Imprimir acórdão
Processo n.º 531/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. propôs no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada ação administrativa especial de anulação da Declaração de Impacte Ambiental desfavorável, emitida pelo Secretário de Estado do Ambiente, em 29 de maio de 2009.
Foi proferida sentença em 16 de fevereiro de 2011 que julgou improcedente esta ação.
A Autora interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Central Administrativo Sul.
Após a Autora, a convite do Desembargador Relator, se ter pronunciado sobre a possibilidade do recurso não ser conhecido, foi proferido acórdão pelo Tribunal Central Administrativo Sul, em 11 de abril de 2013, que não conheceu do recurso por tê-lo considerado legalmente inadmissível.
A Autora recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, nos seguintes termos:
“A., recorrente nos autos acima e à margem identificados, notificada do douto acórdão de fls., que decidiu não conhecer do recurso e ordenar a baixa dos autos ao TAF de Almada para aí ser proferida decisão sobre o requerimento de fls. 197/234 dos autos, enquanto reclamação para a conferência, se reunidos os respetivos pressupostos, vem interpor recurso desse acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua atual redação, invocando para tanto a inconstitucionalidade da norma constante do art.º 27.º/1/i/2 do CPTA, na interpretação que dela é feita pelo TCA Sul, por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no art.º 268.º/4 da Constituição e, bem assim, do principio do Estado de Direito e dos seus corolários ao nível dos princípios da confiança e acesso ao direito e à justiça (Cfr. arts. 2.º e 20.º da CRP), pela al. i) do n.º 1 do art.º 27.º do CPTA, o que faz nos termos e com os fundamentos das suas Alegações de Recurso, como segue:
[…]
CONCLUSÕES:
1.ª) O douto acórdão em crise considerou que a decisão objeto de recurso foi tomada pelo Juiz relator com invocação dos poderes conferidos pela al. i) do n.º 1 do art. º 27.º do CPTA, e que dessa decisão cabia reclamação para a conferência, nos termos do n.º 2 do citado preceito legal, e não diretamente recurso jurisdicional, decidindo não conhecer do recurso e ordenar a baixa dos autos ao TAF de Almada para aí ser proferida decisão sobre a admissibilidade da respetiva convolação em reclamação para a conferência, sendo certo que, como consta do despacho do relator de fls. 294, na data da interposição do recurso já estava esgotado o prazo para a reclamação para a conferência, razão pela qual não é admissível a respetiva convolação nessa reclamação, por não se encontrarem reunidos os respetivos pressupostos.
2.ª) A recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade do art.º 27.º/1/i/2 do CPTA na interpretação ora propugnada para o mesmo na sua peça processual em que se pronunciou sobre o despacho de fls. 294 do Relator no TCA Sul que suscitou a questão da rejeição do recurso jurisdicional, argumentação que não foi atendida no douto acórdão recorrido.
3.ª) Sucede que a norma constante do art.º 27.º/1/i/2 do CPTA, na interpretação que dela é feita pelo acórdão recorrido, viola o princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no art.º 268.º/4 da Constituição e, bem assim do princípio do Estado de Direito e dos seus corolários ao nível dos princípios da confiança e acesso ao direito e à justiça (Cfr. arts. 2.º e 20.º da CRP).
Senão vejamos:
4.ª) A recorrente foi notificada de uma sentença e não de um despacho e, para além de não haver memória de que alguma ação administrativa especial de valor superior à alçada ter alguma vez sido julgado por Tribunal Coletivo no TAF de Almada, a verdade é que o presente recurso jurisdiciona foi interposto em 24 de Março de 2011, e portanto anteriormente ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Pleno do STA n.º 3/2012, proferido no Proc.º n.º 420/12, em 5 de Junho de 2012 e aos acórdãos do TCA Sul de 12-1-2012 e de 20-9-2012 proferidos respetivamente nos processos n.ºs 08262/11 e 08384/12, citados no acórdão recorrido.
5.ª) Ora, à data da interposição do recurso jurisdicional em apreço existia nesta sede uma ampla corrente jurisprudencial nos Tribunais Centrais Administrativos, segundo a qual ainda que a decisão final fosse praticada por juiz singular, tratando-se de decisão qualificada e apelidada de sentença e com tal conteúdo, o mero jurisdicional de reação era o recurso jurisdicional, não relevando a aplicação do art.º 27.º/2 do CPTA aos atos praticados ao abrigo do respetivo art.º 27.º/1/i do CPTA, neste contexto.
