelo artigo 13.º, n.º 1, da CRP, na sua dimensão de «proibição do arbítrio».
T. Trata-se, de facto, de uma interpretação normativa que, de forma absolutamente inovatória e surpreendente (face à prática consensualizada e jurisprudencialmente consolidada desde a entrada em vigor do CPTA, a 1 de janeiro de 2004) cria uma exigência formal que não se podia nem devia razoavelmente antecipar.
U. Por tudo o exposto, sempre terá de se considerar que a interpretação normativa que orientou a decisão do Tribunal Central Administrativo Sul é inconstitucional.
V. De facto, as normas constantes do artigo 27.º, n.º 1 alínea i) e n.º 2 do CPTA quando interpretadas no sentido que das sentenças proferidas no âmbito de Ações Administrativas Especiais de valor superior à alçada, julgadas pelo Tribunal singular ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º, não cabe recurso ordinário para o Tribunal Central Administrativo, mas apenas reclamação para a conferência são inconstitucionais por violação dos princípios da segurança e da confiança jurídicas decorrentes do princípio do Estado de Direito Democrático tal como consagrado no artigo 2.º da CRP, bem como por violação do direito ao recurso como corolário do direito de acesso universal ao direito e à tutela jurisdicional efetiva plasmado no artigo 20.º da CRP, maxime n.ºs 1 e 4.
Nestes termos e nos demais de direito:
Deverá ser julgada inconstitucional, por violação dos artigos 2.º e 20.º da CRP, a interpretação normativa das normas constantes do artigo 27.º, n.º 1 alínea i) e n.º 2 do CPTA no sentido que das sentenças proferidas no âmbito de Ações Administrativas Especiais de valor superior à alçada, julgadas pelo Tribunal singular ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º, não cabe recurso ordinário para o Tribunal Central Administrativo, mas apenas reclamação para a conferência, devendo ordenar-se a reforma da decisão impugnada em consonância com o julgamento da questão de inconstitucionalidade.”
A., S.A.U., contra-alegou, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“A. A Lei do Tribunal Constitucional determina que cabe recurso para este Tribunal das decisões dos tribunais que não admitam recurso ordinário e que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo;
B. A Recorrente não só não indicou em que momento é que esta questão de inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, como também não indicou a ocorrência de uma eventual situação de superveniência que legitimasse a dispensa de preenchimento deste requisito, nomeadamente por estarmos perante uma 'decisão surpresa';
C. Por seu turno, tal como é configurado o pedido da ora Recorrente, o acórdão recorrido era passível de recurso ordinário, em concreto de recurso excecional de revista para o STA, com fundamento em violação de lei processual por parte do TCA Sul;
D. Não se encontram deste modo preenchidos os pressupostos de que a Lei do Tribunal Constitucional faz depender a admissão dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade de decisões dos Tribunais, motivos pelos quais esse Tribunal deverá determinar a rejeição do presente recurso.
E. No que tange às inconstitucionalidades apontadas à decisão recorrida, é de concluir que do n.º 2 do artigo 27.º do CPTA não resulta um regime diferente para os despachos interlocutórios e para as decisões de mérito, cabendo de quaisquer das decisões reclamação para a conferência, salvaguardadas necessariamente as situações expressamente indicadas na norma;
F. Aliás este entendimento sai reforçado com a prolação pleno da Secção do CA do STA, em 5 de junho de 2012, no âmbito de um recurso para a uniformização de jurisprudência, que fixou jurisprudência no sentido de que das decisões do juiz relator sobre o mérito da causa proferidas sob a invocação dos poderes conferidos no artigo 27.º, n.º 1 al. i) do CPTA cabe reclamação para a conferência, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito e não recurso;
G. Com efeito, esta posição não viola quaisquer dos preceitos constitucionais invocados pela Recorrente, na medida em que a reclamação para a conferência é uma forma como outra qualquer de reagir contra decisões desfavoráveis, que não limita, antes acrescenta as formas de reação, não resultando daqui qualquer prejuízo dos princípios pro actione e da tutela jurisdicional efetiva;
H. Relativamente à obrigação de convolar o recurso em reclamação, com fundamento na violação do princípio da tutela e da confiança, é de concluir que a interposição de recurso nestas situações consubstancia uma opção por meio processual inadequado, apenas podendo ocorrer essa convolação se estiverem preenchidos os requisitos de admissão da reclamação;
I. Uma vez que à data em que a Recorrente interpôs o recurso já se encontrava transcorrido o prazo de reclamação, tal convolação era processualmente inadmissível;
J. Relativamente à invocada inconstitucionalidade por violação do direito ao recurso, sempre cabe referir que posição sufragada pela doutrina e pela jurisprudência, em particular no supra citado acórdão de uniformização de jurisprudência, não pode ser entendida no sentido de coartar o direito de recurso, mas antes sim o de impor a utilização de um meio processual próprio de reação perante estas decisões antes da interposição de recurso;
K. Com efeito, tal interpretação não restringe ou limita esse direito, porquanto a reclamação para a conferência consubstancia uma forma como qualquer outra de reagir contra decisões desfavoráveis;
L. Conforme é unanimemente referido pela jurisprudência, tal entendimento não limita, antes acrescenta, as formas de reação, pois caberá sempre recurso de uma eventual decisão desfavorável da conferência;
M. No que tange à alegação feita pela Recorrente, no sentido do n.º 2 do artigo 27.º nunca ter sido interpretado no sentido de caber reclamação para a conferência e não recurso ordinário das decisões tomadas pelo Tribunal singular ao abrigo da al. i) do n.º 1 do artigo 27.º, cabe apenas dizer que tal afirmação é lapidarmente contrariada pelos inúmeros acórdãos referenciados e citados ao longo das presentes contra-alegações.
Nestes termos, e nos mais de Direito que Vossas. Excelências, Venerandos Conselheiros, doutamente suprirão, deve o presente recurso:
a) Ser rejeitado, por não estarem preenchidos os pressuposto de admissão prescritos no artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional; ou
b) Serem julgadas improcedentes as inconstitucionalidades apontadas à decisão recorrida.
Assim decidindo, farão Vossas Excelências; Venerandos Conselheiros, a mui costumada e esperada JUSTIÇA!”
*
Fundamentação
1. Do conhecimento do recurso
A Recorrida, nas suas contra-alegações, defendeu que o mérito deste recurso não devia ser conhecido porque a Recorrente não suscitou perante o Tribunal Central Administrativo Sul a questão de constitucionalidade que agora pretende que o Tribunal Constitucional aprecie e ainda porque não esgotou as instâncias de recurso na ordem jurisdicional administrativa, uma vez que o acórdão recorrido era ainda passível de recurso excecional de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do artigo 150.º, do CPTA.
Efetivamente, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente processo –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Consistindo a competência do Tribunal Constitucional, no domínio da fiscalização concreta, na faculdade de revisão, em via de recurso, de decisões judiciais, compreende-se que a questão de constitucionalidade deva, em princípio, ter sido colocada ao tribunal a quo, além de que permitir o acesso a este Tribunal com base numa invocação da inconstitucionalidade unicamente após a prolação da decisão recorrida, abriria o indesejável caminho à sua utilização como expediente dilatório. Daí que só tenha legitimidade para pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização de constitucionalidade de uma norma quem tenha suscitado previamente essa questão ao tribunal recorrido, em termos de o vincular à sua apreciação, face às normas procedimentais que regem o processo em que se enxerta o recurso constitucional.
Da consulta dos autos constata-se que a Recorrente, quando convidada pelo Desembargador Relator para se pronunciar sobre a possibilidade do recurso interposto para o Tribunal Central Administrativo Sul não ser conhecido, por não ser legalmente admissível, na correspondente alegação, apresentada em 25 de março de 2013 (fls. 1831 e seg.), invocou expressamente a questão de constitucionalidade que agora vem colocar ao Tribunal Constitucional nos pontos 71.º a 82.º, tal como mencionou no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (pontos 12 a 16), em cumprimento do disposto no artigo 75.º-A, n.º 2, da LTC, pelo que se encontra cumprida a exigência de suscitação constante do artigo 72.º, n.º 2, da LTC, a qual obteve, aliás, pronúncia pelo tribunal recorrido.
O artigo 70.º, n.º 2, da LTC, determina que os recursos previstos na alínea b), como o presente, apenas cabem de decisões que não admitem recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam, salvo os destinados a uniformização de jurisprudência.
Consagra-se o princípio da exaustão das instâncias que visa assegurar que apenas seja possível aceder ao Tribunal Constitucional, neste tipo de recurso, quanto a decisões que constituam a última palavra na ordem jurisdicional a que pertence o tribunal que a proferiu.
A expressão “recurso ordinário” utilizada no n.º 2, do artigo 70.º, da LTC, não tem, porém, aqui um sentido técnico-processual preciso, reportado à qualificação legal ou ao critério tradicional segundo o qual a distinção entre recursos ordinários e extraordinários radica em que os primeiros têm de ser interpostos antes do trânsito em julgado da decisão recorrida e os segundos só podem (na formulação de Alberto dos Reis) ou também podem (na formulação de Castro Mendes) ser interpostos depois desse trânsito. Não só o n.º 3, do mesmo artigo 70.º, equipara os “recursos ordinários” às reclamações para os Tribunais Superiores ou para a conferência, como deles expressamente foram excluídos os recursos que visem uma uniformização da jurisprudência, na sequência das alterações introduzidas na LTC pela Lei n.º 13-A/98, além de que as impugnações efetuadas nos incidentes pós-decisórios se lhes equivalem, no que respeita às normas que são aplicadas na decisão de tais incidentes.
Note-se que a expressa exclusão dos recursos que visem uma uniformização de jurisprudência do âmbito dos recursos que devem ser utilizados antes de se poder recorrer para o Tribunal Constitucional, de modo a obter-se a última palavra da ordem jurisdicional onde é aplicada a norma cuja constitucionalidade se pretende ver fiscalizada, resultou numa consagração legal do sentido de uma jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional que vinha excluindo a necessidade de interposição desse tipo de recursos para só depois ser acessível o acesso ao Tribunal Constitucional, não por entender que esses recursos fossem catalogados como extraordinários de acordo com os acima referidos critérios distintivos, mas sim por entender que os recursos, visando a uniformização de jurisprudência eram recursos sui generis, dependentes da verificação de um pressuposto específico que é a existência de um anterior acórdão em oposição ao proferido, pelo que não deviam ser considerados recursos ordinários para os efeitos do n.º 2, do artigo 70.º, da LTC.
Como se referiu no Acórdão n.º 105/90 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt):
“Tudo está em que, apesar de o Código de Processo Civil qualificar o recurso para o tribunal pleno como «ordinário», se trata aí de um recurso que transcende já o quadro comum dos meios de impugnação das decisões judiciais, obedecendo, por isso mesmo, a um apertado regime de admissão e tramitação, como é o que consta dos artigos 765.º e 766.º daquele Código. Ponto fulcral desse regime é, como se sabe, o da apreciação prévia pelo Supremo, em secção, da «questão preliminar» da ocorrência de oposição de julgados — só após o que, e uma vez reconhecida a existência dessa oposição, o recurso seguirá, para alegações das partes e julgamento.
Ora, não faz sentido que o eventual cabimento de um recurso como este — um recurso que, em boa verdade, e desde logo, representa já uma possibilidade «excecional» de impugnação de decisões que são em princípio, ou virtualmente, inatacáveis por essa via, e cuja admissibilidade não só depende da verificação duma circunstância concreta e contingente, como ainda tem de ser averiguada em concreto nos termos apontados — possa e deva traduzir-se num obstáculo à admissibilidade (imediata) de recurso para o Tribunal Constitucional das decisões de que também ele pudesse ser, porventura, interposto. Basta pensar em que, não fora assim, e acabaríamos por ter devolvido, em último termo, a este mesmo Tribunal Constitucional (em lugar de ao Supremo, conformemente ao disposto no artigo 766.º do Código de Processo Civil) o encargo de indagar, em concreto, da ocorrência ou não de oposição de julgados do Supremo Tribunal de Justiça, todas as vezes que (como justamente aconteceu no presente caso) tal oposição fosse invocada para comprovar que da decisão recorrida, afinal, ainda cabia um recurso (ordinário). Já se vê que não pode ser.
Que os interessados possam interpor primeiro o recurso previsto no artigo 763.º do Código de Processo Civil (quando entendam ou prevejam que o mesmo é, em concreto, cabido), para só depois, uma vez ele decidido (ou, então, rejeitado pelo Supremo por inadmissível), recorrerem para o Tribunal Constitucional, eis, por certo, o que não deverá questionar-se, e deverá considerar-se garantido pelo disposto nos artigos 74.º, n.º 4, e 75.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional; mas que tenham de fazê-lo (ou então, e de acordo com o que já foi entendido por este Tribunal, que tenham pelo menos de deixar precludir, pelo decurso do respetivo prazo, essa possibilidade: v. Acórdão n.º 8/88, no Diário da República, II Série, de 15 de março de 1988), desde logo, assim, sendo obrigados a «conjeturar» sobre a admissibilidade, em concreto, de tal recurso, eis o que a lógica do artigo 70.º, n.º 2, daquela mesma Lei já não exige, para que se dê por cumprido o requisito do «esgotamento dos recursos ordinários», de que aí se fala.”
Este raciocínio também se aplica à inovatória previsão de mecanismos excecionais de acesso aos Supremos Tribunais, como sucede com o recurso previsto no artigo 150.º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, em que se prevê a possibilidade excecional de recurso das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo, quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Tratando-se de um meio de impugnação de utilização excecional, cuja admissibilidade envolve o preenchimento de conceitos indeterminados, o que é efetuado por uma formação especial de três juízes do Supremo Tribunal Administrativo, não pode ser exigível a sua dedução prévia como condição de acesso ao Tribunal Constitucional, sob pena deste Tribunal ter de se colocar na posição daquele coletivo de juízes para aferir da verificação dos pressupostos de admissibilidade daquele recurso excecional, de modo a poder determinar a exigibilidade da sua dedução.
Face ao exposto, não tem a Recorrida razão quando defende o não conhecimento do mérito deste recurso.
2. Do mérito do recurso
A Recorrente pretende que se verifique a constitucionalidade da interpretação do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, no sentido de que das sentenças proferidas no âmbito de ações administrativas especiais de valor superior à alçada, julgadas pelo Tribunal singular ao abrigo da referida alínea i), do n.º 1, do artigo 27.º, não cabe recurso ordinário para o Tribunal Central Administrativo, mas apenas reclamação para a conferência, a qual foi sustentada pelo tribunal recorrido.
O artigo 27.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos dispõe o seguinte:
“1 — Compete ao relator, sem prejuízo dos demais poderes que lhe são conferidos neste Código:
a) Deferir os termos do processo, proceder à sua instrução e prepará-lo para julgamento;
b) Dar por findos os processos;
c) Declarar a suspensão da instância;
d) Ordenar a apensação de processos;
e) Julgar extinta a instância por transação, deserção, desistência, impossibilidade ou inutilidade da lide;
f) Rejeitar liminarmente os requerimentos e incidentes de cujo objeto não deva tomar conhecimento;
g) Conhecer das nulidades dos atos processuais e dos próprios despachos;
h) Conhecer do pedido de adoção de providências cautelares ou submetê-lo à apreciação da conferência, quando o considere justificado;
i) Proferir decisão quando entenda que a questão a decidir é simples, designadamente por já ter sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado, ou que a pretensão é manifestamente infundada;
j) Admitir os recursos de acórdãos, declarando a sua espécie, regime de subida e efeitos, ou negar-lhes admissão.
2 — Dos despachos do relator cabe reclamação para a conferência, com exceção dos de mero expediente, dos que recebam recursos de acórdãos do tribunal e dos proferidos no Tribunal Central Administrativo que não recebam recursos de acórdãos desse tribunal.”
Neste preceito definem-se os poderes do juiz relator quer nos tribunais superiores, quer nos tribunais administrativos de círculo, nos casos em que este tribunal funciona em conferência (artigo 92.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), como sucede nas ações administrativas especiais de valor superior à alçada, em que o tribunal funciona em formação de três juízes, à qual compete o julgamento da matéria de facto e de direito (artigo 40.º, n.º 3, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais). Nestes casos o juiz relator é aquele a quem o processo foi distribuído.
Na acima transcrita alínea i) permite-se ao juiz relator proferir decisão singular quando entenda que a questão a decidir é simples, designadamente por já ter sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado, ou quando a pretensão é manifestamente infundada, de modo idêntico ao previsto no artigo 656.º, do Código de Processo Civil.
Permite-se ao relator, por razões de celeridade, nas situações acima referidas, julgar singularmente, dispensando a intervenção da conferência.
O n.º 2, do mesmo artigo 27.º, dispõe que “dos despachos do relator cabe reclamação para a conferência…”.
O tribunal recorrido interpretou este preceito no sentido de o mesmo ser também aplicável às decisões singulares proferidas nos termos da referida alínea i), do n.º 2, do artigo 27.º, desconsiderando o facto daquele n.º 2 utilizar o termo “despachos” e aquelas decisões constituírem “sentenças”, no seguimento de posição consolidada no domínio do processo civil, perante preceito idêntico, e do sentido do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 5 de junho de 2012 (acessível em www.dgsi.pt), que solucionou divergências jurisprudenciais nesta matéria.
A Recorrente invoca que esta interpretação viola o direito ao recurso, enquanto expressão do direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º, da Constituição, e os princípios da segurança jurídica e da confiança inerentes a um Estado de direito democrático.
Relativamente ao direito ao recurso, conforme se escreveu no Acórdão n.º 40/2008 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt) e tem sido jurisprudência uniforme e constante deste Tribunal: “o artigo 20.º, n.º 1, da Constituição assegura a todos “o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
Tal direito consiste no direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência, e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade no que diz respeito à defesa dos respetivos pontos de vista (designadamente sem que a insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal possibilidade). Ao fim e ao cabo, este direito é ele próprio uma garantia geral de todos os restantes direitos e interesses legalmente protegidos.
Mas terá de ser assegurado em mais de um grau de jurisdição, incluindo-se nele também a garantia de recurso? Ou bastará um grau de jurisdição?
A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo civil; e, em processo penal, só após a última revisão constitucional (constante da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro), passou a incluir, no artigo 32.º, a menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa, assim consagrando, aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta revisão, e segundo a qual a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria penal, na medida (mas só na medida) em que o direito ao recurso integra esse núcleo essencial das garantias de defesa previstas naquele artigo 32.º
Para além disso, algumas vozes têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões que afetem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal (ver, a este respeito, as declarações de voto dos Conselheiros Vital Moreira e António Vitorino, respetivamente no Acórdão n.º 65/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11.º, p. 653, e no Acórdão n.º 202/90, id., vol. 16.º, p. 505).
Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer.
Na verdade, este Tribunal tem entendido, e continua a entender, com A. Ribeiro Mendes (Direito Processual Civil, III – Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982, p. 126), que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional – artigo 210.º), terá de admitir-se que “o legislador ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos” (cf., a este propósito, Acórdãos n.º 31/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9.º, p. 463, e n.º 340/90, id., vol. 17.º, p. 349).
Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática. Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (cf. os citados Acórdãos n.ºs 31/87 e 65/88, e ainda n.º 178/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 12.º, p. 569); sobre o direito à tutela jurisdicional, ainda Acórdãos n.º 359/86 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8.º, p. 605), n.º 24/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11.º, p. 525) e n.º 450/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 13.º, p. 1307).
O legislador ordinário terá, pois, de assegurar o recurso das decisões penais condenatórias e ainda, segundo certo entendimento, de quaisquer decisões que tenham como efeito afetar direitos, liberdades e garantias constitucionalmente reconhecidos. Quanto aos restantes casos, goza de ampla margem de manobra na conformação concreta do direito ao recurso, desde que não suprima em globo a faculdade de recorrer.”
Ora, neste caso, segundo o critério sob análise, a parte vencida não pode interpor recurso da decisão singular do relator, mas pode reclamar dela para a conferência, o que lhe assegura uma segunda apreciação da questão por uma formação do mesmo tribunal com uma composição alargada e não lhe elimina o direito de posteriormente interpor recurso para um tribunal superior desta segunda apreciação.
Assim, a exigência de reclamação para a conferência, não só não impede a intervenção de um segundo grau de jurisdição, como reforça o número de reapreciações das questões em discussão, pelo que não tem qualquer fundamento a invocação duma violação ou sequer duma restrição do direito ao recurso.
Quanto à alegação de que a interpretação normativa sindicada viola os princípios da segurança jurídica e da confiança, inerentes a um Estado de direito democrático, depreende-se da posição assumida pela Recorrente que esta discorda que o n.º 2, do artigo 27.º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, possa ser interpretado no sentido da reclamação aí prevista abranger as decisões sumárias referidas na alínea i), do n.º 1, do mesmo preceito, introduzindo essa interpretação um fator de surpresa que resulta na perda do direito de impugnar a decisão sumária proferida, pois, a rejeição do recurso dela interposto já não permite a sua reclamação atempada.
Independentemente da correção da interpretação efetuada, que não cumpre a este Tribunal controlar, ainda que a decisão recorrida refira que não é possível concluir pela convolação do recurso em reclamação, visto não se mostrar respeitado o respetivo prazo legal de 10 dias, esta orientação não foi objeto do requerimento de interposição de recurso dirigido ao Tribunal Constitucional, pelo que não é possível apreciar a sua constitucionalidade, atenta a vinculação do Tribunal ao objeto do recurso definido pela Recorrente.
Por estas razões deve ser negado provimento ao recurso interposto.
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Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, interpretado com o sentido de que das sentenças proferidas no âmbito de ações administrativas especiais de valor superior à alçada, julgadas pelo Tribunal singular ao abrigo da referida alínea i), do n.º 1, do artigo 27.º, não cabe recurso ordinário para o Tribunal Central Administrativo, mas apenas reclamação para a conferência;
e, em consequência,
b) negar provimento ao recurso interposto pela Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza.
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Sem custas.
Lisboa, 10 de dezembro de 2013. – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.
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1 In Direito Constitucional, 5.ª Edição, Almedina, 1992, pág. 384.