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Processo n.º 1153/2013
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por decisão de 30 de setembro de 2013, proferida nos autos de instrução n.º 631/10.0TACTB, o juiz de instrução do Tribunal Judicial de Castelo Branco recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma do artigo 97.º do Código do Notariado, por aplicação da jurisprudência firmada no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 379/2012, e, em consequência, não pronunciou os arguidos A., B., C. e D., ora recorridos, pela prática do crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, previsto e punido pelos artigos 360.º, n.º 1, e 361.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, por referência ao citado artigo 97.º do Código do Notariado, de que vinham acusados pelo Ministério Público.
O Ministério Público recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), a fim de que seja reapreciado o formulado juízo de inconstitucionalidade.
O Tribunal recorrido admitiu o recurso, que prosseguiu com alegações do Ministério Público, onde, em conclusão, se defende:
«1 - A norma do artigo 97.º do Código do Notariado estabelece que ‘os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público, se dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas (…)’.
“2 – Sendo ‘múltiplas e inultrapassáveis as barreiras que obstam à objetiva determinabilidade, com um mínimo de certeza, da pena que cabe a uma conduta sujeita à incriminação’ (Acórdão n.º 379/2012), tal norma é inconstitucional, por violação do princípio da legalidade penal, consagrado no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição.”
Os recorridos, notificados para o efeito, não apresentaram contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
2. A questão de inconstitucionalidade que constitui objeto do presente recurso foi já apreciada pela 2.ª Secção do Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 379/2012, que decidiu julgar inconstitucional a norma do artigo 97.º do Código do Notariado, por violação do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Invocou-se, então, em fundamento do juízo de inconstitucionalidade, o seguinte:
5. O artigo 97.º do Código do Notariado (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de agosto, alterado, por último, pelo Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho) reza assim:
«Artigo 97.º
(Advertência)
Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura».
O juízo de inconstitucionalidade formulado pelo tribunal recorrido parte do pressuposto de que a norma em causa «descreve um autónomo tipo incriminador», quer no que respeita ao tipo objetivo, quer quanto ao tipo subjetivo, sem que, no entanto, a norma contenha «a indicação da sanção que corresponde ao comportamento nela tipificado, se bem que o legislador tenha pretendido fazê-lo por remissão para uma outra norma sancionadora» (cfr. pontos 7. e 8. do acórdão recorrido). Ainda segundo o acórdão recorrido, a norma questionada viola dois dos corolários do princípio da legalidade, o de nullum crimen, nulla poena sine lege scripta e o de nullum crimen, nulla poena sine lege certa. Por um lado, porque remete para «um eventual “crime de falsas declarações perante oficial público”, designação que não corresponde à epígrafe, nem ao conteúdo, de qualquer incriminação do Código Penal ou de qualquer legislação extravagante que se conheça»; por outro lado, porque o Governo, ao aprovar este Código do Notariado, «agiu no uso de poderes próprios e não no uso de qualquer autorização legislativa que legitimasse a alteração da pena aplicável a um comportamento já incriminado no anterior Código do Notariado».
6. A norma incriminadora impugnada, no que diz respeito à descrição do tipo objetivo e subjetivo do crime em causa não difere, no essencial, do que constava do equivalente artigo 107.º da versão originária do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47619, de 31 de março de 1967. Esta norma dispunha como segue:
«Artigo 107.º
(Advertência aos outorgantes)
Os outorgantes serão sempre advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsidade, se, dolosamente e em prejuízo de terceiro, tiverem prestado ou confirmado declarações falsas, devendo a advertência constar da própria escritura».
Com as alterações introduzidas no Código de Notariado pelo Decreto-Lei n.º 67/90, de 1 de março, este tipo legal de crime passou a constar do artigo 106.º do referido Código, com a seguinte redação:
«Artigo 106.º
(Advertência aos outorgantes)
Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura».
Esta redação foi transposta integralmente para o artigo 97.º do Código do Notariado em vigor, que dá corpo à norma cuja aplicação foi recusada pelo acórdão recorrido, por inconstitucionalidade decorrente de alegada violação do princípio da legalidade penal consagrado no artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição.
O Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de agosto, que aprovou o atual Código de Notariado, foi emitido no uso de competência própria do Governo (prevista hoje, após a 4.ª revisão constitucional, no artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da CRP), e não ao abrigo de lei de autorização.
Ora, é exigência primária do princípio da legalidade penal que a incriminação e a pena constem de lei formal ou de decreto-lei autorizado, atendendo ao disposto no artigo 29,º, n.º1, da CRP e também à integração na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, pelo artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da “definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos”.
Em face destes dados, a conformidade constitucional da norma do artigo 97.º do Código do Notariado só permanecerá intocada se puder ser sustentado o caráter não inovador dessa norma, em confronto com as suas versões anteriores. Na verdade, tendo a primeira formulação da norma incriminatória surgido na versão originária do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47619, de 31 de março de 1967 – logo, um diploma anterior à Constituição de 1976 – o vício de constitucionalidade orgânica estará afastado, desde que possa ser convincentemente alegada uma linha de continuidade na evolução legislativa posterior, uma correspondência substancial do conteúdo regulador da disposição originária com o das normas resultantes das alterações posteriores. Efetivamente, é jurisprudência constante deste Tribunal que não resulta ferida a reserva relativa de competência da Assembleia da República se as normas constantes de diploma governamental, em matéria dentro dessa reserva, não criarem um regime materialmente diverso daquele que anteriormente vigorava por força de diplomas legais emanados de órgão competente (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 114/2008).
Começaremos por avaliar se foi esse aqui o caso.
7. A questão já foi desenvolvidamente apreciada no Acórdão n.º 340/2005, que, considerando não inovatório o regime do artigo 97.º do Código do Notariado, decidiu, em aplicação daquela orientação, não julgar organicamente inconstitucional a norma em causa.
O mencionado aresto começou por comparar as pequenas diferenças de redação entre o artigo 107.º da versão originária do Código do Notariado e o atual artigo 97.º do mesmo diploma, no que concerne à fixação dos elementos de incriminação, tendo concluído que essas alterações «não se afiguram relevantes, parecendo resultar de mera alteração de estilo sem aptidão para consubstanciar uma modificação do conteúdo da norma que no preceito se contém».
Subscrevemos inteiramente este juízo. De facto, dessas diferenças – todas, praticamente, atinentes às formas verbais ou aos referentes terminológicos utilizados – não resulta alteridade do comportamento punido. É exatamente o mesmo, em todos os elementos constitutivos, o tipo de conduta que se incrimina.
Mas as duas normas também divergem no que diz respeito à determinação da pena aplicável à conduta nelas tipificada. Embora ambas se sirvam de uma técnica remissiva, para outra norma sancionadora, o artigo 107.º fá-lo para as “penas aplicáveis ao crime de falsidade”, ao passo que o artigo 97.º prescreve que os agentes incorrem “nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público”.
Em apreciação desta alteração, também do ponto de vista do seu alcance inovatório, o Acórdão n.º 340/2005 relacionou-a pertinentemente com mudanças de sistematização e de enquadramento normativos, no âmbito do Código Penal, nos seguintes termos:
“(…) O Código Penal de 1886 (em vigor à data da edição do artigo 107.º do Código do Notariado de 1967) continha, no Título III do Livro Segundo, um Capítulo VI - “Das falsidades”, onde se incriminavam as “declarações falsas” e que incluía as seguintes Secções: I - “Da falsidade de moeda, notas de bancos nacionais e de alguns títulos do Estado”; II - “Da falsificação de escritos”; III - “Da falsificação de selos, cunhos e marcas”; IV - “Disposição comum às secções antecedentes deste capítulo”; V – “Dos nomes, trajos, empregos e títulos supostos ou usurpados”; VI – “Do falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública”.
O Código Penal de 1982 eliminou o Capítulo antes designado por “Das falsidades” e procedeu a uma rearrumação sistemática dos crimes que nele se incluíam. Passou, então, a distinguir entre, por um lado, aqueles crimes que - tal como os de falsificação de documentos, moeda, pesos e medidas - são considerados crimes contra valores e interesses da vida em sociedade (Capítulo II do Título IV) e, por outro, aqueles que são considerados “crimes contra a realização da justiça” e como tal incluídos no Título dos “crimes contra o Estado” (Capítulo III do Título V). Entre estes últimos encontram-se, por exemplo, a falsidade de depoimento ou declarações, a que corresponde o atual artigo 359.º do Código Penal ou a falsidade de testemunho, prevista no artigo 360.º do mesmo Código, preceito para o qual a decisão recorrida, em juízo de interpretação de direito infraconstitucional que a este Tribunal não cabe sindicar, entendeu que o artigo 97.º do atual Código do Notariado remeteria.
Ora, integrada neste contexto, como tem de sê-lo, facilmente se percebe que – como nota o Ministério Público na sua alegação - a diferença que, nesta parte, se constata entre a redação do artigo 107.º do Código do Notariado de 1967 e o artigo 97.º do atual Código do Notariado – recorde-se: a substituição da remissão para o crime de “falsidade” pela remissão para o crime de “falsas declarações perante oficial público” - é “meramente consequencial das modificações sistemáticas introduzidas no Código Penal”, visando simplesmente adequar aquele preceito do Código do Notariado à nova designação e arrumação sistemática do Código Penal de 1982.
Falta saber, todavia, se esta presumida “simples adequação” foi ou não efetuada em termos de salvaguardar as exigências constitucionais decorrentes do princípio da legalidade e da reserva de competência legislativa da Assembleia da República.
8. A remissão, na formulação originária, para o crime de falsidade, dado o caráter genérico da designação, já suscitava dúvida quanto à norma para que o artigo 107.º do Código do Notariado reenviava, na determinação da pena aplicável. Fazia parte do Código Penal de 1886, como se viu, um capítulo intitulado “Das falsidades”. Desse capítulo constava uma secção (secção II), prevendo (artigo 216.º) o crime de “falsificação de documentos autênticos ou que fazem prova plena”. O n.º 3 desta norma determinava a condenação de quem cometer falsificação «fazendo falsa declaração de qualquer facto, que os mesmos documentos têm por fim certificar e autenticar, ou que é essencial para a validade desses documentos». Integrada no mesmo capítulo, a secção VI dispunha sobre o “falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública”. Dela fazia parte o artigo 242.º, prevendo o crime de “falso testemunho em inquirição não contenciosa. Falsas declarações perante a autoridade”.
Esta dualidade de previsões, a do n.º 3 do artigo 216.º e a do artigo 242.º, espelhava normativamente a distinção entre falsificação (intelectual) de documentos e falsas declarações. A distinção reveste-se de extrema dificuldade, sobretudo quando, como é o caso, as falsas declarações são incorporadas em documento autêntico – cfr. Helena Moniz, O crime de falsificação de documentos. Da falsificação intelectual e da falsidade em documento, Coimbra, 1993, 214. Para Maia Gonçalves (Código Penal Português, 3.ª ed., Coimbra, 1977, 380), «há falsidade intelectual quando o documento é genuíno; não foi alterado, mas, contudo, não traduz a verdade. A desconformidade há de resultar, em princípio, de uma desconformidade entre o documento e a declaração. Se o documento está de harmonia com a declaração, mas no entanto esta não está de harmonia com a realidade, não pode haver falsidade intelectual (…)». Beleza dos Santos também admitia a distinção, mas acabava por remeter para a norma (artigo 38.º, § único) reguladora do concurso aparente de infrações (“Falsificação de documentos e falsas declarações à autoridade”. RLJ, ano 70.º, 257).
Em face da dificuldade da distinção, não pode dizer-se que a jurisprudência emitida na vigência do Código Penal de 1886 tenha seguido um critério uniforme de aplicação. Assim, enquanto que o Acórdão do STJ, de 8 de outubro de 1969 (BMJ, 190.º, 239) pareceu adotar um critério idêntico ao proposto por Maia Gonçalves, ao decidir que «se o documento está de harmonia com a declaração, não existe falsidade (…)», já o Acórdão de 24 de janeiro de 1968, do mesmo Supremo Tribunal (BMJ, 173.º, 179) dele se afastou, ao deixar lavrado: “Verifica-se o crime de falsificação de documento, na forma de falsificação intelectual, previsto no art. 216.º do C.P., quando, com intenção de prejudicar, se fazem declarações falsas para serem exaradas em documento autêntico, sobre pontos que o mesmo tem por fim certificar ou autenticar”.
Quanto à conexão destas previsões genéricas com o crime específico de falsas declarações em procedimento de justificação notarial, os antecedentes legislativos em nada contribuem para esclarecer a dúvida acima exposta, antes a adensam significativamente. Aquele procedimento foi criado pelo artigo 27.º da Lei n.º 2049, de 6 de agosto de 1951, para permitir a inscrição de direitos no registo predial, por parte de quem, invocando-os, não pudesse deles fazer prova por documento bastante. Tal procedimento traduzia-se numa “declaração do proprietário, prestada sob juramento e confirmada por três testemunhas idóneas”, prestada perante a entidade administrativa competente. Pelo Decreto-Lei n.º 40.603, de 18 de maio de 1956, tal entidade passou a ser o notário. Tanto num diploma como no outro, o crime cometido por quem prestasse, neste procedimento, falsas declarações era identificado como “o crime previsto no § 5.º do artigo 238.º do Código Penal”. Esta norma dispunha assim: «O testemunho falso em matéria civil será punido com prisão maior de dois a oito anos».
É com o Código de Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 42.565, de 8 de outubro de 1959, que as falsas declarações, no procedimento de justificação notarial, passaram a ser punidas com as penas aplicáveis ao “crime de falsidade” (artigo 276.º). Por contraste com as incriminações anteriores, e pela própria formulação utilizada, é defensável o entendimento de que se quis retirar o tipo legal de crime do âmbito da secção do Código Penal que versava sobre “do falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública” – a secção VI, que justamente abria com o artigo 238.º – para o situar na secção II, que tratava “da falsificação de escritos”. Neste entendimento, conclui a decisão recorrida que a indicação do crime de falsidade «embora não indicando uma concreta disposição punitiva, apontava no sentido do sancionamento como crime de falsificação de documentos, na modalidade de falsificação intelectual, também designada como falsidade (artigos 216.º, n.º3, excluindo aparentemente a aplicação do 221.º do Código Penal de 1886)» – fls. 920, n. 5.
O Código de Registo Predial aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47.611, de 28 de março de 1965, remeteu a regulação desta matéria para o Código do Notariado, que veio a ser aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47.619, de 31 de março da 1967. Dele consta o artigo 107.º supra transcrito, o qual manteve a remissão para as penas aplicáveis ao crime de falsidade.
Com o Código de Notariado, na versão aprovada pelo Decreto-Lei n.º 67/90, a incriminação passou, como vimos, para o artigo 106.º. É com esta incriminação que surge a remissão para o “crime de falsas declarações perante oficial público”, mantida na versão em vigor.
Perante esta alteração, é difícil sustentar – contrariamente ao que se deduzia da qualificação constante da acusação do Ministério Público – que a norma continuou a visar a penalização do crime de falsificação intelectual de documento, constante, após a revisão de 1982, da alínea b) do n.º 1 do artigo 228.º, e hoje localizada no artigo 256.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal. Se a nova sistemática do Código Penal, nesta matéria, impunha o abandono da designação “crime de falsidade”, por ter desaparecido esta categoria genérica, de forma alguma aconselhava a nova designação, se a intenção fosse deixar substancialmente tudo como dantes. Na verdade, a fórmula “crime de falsas declarações perante oficial público” está patentemente mais próxima da que designa o crime de “falsas declarações perante a autoridade”, previsto e punido, anteriormente à citada revisão, no artigo 242.º, e que passou a integrar um novo capítulo, referente aos “crimes contra a realização da justiça”, aí dando corpo a um segmento do artigo 402.º. Esta norma, abandonando a distinção entre as inquirições contenciosas e não contenciosas, incriminava (também) o falso testemunho e as falsas declarações «perante tribunal ou funcionário competente para receber, como meio de prova, os seus depoimentos (…)». Tal funcionário, tratando-se da elaboração de uma escritura pública, só poderia ser, à época, uma autoridade ou um oficial público.
Em face do exposto, tem boas razões por si a conclusão de que reveste caráter inovatório a alteração introduzida no Código do Notariado em 1990 e mantida na versão atual, o que, nesse pressuposto, acarreta, dada a inexistência de autorização legislativa, lesão ao princípio da legalidade penal, na sua dimensão formal. Na verdade, a norma constante do artigo 97.º do Código do Notariado (como já, antes dela a do artigo 106.º) só fica completa quando lida em conexão e integrada pela norma sancionadora para que remete e onde consta a moldura penal aplicável ao crime nela tipificado. Incriminação e punição estão em “normativa conexão” e formam uma “unidade intencional”, «já que se o delito implica uma certa e correspondente sanção, a sanção pressupõe um certo e correspondente delito» (CASTANHEIRA NEVES, O princípio da legalidade criminal. O seu problema jurídico e o seu critério dogmático, Coimbra, 1988, p. 6, n. 11). Daí que a alteração da norma para que é feita a remissão, com a consequente alteração da punição, importe inevitavelmente uma mudança substancial do alcance da norma do artigo 97.º, por confronto com o que dispunha o anterior artigo 107.º, devendo ser-lhe atribuído caráter inovatório.
Tal conclusão só não é perentória e de fundamento incontroverso porque, não obstante o entendimento acima expresso, pode subsistir alguma margem de dúvida quanto à identificação do crime para que remetia o artigo 107.º de Código do Notariado, na redação original deste diploma, como sendo o de falsificação intelectual de documento. Ora, resultando o caráter inovador ou não da atual formulação da sua comparação com a que lhe antecedeu, só uma certeza firme quanto ao alcance dos dois termos de comparação permite uma conclusão segura.
De todo o modo, embora não esteja vedado à jurisdição constitucional, neste contexto e com esta finalidade, pronunciar-se por um determinado sentido interpretativo da normação ordinária, essa pronúncia não é aqui estritamente necessária. Na verdade, todos os fatores que dificultam a identificação segura dos crimes para que remetem as sucessivas normas de incriminação (dificultando, com isso, o juízo quanto ao caráter inovatório) são outros tantos fatores que, inversamente, robustecem a conclusão de que nos encontramos perante uma violação do princípio da legalidade penal, na sua dimensão material.
É o que, de seguida, veremos.
9. O primeiro dado a ter em conta, nesta segunda vertente da questão, é o de que, como certeiramente ajuizou o acórdão recorrido, o tipo para que o artigo 97.º remete «não corresponde à epígrafe, nem ao conteúdo, de qualquer incriminação do Código Penal ou de qualquer legislação extravagante que se conheça (…)».
O estabelecimento de correspondência entre a fórmula “crime de falsas declarações perante oficial público” e um determinado tipo legal de crime é, assim, tarefa interpretativa, que, no entanto, se depara com dificuldades e incertezas incompatíveis com o princípio da legalidade, na vertente de nulla poena sine lege certa.
O princípio da tipicidade, como corolário do princípio da legalidade penal, contém, entre outras, a «exigência de determinação de qual o tipo de pena que cabe a cada crime, sendo necessário que essa conexão decorra diretamente da lei» (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, I, 4.ª ed., 495). Deste ponto de vista, lex certa será aquela que se apresenta determinada, não apenas quanto aos requisitos da incriminação, mas também quanto às consequências punitivas a ela associadas. A segurança jurídico-criminal e a preservação do princípio da igualdade só ficam satisfeitos quando a decisão individualizada e concreta de condenação se pode fundar numa previsão normativa definidora, de forma certa e determinada, não só dos pressupostos, mas também da medida da punição.
Não cumpre, manifestamente, esta exigência contida no princípio da legalidade criminal a remissão para a pena do crime de falsas declarações perante oficial público. Do catálogo de crimes tipificados não faz parte nenhum com esta designação. Os tipos mais próximos são os previstos nos artigos 359.º e 360.º do Código Penal. Mas não seria certo, desde logo, qual destas previsões – a que cabem molduras penais diferenciadas – estaria mais vocacionada para fixar a punição de uma conduta incriminada ao abrigo do artigo 97.º do Código do Notariado. Testemunho dessa incerteza é o facto, apontado pelo Ministério Público nas suas alegações, de, na decisão proferida nestes autos, em 1.ª instância, se ter considerado que a remissão era para o artigo 359.º do Código Penal, ao passo que na decisão recorrida no processo onde foi proferido o Acórdão n.º 340/2005 se tinha entendido ser aplicável a pena do artigo 360.º do mesmo Código.
Como se vê, são múltiplas e inultrapassáveis as barreiras que obstam à objetiva determinabilidade, com um mínimo de certeza, da pena que cabe a uma conduta sujeita a incriminação pelo artigo 97.º do Código do Notariado. Em consequência, é de ajuizar que esta norma viola o princípio da legalidade penal, consagrado no artigo 29.º, n.º 1, da CRP.
Ora, estando em caso, no presente recurso, questão de inconstitucionalidade que tem por objeto a precisa norma julgada inconstitucional pelo referido Acórdão n.º 379/2012, afigura-se ser de reiterar, também no caso sub judicio, as razões, acima transcritas, que fundamentaram tal juízo de inconstitucionalidade, impondo-se, por isso, a improcedência do recurso.
4. Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 97.º do Código do Notariado, por violação do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
b) Julgar, em consequência, improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público.
Sem custas.
Lisboa, 6 de Março de 2014.- Carlos Fernandes Cadilha – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro - Maria José Rangel de Mesquita – Maria Lúcia Amaral.