6.ª) Razão pela qual o douto acórdão recorrido consubstancia uma decisão surpresa, fruto de uma alteração de jurisprudência que não era expectável para a ora recorrente à data da interposição do recurso jurisdicional visto que o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Pleno do STA só foi proferido e publicado em data posterior.
7.ª) A aplicação dessa nova doutrina ao caso vertente, operada pelo acórdão recorrido, redunda numa verdadeira denegação de justiça pois o recurso foi interposto para lá do prazo prevista para a reclamação para a conferência, circunstância que, também de acordo com a jurisprudência do STA, impede a convolação daquele nesta, em flagrante violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no n.º 4 do art.º 268.º da Constituição.
8.ª) Aliás, toda a doutrina do douto acórdão em crise, e bem assim do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência que o fundamenta redunda numa interpretação e aplicação inconstitucional do art.º 27.º/1/i/2 do CPTA. Concretizando:
9.ª) Contrariamente aos despachos, as sentenças proferidas por tribunais são qualificadas por esses mesmos tribunais e recebidos pelas partes suas destinatárias como atos finais, conclusivos e que conhecem do mérito da causa, contra as quais apenas o recurso jurisdicional constitui meio adequado para a sua reversão.
10.ª) Constitui por isso uma aplicação inconstitucional do art.º 27.º/l/i/2 do CPTA interpretar os referidos normativos no sentido de entender que, apesar de um tribunal apelidar uma decisão de mérito de sentença, a qual remete para um regime de recurso jurisdicional, poder vir um tribunal superior subsequentemente considerar que essa qualificação não está correta, e que nessa medida a reação jurisdicional não se poderia afinal ter conformado com a qualificação dada pelo próprio tribunal que praticou o ato.
11.ª) Esse entendimento atenta contra o princípio do estado de direito e seus corolários ao nível dos princípios de confiança e estabilidade e acesso ao Direito e Justiça (cfr. art.º 2.º e 20.º da CRP), posto que a confiança das partes se vê posta em causa perante quaisquer decisões jurisdicionais, já que deixam de poder confiar na qualificação que os tribunais fazem dos seus próprios atos.
12.ª) Na verdade, do entendimento veiculado no douto acórdão recorrido, por referência à doutrina constante do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Pleno do STA, resulta a imposição às partes de um ónus processual de apurarem o eventual erro do julgador na qualificação efetuada do seu próprio ato, e enveredarem por um mero de reação em discordância com essa qualificação.
13.ª) Tal imposição às partes no processo é também claramente inconstitucional por coartar os direitos de defesa em violação das garantias de acesso ao direito e justiça [art.º 20.º da CRP), e bem assim face à própria garantia do princípio da tutela jurisdicional efetiva (art.º 268.º/4 da CRP).
14.ª) Ou seja, o sentido do douto acórdão recorrido, e do Acórdão do STA que lhe serve de fundamento, é de que compete ao destinatário da sentença judicial a obrigação de ultrapassar a qualificação expressa que é dada pelo órgão emitente da sentença e conformar esse ato jurisdicional como mero despacho a sujeitar à conferência por virtude da mera invocação do art.º 27.º/1/i do CPTA no texto decisório, o que vale por dizer que o douto acórdão recorrido, na esteira do Acórdão do Pleno do STA que o fundamenta, sustenta que é legitimo impor ao destinatário do ato de justiça o reconhecimento do erro ou da contradição entre o ato decisório e a invocação da base jurídica, optando por esta última em detrimento da qualificação dada ao ato, passando assim a adotar o papel de corregedor das sentenças quando os respetivos textos sejam contraditórios.
15.ª) Semelhante visão do sistema jurídico não pode proceder pois coloca os particulares à mercê do erro judiciário, coartando a defesa jurisdicional por facto atribuível à jurisdição a quo, o que não é admissível por se mostrar contrario à garantia da tutela jurisdicional efetiva (art.º 268.º/4 da CRP), ao acesso ao direito e à justiça (art.º 20.º da CRP) e ao estado de direito (art.º 2.º da CRP).
16.ª) Em suma, perante uma contradição no texto da decisão entre a qualificação dada de sentença e a invocação do art.º 27.º/1/i do CPTA, se a parte envereda pelo meio de reação que se conforma com a qualificação dada de sentença, ao invés de enveredar pelos meios de reação que se relacionam com a invocação do art.º 27.º/1/i do CPTA, não pode deixar de ser aceite e decidido o recurso jurisdicional, sob pena de se colocar sobre o destinatário da decisão judicial um ónus que este nunca teve e que é inadmissível, qual seja o de ter de discernir entre erros judiciários para fins de utilização dos meios de reação previstos no sistema jurídico.
