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Processo n.º 742/2013
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 2ª Secção, do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso, em 26 de julho de 2013 (fls. 68), a título obrigatório, em cumprimento do artigo 280º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos artigos 70º, n.º 1, alíneas c) e e), e 72º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), de despacho proferido pelo Juiz de Direito do 4º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, em 25 de julho de 2013 (fls. 61 a 64), que desaplicou a norma extraída da conjugação entre os artigos 16º, n.º 2, alínea c), e 381º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), de acordo com a redação conferida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, com fundamento na violação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 32º da CRP.
2. Notificado para o efeito, o recorrente produziu alegações, cujas conclusões foram as seguintes:
«V - Conclusões
27. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório, nos presentes autos, do douto despacho judicial neles proferido, no qual o Mm.º Juiz do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, invocou a:
“(…)inconstitucionalidade das disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 2, al. c) e 381.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual podem ser julgados em processo sumário crimes cuja pena única máxima, abstratamente aplicável ao concurso de infrações, é superior a 5 anos de prisão (…) por violação do disposto no artigo 32.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa (…)”.
28. Centrou-se, pois, o recurso do Ministério Público, na apreciação da constitucionalidade da interpretação normativa - resultante da conjugação entre as disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 2, al. c) e 381.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro – segundo a qual podem ser julgados em processo sumário crimes cuja pena única máxima, abstratamente aplicável ao concurso de infrações, é superior a 5 (cinco) anos de prisão.
29. A questão, que agora se coloca ao Tribunal Constitucional, embora formulada distintamente, é substancialmente idêntica à suscitada, anteriormente, nos Processos n.ºs 403/13 e 532/13, e solucionada, respetivamente, pelos Acórdãos n.ºs 428/13 e 469/13.
30. Formalmente, o caso dos presentes autos é distinto do tratado nestes acórdãos do Tribunal Constitucional, na medida em que o seu objeto normativo se reporta à pena única máxima abstratamente aplicável ao concurso de infrações – e não à pena máxima abstratamente aplicável a um único crime – e em que, para além disso, se perspetiva como uma interpretação normativa resultante da conjugação entre as disposições dos artigos 16.º, n.º 2, al. c) e 381.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal – e não da norma unívoca ínsita no artigo 381.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
31. Todavia, porque tais diferenças, meramente formais, se revelam indiferentes, do ponto de vista substantivo, uma vez que não comportam quaisquer distinções lógico-jurídicas relevantes, entendemos serem aplicáveis, ao caso vertente, os argumentos e as decisões alcançadas pelo Tribunal Constitucional nos mencionados Acórdãos n.ºs 428/13 e 469/13.
32. Nos referidos Acórdãos n.ºs 428/13 e 469/13, julgou o Tribunal, em ambos, inconstitucional a norma do artigo 381º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro.
33. No Acórdão n.º 428/13, o Tribunal Constitucional decidiu, concretamente:
“julgar inconstitucional a norma do artigo 381º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação do artigo 32º, n.ºs 1 e 2, da Constituição”.
34. No Acórdão n.º 469/13, decidiu o Tribunal Constitucional:
“julgar inconstitucional a norma do artigo 381.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, sem que o Ministério Público tenha utilizado o mecanismo de limitação de pena a aplicar em concreto a um máximo de cinco anos de prisão previsto no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição”.
35. Em ambos os casos, considerou o Tribunal Constitucional que a norma em causa nos presentes autos, a ínsita no n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, é violadora das garantias de defesa do arguido, tal como consagradas no artigo 32.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
36. As razões apontadas para alcançar tal conclusão prendem-se com a constatação de que:
“o princípio da celeridade processual não é um valor absoluto e carece de ser compatibilizado com as garantias de defesa do arguido. À luz do princípio consignado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição, não tem qualquer cabimento afirmar que o processo sumário, menos solene e garantístico, possa ser aplicado a todos os arguidos detidos em flagrante delito independentemente da medida da pena aplicável. Tanto mais que mesmo o processo comum, quando aplicável a crimes a que corresponda pena de prisão superior a cinco anos, dispõe já de mecanismos de aceleração processual por efeito dos limites impostos à duração de medidas de coação que, no caso, sejam aplicáveis (artigos 215º e 218º do CPP)”.
37. A este argumento, acrescentaremos o anteriormente defendido pelo Ministério Público, no sentido de que a solução eleita pelo legislador, e plasmada no n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal, faz depender a atribuição da competência para o julgamento, no que concerne a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável seja superior a cinco anos, do facto incidental, e estranho ao objeto material do conhecimento do tribunal, da ocorrência de detenção em flagrante delito.
38. A par de tal verificação, inferimos que este facto, estranho à substância do litígio, acaba por determinar, que, de forma desigual e iníqua, factos da mesma natureza e gravidade, sejam julgados, distintamente, por um tribunal singular ou por um tribunal coletivo, conforme, respetivamente, o arguido tenha, ou não, sido detido em flagrante delito.
39. Resulta daqui que, após termos aceitado que o julgamento perante tribunal singular concede menores garantias de defesa ao arguido do que o julgamento perante tribunal coletivo, devamos concluir que a nova redação dada ao n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal, ao permitir que um arguido - detido em flagrante delito pela prática de um crime ao qual seja, abstratamente, aplicável pena de prisão superior a cinco anos - seja julgado perante tribunal singular, não assegura a este arguido “todas as garantias de defesa”, uma vez que não lhe assegura o julgamento perante tribunal coletivo, o qual lhe seria assegurado caso não tivesse sido detido em flagrante delito.
40. Verifica-se, pois, igualmente, a inconstitucionalidade da norma sob escrutínio, por violação do princípio da igualdade nas garantias do processo criminal, resultante da conjugação do disposto nos artigos 13.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, resultante da transgressão da dimensão de proibição do arbítrio, na medida em que o legislador ordinário decidiu tratar desigualmente (com injustificada diminuição das garantias de defesa do arguido) situações que, substancialmente, se representam iguais.
41. Segundo qualquer das perspetivas enunciadas, deve a norma constante do n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal ser julgada inconstitucional.
42. Por identidade de razões, também não poderá deixar de ser julgada inconstitucional a interpretação normativa emergente da conjugação das disposições dos artigos 16.º, n.º 2, al. c) e 381.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, segundo a qual podem ser julgados em processo sumário crimes cuja pena única máxima, abstratamente aplicável ao concurso de infrações, é superior a 5 (cinco) anos de prisão, por violação do disposto no artigo 32.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.» (fls. 93 a 98)
3. Devidamente notificado para o efeito, o recorrido deixou expirar o prazo sem que viesse aos autos contra-alegar.
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A questão ora em apreço tem sido alvo de acesa discussão, doutrinária e jurisprudencial, e reconduz-se a saber se a alteração da lei processual penal, provocada pela Reforma de 2013, que permite a sujeição a julgamento em processo sumário de arguidos da prática de crimes com pena superior a cinco anos de prisão se afigura consentânea com a Lei Fundamental. A este propósito, a 3ª Secção deste Tribunal já teve oportunidade de apreciar a questão, tendo aprovado os Acórdãos n.º 428/2013 e n.º 469/2013, que concluíram pela inconstitucionalidade da norma extraída do n.º 1 do artigo 381º do CPP, por violação das garantias de defesa e do condicionamento da celeridade processual a essas mesmas garantias (artigo 32º, n.ºs 1 e 2, da CRP). Através do Acórdão n.º 428/2013, firmou-se a seguinte posição:
«4. A primeira questão de constitucionalidade que o novo critério legal definido para o âmbito do julgamento em processo sumário coloca é o das garantias de defesa do arguido.
Nos termos do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, o «processo criminal assegura todas as garantias de defesa ao arguido», o que engloba indubitavelmente «todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação» (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª edição, Coimbra, pág. 516). O n.º 2 do mesmo artigo, que associa o princípio da presunção da inocência do arguido à obrigatoriedade do julgamento «no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa» (n.º 2, in fine), tem subjacente o direito a um processo célere, partindo da perspetiva de que a demora do processo penal, além de prolongar o estado de suspeição e as medidas de coação sobre o arguido, acabará por esvaziar de sentido e retirar conteúdo útil ao princípio da presunção de inocência (idem, pág. 519).
No entanto, o princípio da aceleração de processo – como decorre com evidência do segmento final desse n.º 2 – tem de ser compatível com as garantias de defesa, o que implica a proibição do sacrifício dos direitos inerentes ao estatuto processual do arguido a pretexto da necessidade de uma justiça célere e eficaz (ibidem).
As exigências de celeridade processual não podem, por conseguinte, deixar de ser articuladas com as garantias de defesa, sendo que a Constituição, por força do mencionado n.º 2 do artigo 32º, valora especialmente a proteção das garantias de defesa em detrimento da rapidez processual. O que permite definir a forma ideal de processo como o resultado de uma tensão dialética entre esses dois fins constitucionalmente garantidos (ALEXANDRE DE SOUSA PINHEIRO/PAULO SARAGOÇA DA MATTA, Algumas notas sobre o processo penal na forma sumária, Revista do Ministério Público, ano 16º, Julho-setembro de 1995, n.º 63. pág. 160).
5. A forma de processo sumário corresponde a um processo acelerado quanto aos prazos aplicáveis e simplificado quanto às formalidades exigíveis.
(…)
6. Como o Tribunal Constitucional tem reconhecido, o julgamento através do tribunal singular oferece ao arguido menores garantias de defesa do que um julgamento em tribunal coletivo, desde logo porque aumenta a margem de erro na apreciação dos factos e a possibilidade de uma decisão menos justa (entre outros, os acórdãos n.ºs 393/89 e 326/90). E por razões inerentes à própria orgânica judiciária, o tribunal singular será normalmente constituído por um juiz em início de carreira com menor experiência profissional, o que poderá potenciar uma menor qualidade de decisão por confronto com aquelas outras situações em que haja lugar à intervenção de um órgão colegial presidido por um juiz de círculo.
Daí que a opção legislativa pelo julgamento sumário deva ficar sempre limitada pelo poder condenatório do juiz definido em função de um critério quantitativo da pena aplicar, só assim se aceitando – como a jurisprudência constitucional tem também sublinhado – que não possa falar-se, nesse caso, numa restrição intolerável às garantias de defesa do arguido.
Acresce que a prova direta do crime em consequência da ocorrência de flagrante delito, ainda que facilite a demonstração dos factos juridicamente relevantes para a existência do crime e a punibilidade do arguido, poderá não afastar a complexidade factual relativamente a aspetos que relevam para a determinação e medida da pena ou a sua atenuação especial, mormente quando respeitem à personalidade do agente, à motivação do crime e a circunstâncias anteriores ou posteriores ao facto que possam diminuir de forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
E estando em causa uma forma de criminalidade grave a que possa corresponder a mais elevada moldura penal, nada justifica que a situação de flagrante delito possa implicar, por si, um agravamento do estatuto processual do arguido com a consequente limitação dos direitos de defesa e a sujeição a uma forma de processo que envolva menores garantias de uma decisão justa.
Como se deixou entrever, o princípio da celeridade processual não é um valor absoluto e carece de ser compatibilizado com as garantias de defesa do arguido. À luz do princípio consignado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição, não tem qualquer cabimento afirmar que o processo sumário, menos solene e garantístico, possa ser aplicado a todos os arguidos detidos em flagrante delito independentemente da medida da pena aplicável. Tanto mais que mesmo o processo comum, quando aplicável a crimes a que corresponda pena de prisão superior a cinco anos, dispõe já de mecanismos de aceleração processual por efeito dos limites impostos à duração de medidas de coação que, no caso, sejam aplicáveis (artigos 215º e 218º do CPP).
A solução legal mostra-se, por isso, violadora das garantias de defesa do arguido, tal como consagradas no artigo 32º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.»
Concordando-se com a ponderação levada a cabo nestes dois Acórdãos, mais não resta do que, remetendo para a mais extensa fundamentação deles constante, concluir pela inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 381º do CPP, quando interpretada no sentido de que o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação do artigo 32º, n.ºs 1 e 2, da Constituição, assim se corroborando o juízo formulado pela decisão recorrida.
A especificidade da interpretação normativa concretamente extraída da conjugação entre a alínea a) do n.º 2 do artigo 16º e o n.º 1 do artigo 381º do CPP, segundo a qual “podem ser julgados em processo sumário crimes cuja pena única máxima, abstratamente aplicável ao concurso de infrações, é superior a 5 anos de prisão”, não altera esta conclusão.
Assim sendo, por identidade de razões, julga-se igualmente inconstitucional a interpretação normativa emergente da conjugação das disposições dos artigos 16.º, n.º 2, al. c) e 381.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, segundo a qual podem ser julgados em processo sumário crimes que, em concurso, comportem uma pena unitária máxima, abstratamente aplicável, superior a 5 (cinco) anos de prisão, por violação do disposto no artigo 32.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
III – Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação entre a alínea a) do n.º 2 do artigo 16º e o n.º 1 do artigo 381º do Código de Processo Penal, de acordo com a redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, segundo a qual podem ser julgados em processo sumário crimes que, em concurso, comportem uma pena unitária máxima, abstratamente aplicável, superior a 5 (cinco) anos de prisão, por violação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa;
E, em consequência:
b) Negar provimento ao recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da LTC.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 10 de dezembro de 2013. – Ana Guerra Martins – Pedro Machete - João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.