17.ª) Sem prescindir do que antecede, dir-se-á ainda que estamos, em qualquer caso, perante uma sentença proferida por juiz singular com preterição das regras de competência em função do valor da causa determinante da incompetência relativa do tribunal, a qual é sempre de conhecimento oficioso, cfr. art.ºs 108.º e 110.º/2 do CPC aplicável ex vi do art.º 1.º do CPTA.
18.ª) Razão pela qual caso se entenda, como o faz o douto acórdão recorrido, que o recurso jurisdicional não devia ser admitido, deveria declarar-se oficiosamente a incompetência do juiz singular, nos termos do art.º 110.º/4 do CPC, aplicável com as devidas adaptações em relação ao termo final, isto é, o momento até ao qual pode ser conhecida oficiosamente a incompetência, ordenando-se que os autos baixassem à primeira instância para ser decididos por uma formação de três juízes, conforme determina o art.º 40.º/3 do ETAF.
19.ª) De tudo resultando que, mesmo na eventualidade de se entender que o recurso jurisdicional em apreço não deveria ser admitido, esta será a solução correta face aos princípios constitucionais aplicáveis e não a decisão tomada no acórdão em crise de ordenar a baixa dos autos à primeira instância para apreciação da admissibilidade de convolação do recurso jurisdicional em reclamação para a conferência, bem sabendo que tal não é admissível no caso vertente, violando assim os principio da tutela jurisdicional efetiva e do acesso ao direito e à justiça constitucionalmente consagrados.
Nestes termos nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., Colendos Juízes Conselheiros, deve dar-se provimento ao presente recurso, declarando-se a inconstitucionalidade da norma constante do art.º 27.º/1/i/2 do CPTA, na interpretação que dela é feita pelo douto acórdão em crise, procedendo-se à revogação do mesmo e determinando-se:
– a admissão do recurso jurisdicional interposto da decisão final proferida pelo Juiz singular em primeira instância, não obstante a invocação do citado preceito legal, em nome dos princípios e normas constitucionais antecedentemente invocados;
ou, se assim não se entender,
– que seja declarada a incompetência do juiz singular, nos termos do art.º 110.º/4 do CPC, aplicável com as devidas adaptações em relação ao termo final, devendo os autos baixar à primeira instância para ser decididos por uma formação de três juízes, conforme determina o art.º 40.º/3 do ETAF, em nome dos mesmos princípios e normas constitucionais.”
Notificada para o efeito a Recorrente repetiu as alegações que havia apresentado com o requerimento de interposição de recurso.
Notificada para se pronunciar sobre a possibilidade do recurso não ser conhecido a Recorrente defendeu a apreciação do mérito do recurso.
*
Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente processo –, a sua admissibilidade depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.
No requerimento de interposição de recurso a Recorrente apresentou desde logo alegações, onde, além da colocação de questões infraconstitucionais que não cumpre a este Tribunal conhecer, invocou a inconstitucionalidade do artigo 27.º, n.º 1, i), do Código de Procedimento nos Tribunais Administrativos (CPTA), na interpretação segundo a qual apesar de um tribunal apelidar uma decisão de mérito de sentença, a qual remete para um recurso jurisdicional, poder vir um tribunal superior subsequentemente considerar que essa qualificação não está correta, e que nessa medida a reação jurisdicional não se poderia afinal ter conformado com a qualificação dada pelo próprio tribunal que praticou o ato.
Apesar de não ser esse o momento adequado para apresentar alegações, as mesmas revelaram qual a interpretação normativa cuja constitucionalidade a Recorrente pretendia ver fiscalizada e que foi confirmada pela junção das mesmas alegações no momento próprio.
Ora, da leitura do acórdão recorrido resulta que este não considerou que a qualificação da decisão como uma sentença de mérito não estivesse correta, mas apenas que essa decisão, independentemente da sua qualificação, se encontrava abrangida pelo disposto no n.º 2, do artigo 27.º, do CPTA, pelo que a interpretação indicada pela Recorrente não integrou a ratio decidendi do acórdão recorrido.
Não se mostrando preenchido este requisito não é possível conhecer do mérito do recurso, atenta a natureza instrumental do recurso constitucional.
*
Decisão
Pelo exposto decide-se não se conhecer do recurso interposto por A. para o Tribunal Constitucional.
*
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 10 de dezembro de 2013. – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins – Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro.