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Processo nº 260/13
3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Por acórdão da 6ª Vara Criminal de Lisboa, foi o arguido A., condenado pela prática, em coautoria imediata e na forma consumada, de um crime de peculato, p. e p. pelo art. 375.º, n.º1 do Código Penal, na pena de dois anos e dez meses de prisão.
Recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa do acórdão condenatório onde, na motivação do respetivo recurso, por entre o mais, arguiu a nulidade por condenação por factos diversos dos constantes da pronúncia, afirmando o seguinte:
(…)
“ O Acórdão proferido pelo Tribunal a quo contém inúmeras alterações relativamente aos factos descritos no despacho de pronúncia de fls. 2694 a 2708 dos autos, como resulta manifesto do cotejo entre as duas peças processuais.
(…)
No caso sub judice, as alterações de factos introduzidas pelo Acórdão recorrido relativamente aos constantes do despacho de pronúncia de fls. 2694 a 2708 dos autos tiveram por efeito a imputação aos arguidos de um crime diverso, pelo que estamos assim perante alterações substanciais dos factos descritos na pronúncia.
(…)
Constata-se que, nos termos da decisão instrutória de fls. 2694 a 2708 dos autos, a atribuição de prémios de gestão aos arguidos seria ilícita ou ilegítima por não estar em conformidade com o estabelecido na Resolução do Conselho de Ministros nº 29/89, como decorre inequivocamente dos factos vertidos nos seus pontos 23, 24, 40, 41 e 53 (factos relativamente aos quais, como acima se demonstrou, o Tribunal a quo não deliberou).
Ora, decorre claramente do Acórdão recorrido que a razão da qualificação como ilícitos dos factos imputados aos arguidos na decisão instrutória de fls. 2694 a 2708 dos autos é distinta da apresentada pelo Tribunal a quo, que procedeu a uma diferente valoração jurídica da conduta dos arguidos, como o demonstram as seguintes passagens:
(…)
Com efeito, enquanto na decisão instrutória de fls. 2694 a 2708 dos autos a atribuição de prémios de gestão aos arguidos seria ilícita ou ilegítima por não estar em conformidade com o estabelecido na Resolução do Conselho de Ministros nº 29/89 (em concreto, por exceder limite máximo aí previsto), o Tribunal a quo considerou que a atribuição de tais prémios de gestão aos arguidos é ilícita ou ilegítima por estes não terem competência para “determinar o pagamento, para si próprios, dos montantes em apreço”, facto que nunca fora referenciado nem na acusação nem na pronúncia como fundamento da ilicitude ou ilegitimidade daquela atribuição.
(…)
Ora, no caso dos autos, a alteração substancial dos factos constantes do despacho de pronúncia de fls 2694 a 2708 dos autos não foi – sequer – comunicada aos arguidos em momento anterior ao da prolação do Acórdão, como resulta inequívoco das atas da audiência de julgamento, pelo que, evidentemente estes não deram o seu acordo à operada reformulação do objeto do processo, que foi assim concretizada exclusivamente pelo Tribunal a quo, em clamorosa violação dos princípios do acusatório, da vinculação temática e do contraditório.
Assim, impõe-se concluir pela nulidade do Acórdão recorrido, nos termos da alínea b) do nº n1 do artigo 379º do CPP.
A idêntica conclusão se chegaria no caso de se considerar estarmos em presença de alterações não substanciais dos factos constantes da pronúncia – no que não se concebe e apenas por dever de patrocínio se equaciona – uma vez que sempre se impunha ao Tribunal a quo dar cumprimento ao disposto no artigo 358º do CPP.
(…)
Fazendo nossas as palavras do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 674/99, de 15 de dezembro de 1999 (in www.tribunalconstitucional. pt) “são inconstitucionais as normas contidas nos artigos 358º e 359º do CPP, quando interpretados no sentido de se não entender como alteração dos factos – substancial ou não substancial – a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime, que, embora constantes ou decorrentes dos meios de prova juntos aos autos, para os quais a acusação e a pronúncia expressamente remetiam, no entanto aí se não encontravam especificadamente enunciados, descritos ou discriminados, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º, nºs 1 e 5 da Constituição da República”. Para todos os efeitos legais, aqui fica desde já arguida tal inconstitucionalidade».
2. O Tribunal da Relação de Lisboa não deu provimento ao recurso da decisão condenatória, pronunciando-se, na parte que agora releva, nos seguintes termos:
“ Em terceiro lugar, torna-se imperioso, desde logo, salientar que a diferença existente entre textos da pronúncia e do aresto em crise, no segmento factual assinalado pelos recorrentes B., A. e C. não corresponde a qualquer alteração substancial na medida em que não conduziu à integração desses factos em crime diverso relativamente àquele de que os mesmos se encontravam acusados, bem como não se verificou qualquer agravação no limite máximo da moldura penal aplicável ao crime de que se encontravam acusados. Um e outro ficaram rigorosamente na mesma. Por esta via está, pois, afastada a aplicação, in casu, do regime constante do disposto no Art.º 359º do C.P.Penal.
Por sua vez, como se retira por antinomia da definição legal constante da alínea f) do n.º 1 do Art.º 1º C.P.Penal, a alteração não substancial dos factos é aquela que não tem por efeito a imputação de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Em todo o caso, afigura-se-nos que não se pode concluir, sem mais discussão, que qualquer modificação da factualidade provada, em relação ao que se mostre exatamente vertido na redação da respetiva acusação ou pronúncia, seja merecedora desse qualificativo.
Conforme consta do Acórdão do S.T.J. de 24-01-2002, proferido no processo n.º 1298/99 da 5ª Secção (SASTJ, n.º 57, Pág. 93), a alteração não substancial “pressupõe uma modificação com relevância para a decisão da causa, não bastando para tal que matéria de facto provada não seja inteiramente coincidente com a vertida na acusação”.
Basicamente estão presentes nesta matéria duas distintas ordens de preocupações que correspondem a outros tantos princípios de processo penal: o princípio acusatório e o da total garantia de defesa do arguido.
De permeio fica a questão do objeto do processo, conceito nuclear no funcionamento de diversos institutos adjetivos v. g. os poderes de cognição do tribunal, a extensão do caso julgado, ou o avaliar a exceção da litispendência, mas que não tem, nem pode ter, uma delimitação conformativa absolutamente milimétrica.
É que não se pode olvidar, desde logo, que sobre o Tribunal recai um principio de investigação (cfr. nomeadamente Art.º 340º, n.º 1, do C.P.Penal), e por isso, como o ensina Castanheira Neves, a identidade do objeto do processo ainda que não deva ter limites tão largos ou tão indeterminados que anule a garantia implicada pelo principio acusatório e que a definição do objeto do processo se propõe justamente realizar, não poderá definir-se tão rígida e estreitamente que impeça o esclarecimento suficientemente amplo e adequado da infração imputada e da correlativa responsabilidade (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 31-01-2012, no Processo n.º 947/10.6PEAMD.L1-5, relatado pelo Exmo. Desembargador Luís Gominho, in www.dgsi.pt/jtrl).
Sendo de notar que nem mesmo o principio da identidade que o conforma, postula uma sua igualdade “euclidiana”, para usar a afirmação sugestiva de Simas Santos e Leal-Henriques (Código de Processo Penal Anotado, 2.ª Edição, II Vol., Pág. 413).
O que se revela necessário, é que estejamos perante uma alteração que efetivamente mexa com os direitos do arguido (como se refere no Acórdão desta Relação de 29-11-2007, no Processo n.º 7223/07, relatado pelo Exmo. Desembargador João Carrola, in www.dgsi.ptjjtrl), que postule essa necessidade de defesa.
Assim não acontece, “quando aos factos da acusação se retiram algum ou alguns, isto é se reduz o objeto do processo já que aqueles direitos permanecem intocáveis” (Acórdão da Relação de Lisboa que acaba de se indicar e Acórdão do S.T.J. de 08-11-2007, no processo 07P3164, relatado pelo Exmo. Conselheiro Carmona da Mota, in www.dgsi.pt/jstj), ou “quando os factos são meramente concretizadores ou esclarecedores dos constantes primitivamente da acusação e pronúncia” (v.g. Acórdão da Relação do Porto de 19-11-2008, no processo 0815244, relatado pelo então Exmo. Desembargador Manuel Braz, consultável em www.dgsi.pt/jtrp).
No seguimento do que acaba de se expender, determina o Art.º 358º do C.P.Penal, no seu n.º 1, que: Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
Do texto legal ora citado extrai-se que qualquer alteração não substancial dos factos só impõe a respetiva comunicação ao arguido quando essa alteração tiver relevo para a decisão da causa.
Nesta perspetiva, “alteração não substancial” constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não tenha relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal.
Destarte, a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa.
De todo em todo, verifica-se que os arguidos se encontravam pronunciados pela prática, em coautoria, de um crime de peculato p. e p. pelo Art.º 20º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, com referência aos Art.ºs 3º, n.º 1, alínea i) do mesmo diploma legal e 26º e 28º, ambos do C. Penal, em concurso aparente com idêntico crime p. e p. pelo Art.º 375º, n.º 1, com referência aos Art.ºs 26º e 386º, n.ºs 2 e 4, todos do C. Penal.
Nessa pronúncia, foram imputados, aos arguidos C., A., D. e B., factos que consubstanciavam a determinação por parte de tais arguidos do recebimento de determinados montantes, quando não o podiam fazer (cfr., designadamente, o Art.º 42º dessa mesma peça processual).
No entanto, a sobredita factualidade continha ainda elementos que apontavam no sentido de que tal determinação era ilegal, uma vez que os montantes em causa excediam os limites legalmente permitidos.
Acontece que o acórdão impugnado decidiu apreciar tão-somente os factos relativos ao primeiro segmento da pronúncia, entendendo que o segundo segmento (saber se os citados montantes se contêm ou não nos limites legais), logo que se apure que os arguidos não tinham competência para se atribuírem as quantias em causa, era irrelevante.
E, fê-lo, nos seguintes termos: “Previamente à indicação da matéria de facto considerada provada e não provada, importa explicitar que, face à conformação da causa decorrente da decisão instrutória e das contestações apresentadas pelos arguidos, está a ser trazida à discussão factualidade que é irrelevante à luz das soluções plausíveis da questão de direito. Na verdade, centrou-se a discussão da causa na circunstância de os arguidos terem recebido montantes que ultrapassam o que é legalmente permitido quando, desde logo face ao que se mostra alegado na pronúncia, o que releva para a decisão é esclarecer se foram os arguidos quem determinou o recebimento desses montantes. Se o pagamento dos montantes for imputado aos arguidos, é irrelevante saber se os mesmos se contêm ou não nos limites legais, pois de todo o modo aqueles não tinham competência para se atribuírem as quantias. Se, por outro lado, o pagamento dos montantes não lhes puder ser imputado, também não influi na decisão da causa o apuramento de tais limites legalmente fixados”.
Ora, ao contrário do que os supra mencionados recorrentes pretendem fazer crer, também o primeiro segmento, aquele sobre o qual se debruçou o tribunal a quo, está contido nos factos descritos na pronúncia, não tendo ocorrido, assim, uma modificação dos factos objeto do processo, mediante a introdução de factos novos, desconhecidos.
E que, de facto, não se nos afigura merecer censura o entendimento que se vislumbra ter sido perfilhado pelo Tribunal de 1ª Instância, nos termos supra exarados, ou seja, de que não vale a pena estar a discutir o mais, ou seja, se os prémios de gestão são superiores ao que era admissível porque os factos (“mínimos”) que constam da pronúncia apontam para a prática do crime mesmo sem essa discussão.
O que, desde logo, decorre do circunstancialismo de não ter havido decisão alguma válida de qualquer órgão deliberativo das sociedades (Conselho de Administração ou Assembleia-Geral) que permitisse o pagamento das quantias em causa.
Nesta conformidade, mais nada se pode concluir senão que, in casu, apenas terão sido levadas a cabo pequenas modificações da matéria de facto, visando a melhor concretização das condutas dos arguidos, que, em nosso entender, não se apresentam como suscetíveis de traduzir qualquer alteração, ainda que meramente não substancial, do objeto do processo.
E dizemos isto até porque as mesmas não revelam interesse algum para a decisão da causa, na medida em que o núcleo essencial da factualidade estava já plasmado no despacho de pronúncia.
Sendo mesmo certo que tal resulta, inequivocamente, do acórdão recorrido, quando se afirma que “no que respeita aos arguidos C., A., D. e B. corresponde ao que consta da decisão instrutória, embora com diferente redação…”.
Destarte, à revelia do sustentado, não é aplicável à situação sub judice o regime de comunicação previsto no Art.º 358º do C.P.Penal.
(…)
Em suma, mais nada nos resta concluir senão que nenhuma nulidade se mostra cometida, maxime a que resulta do estabelecido no Art.º 379º, n.º 1, alínea b) do supra mencionado diploma de direito adjetivo penal.
Afigurando-se-nos, de igual modo, que não se efetivou qualquer interpretação dos sobreditos normativos que se apresente como inconstitucional, por desrespeito dos princípios acolhidos nos Artºs 2º e 32º, n.ºs 1 e 5, ambos da C.R.P”.
3. Inconformado, vem o arguido interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do artigo 70º da Lei 28/82, de 15 de novembro (LTC), suscitando a inconstitucionalidade das «normas contidas nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual se não entende como alteração dos factos — substancial ou não substancial — a consideração, na decisão condenatória, de factos atinentes à forma de comissão do crime que não se encontravam especificadamente enunciados, descritos ou discriminados na acusação e na pronúncia, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º n.º 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa».
Notificado para apresentar as suas alegações, o recorrente concluiu-as do seguinte modo:
1ª As instâncias procederam a uma interpretação das normas contidas nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal segundo a qual seria permitida a condenação de arguido pela prática de um crime que lhe era imputado na acusação/pronúncia, mas através da descrição de um modo de comissão distinto do aí descrito (resultante de alteração de factos e/ou alteração de qualificação jurídica introduzida pela decisão condenatória), sem que de tais (novos) factos e da sua (nova) valoração jurídica lhe tivesse sido dado conhecimento prévio para deles se poder defender.
2ª Tais normas contidas nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal, assim interpretadas, são inconstitucionais, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º n.º 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
3ª Efetivamente, os princípios do acusatório e do contraditório, enquanto princípios estruturantes do processo penal, têm de ser enquadrados no sistema processual penal no sentido de assegurarem efetiva e plenamente todas as garantias de defesa.
4ª Pelos concretos factos constantes da decisão instrutória de fls. 2694 a 2708 dos autos, foi imputada ao(s) arguido(s) a prática, em coautoria, de um determinado crime de peculato (e não de um qualquer crime de peculato).
5ª Com efeito, a conduta típica do peculato consubstancia-se numa apropriação necessariamente ilícita ou ilegítima (na terminologia adotada, respetivamente, pelo artigo 20º n.º 1 da Lei n.º 34/87 e pelo artigo 375º n.º 1 do CP), mas podem ser — em termos abstratos e hipotéticos — múltiplos os fundamentos de tal ilicitude ou ilegitimidade.
6ª Em obediência aos princípios do acusatório e da vinculação temática, fez-se na acusação e na pronúncia a concretização factual do fundamento de tal ilicitude ou ilegitimidade na conduta imputada aos arguidos, a fim de estes poderem exercer, como exerceram, o contraditório quanto a tais factos, assim se salvaguardando o respeito pelo princípio do contraditório e a plena garantia dos direitos de defesa dos arguidos.
7ª Constata-se que, nos termos da decisão instrutória de fls. 2694 a 2708 dos autos, a atribuição de prémios de gestão aos arguidos seria a causa de ilicitude ou de ilegitimidade das remunerações em causa por não estarem em conformidade com o estabelecido na Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/89.
8ª Porém, decorre claramente do Acórdão condenatório da 1ª instância, bem como do Acórdão da Relação de Lisboa que o confirmou, que a razão para se terem considerado ilícitas ou ilegítimas as ditas remunerações foi distinta, tendo-se antes considerado que a atribuição de tais prémios de gestão aos arguidos é ilícita ou ilegítima por estes não terem competência para “determinar pagamento, para si próprios, dos montantes em apreço”, o que nunca fora referenciado nem na acusação nem na pronúncia como fundamento da ilicitude ou ilegitimidade daquela atribuição.
9ª Conclui-se pois que um facto objetivo que, luz do despacho de pronúncia de fls. 2694 a 2708 dos autos, era juridicamente irrelevante para efeitos da verificação da tipicidade objetiva da conduta dos arguidos passou a ser o facto determinante para a suposta verificação dessa tipicidade objetiva, sem que à defesa fosse dada oportunidade para sobre isso se pronunciar.
10ª E introduziram-se factos inquestionavelmente novos, imprescindíveis para a decisão de mérito, dos quais resultasse a tipicidade subjetiva da conduta dos arguidos em conformidade com a alteração da tipicidade objetiva.
11ª Não é possível negar-se de boa fé que são bem diferentes o ponto 53 do despacho de pronúncia e o ponto 44 da factualidade considerada provada pelo Acórdão proferido pela 6ª Vara Criminal de Lisboa e confirmado pelo Acórdão recorrido da Relação de Lisboa.
12ª No ponto 53 do despacho de pronúncia (sobre o qual ostensivamente não se deliberou), o cerne do elemento subjetivo era, em coerência com o fundamento da ilicitude ou ilegitimidade da apropriação imputada aos arguidos, o conhecimento que resultava do nº 17 da Resolução do Conselho de Ministros nº 29/89, ou seja o conhecimento por parte dos arguidos de que não podiam decidir a atribuição de valores em acréscimo aos já auferidos.
13ª Ora, a factualidade subjacente ao elemento intelectual da tipicidade subjetiva, tal como constava da pronúncia, não permitia considerar verificado o dolo dos arguidos, em face da alteração do objeto do processo quanto ao elemento objetivo do tipo.
14ª Assim, foram introduzidos na decisão condenatória novos factos dos quais resultasse o elemento intelectual da tipicidade subjetiva (rectius: do dolo) da conduta dos arguidos em conformidade com a alteração do objeto do processo quanto ao elemento objetivo do tipo: no ponto 44 da factualidade dada como provada, o cerne do elemento subjetivo passou a ser o conhecimento da falta de competência para decidir a atribuição a si próprios de quaisquer montantes.
15ª A decisão condenatória, confirmada pela Relação de Lisboa, aditou o citado facto (que não constava de maneira nenhuma — explícita ou implícita — da pronúncia) para adiante poder concluir pela verificação da tipicidade subjetiva do crime imputado aos arguidos, sem a qual não poderiam ter sido condenados.
16ª A imputação factual e jurídica constante da pronúncia — e perante a qual o arguido ora recorrente preparou a sua defesa — configurava um determinado modo de comissão do tipo de crime de peculato (receber mais do que certos limites), enquanto os factos considerados provados pelo Acórdão condenatório, confirmado pela Relação, vieram a configurar uma outra forma de comissão do referido tipo de crime (determinar pagamentos a si mesmos sem competência), pela qual o arguido foi condenado sem que lhe tivesse sido concedida qualquer oportunidade para preparar e apresentar a sua defesa relativamente a essa outra forma de comissão daquele mesmo tipo de crime de peculato.
17ª Foi o próprio Tribunal de 1ª instância que, desconsiderando em absoluto os factos que tinham fixado definitivamente o objeto do processo, formulou ex novo o seu novo objeto de cognição (em clamorosa violação do princípio do acusatório). Depois selecionou, em função de tal novo objeto de cognição, os factos objeto da deliberação. Seguidamente, procedeu no Acórdão a um aditamento de factos que (por si e mais ainda concatenado com a desconsideração dos factos que tinham fixado definitivamente o objeto do processo) traduzem uma radical alteração do objeto do processo. E, por fim, proferiu uma decisão condenatória surpresa — porque baseada nesse novo objeto de cognição —, manifestamente violadora do princípio da vinculação temática, por desconsiderar o objeto do processo, definido pela pronúncia.
18ª A garantia dos direitos da defesa do arguido exigia que, previamente à prolação da decisão condenatória, lhe tivesse sido dado conhecimento das alterações do objeto do processo, que eram manifestamente relevantes do ponto de vista daquela defesa, pois os novos factos reportam-se a um distinto modo de comissão do crime, e tal novo circunstancialismo factual é — foi — decisivo para a valoração jurídica da conduta dos arguidos enquanto crime.
19ª Resulta de todo o exposto que só foi feita a alteração do objeto do processo a que nos vimos referindo sem previamente se ter dado oportunidade de defesa ao(s) arguido(s), só houve condenação em 1ª instância e tal condenação só foi confirmada e não declarada nula porque as instâncias aplicaram negativamente os artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal porque os interpretaram em termos desconformes com o preceituado no artigo 32º n.º 1 e n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
20ª Em rigor, a alteração do objeto do processo operada pelo Tribunal de 1ª instância e (mal) mantida pela Relação de Lisboa constitui uma alteração substancial de factos, pelo menos quanto aos subsumíveis no tipo subjetivo. Porém, para os presentes efeitos de recurso de constitucionalidade, é indiferente estarmos em face dessa ou doutra modalidade de alteração do objeto do processo (alteração não substancial de factos ou alteração de qualificação jurídica), pois a questão é sempre a mesma: os artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal que determinam que o arguido seja ouvido antes de se alterar o objeto do processo foram negativamente aplicados, o que só é racionalmente explicável em função de uma interpretação de tais normas desconforme aos n.ºs 1 e 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
21ª Uma interpretação das normas constantes dos artigos 358 e 359º do Código de Processo Penal correta e conforme com o preceituado no artigo 32º n.º 1 e n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, não teria permitido a condenação do arguido pela prática do tipo de crime que lhe era imputado através da descrição de um modo de comissão distinto do descrito na pronúncia (in casu, distinto do que nesta era expressa e explicitamente invocado como fundamento da ilicitude da apropriação, elemento típico essencial do crime de peculato), sem que de tais (novos) factos e/ou da sua (nova) valoração jurídica tivesse sido dado conhecimento prévio à defesa para deles se poder defender e assim se teriam respeitado as garantias de defesa do arguido e os princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º n.º 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
22ª Devem pois ser declaradas inconstitucionais as normas contidas nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido referido na conclusão lª, por violação dos n.º 1 e 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
23ª Consequentemente, devem os autos ser remetidos para o Tribunal da Relação de Lisboa para que, em conformidade com a declaração de inconstitucionalidade, se reforme o Acórdão recorrido aplicando os artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal interpretados em conformidade com os n.º 1 e 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
4. Por seu turno, o Ministério Público veio nas suas contra-alegações pugnar pela não inconstitucionalidade da norma invocada pelo recorrente.
5. Admitindo-se, porém, como plausível que o Tribunal viesse a não tomar conhecimento do objeto do recurso, foi proferido o seguinte despacho.
“O recorrente, ao abrigo da alínea b) do artigo 70º da Lei nº 28/82, na redação atual, (LTC), interpõe recurso de fiscalização concreta das normas contidas nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual se não entende como alteração dos factos — substancial ou não substancial — a consideração, na decisão condenatória, de factos atinentes à forma de comissão do crime que não se encontravam especificadamente enunciados, descritos ou discriminados na acusação e na pronúncia, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º n.º 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
A admissão do recurso para julgamento na fase de saneamento não preclude a possibilidade de na própria fase de julgamento se decidir não conceder do recurso, com fundamento em alguns dos pressupostos previstos no artigo 76º da LTC.
O recurso suscita dúvidas sobre o preenchimento de alguns pressupostos objetivos de admissibilidade, designadamente que tenha havido aplicação efetiva pelo acórdão recorrido da interpretação normativa especificada pelo recorrente como padecendo de inconstitucionalidade.
Para o recorrente, o acórdão recorrido aplicou os artigos 358º e 359º do CPP numa interpretação que excluiu do âmbito da expressão normativa «alteração dos factos», os «factos atinentes à forma de comissão do crime que não se encontravam especificamente enunciados, descritos ou discriminados na acusação e pronúncia», o que consubstancia violação das garantias e direitos do arguido asseguradas nos nºs 2 e 5 do artigo 32º da CRP.
Acontece que o acórdão recorrido não só afastou, in casu, a aplicação dessas normas, julgando não ocorrer nulidade prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 379º do CPP, como, no que se refere à inconstitucionalidade, disse expressamente «que não se efetivou qualquer interpretação dos sobreditos normativos que se apresente como inconstitucional, por desrespeito dos princípios acolhidos nos artigos 2º e 32º do nº 1 e 5, ambos da C.R.P».
Na motivação do acórdão recorrido depreende-se que o Tribunal julgou não existir qualquer alteração substancial ou não substancial da matéria de facto especificada na pronúncia, no segmento factual assinalado pelo recorrente, por entender que essa matéria já constava da pronúncia.
O recorrente considera que «os arguidos vinham pronunciados pela prática de um crime de peculato, por se terem ilícita ou ilegitimamente apropriado de montantes que excediam o limite máximo previsto na Resolução do Conselho de Ministros nº 29/89 e foram condenados pela prática de um crime de peculato por não terem competência para “determinar o pagamento, para si próprios, dos montantes em apreço”».
Mas o acórdão recorrido tem uma leitura diferente dos factos constantes da pronúncia, considerando que nela já se encontram especificados os factos que fundamentam o tipo de ilícito pelo qual o recorrente foi condenado. Aí se diz, «ao contrário do que os supra mencionados recorrentes pretendem fazer crer, também o primeiro segmento, aquele sobre o qual se debruçou o tribunal a quo, está contido nos factos descritos na pronúncia, não tendo ocorrido, assim, uma modificação dos factos objeto do processo, mediante a introdução de factos novos, desconhecidos».
Assim sendo, parece que não está em causa o sentido com que os artigos 358º e 359º do CPP foram tomados no caso concreto, mas a averiguação e determinação dos factos descritos na pronúncia, juízo que é feito independentemente de qualquer consideração jurídico-constitucional. O que parece significar que a solução contida no acórdão recorrido não se apresenta como uma necessária decorrência da interpretação normativa cuja inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações de recurso, assentando em “ratio decidendi” substancialmente diversa da questionada pelo recorrente. O acórdão recorrido não aceita que os factos pelos quais o recorrente foi condenado não se encontrem descritos na pronúncia, sendo certo que não cabe nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional determinar se ocorreu ou não uma alteração substancial ou não substancial dos factos, substituindo a qualificação jurídica que foi efetuada pela Relação.
Nestes termos, convidam-se as partes a pronunciar-se sobre a eventualidade de se não conhecer do objeto do recurso, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 704º do Código de Processo Civil (aplicável por força do artigo 69º da Lei nº 28/82)”.
6. O recorrente respondeu ao convite do Relator, referindo, inter alia:
“Com o devido respeito, não parece aceitável que se considere que não há o preenchimento de alguns pressupostos objetivos de admissibilidade na medida em que “o acórdão recorrido não só afastou, in casu, a aplicação dessas normas, julgando não ocorrer nulidade prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 379º do CPP, como, no que se refere à inconstitucionalidade, disse expressamente «que não se efetivou qualquer interpretação dos sobreditos normativos que se apresente como inconstitucional, por desrespeito dos princípios acolhidos nos artigos 2° e 32 nºs 1 e 5, ambos da CRP».”.
Pois, desde logo, se o Acórdão recorrido tivesse interpretado as normas em causa no sentido de determinarem a sua aplicação ao caso concreto, não se questionaria a inconstitucionalidade de tal interpretação, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º n.º 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa. E se o Tribunal da Relação de Lisboa tivesse reconhecido a inconstitucionalidade de tal interpretação não se teria interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional.
Aliás, em função do expressamente previsto na alínea b) do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro), que exige que a “inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”, todos esses recursos para o Tribunal Constitucional pressupõem necessariamente que se esteja perante uma decisão judicial na qual tenha sido resolvida uma questão de inconstitucionalidade e que tenha sido resolvida em sentido contrário ao suscitado pelo recorrente. Por isso mesmo se suscitando a (re)apreciação de tal questão de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional.
Note-se que no presente recurso se sustenta que a interpretação que o Acórdão recorrido fez dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal é inconstitucional por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º n.º 1 e n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, e o próprio Tribunal da Relação de Lisboa reconhece que, na definição do âmbito – necessariamente normativo – do conceito de alteração não substancial dos factos, tais princípios são fundamentais (…)
(…)
Como inadmissível é sustentar, como fez o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que caberia ao arguido antecipar uma eventual condenação com base nesses factos (nunca antes imputados), apesar de eles não constarem (ou apenas constarem, no entender das decisões recorridas, de forma implícita e indireta) da pronúncia. Já que, dessa forma, se forçaria o arguido, com violação das mais elementares garantias de defesa (em especial do nemo tenetur se ipsum accusare), a desempenhar um papel que o acusador não levara a cabo até ao fim, formulando todas as possíveis imputações contra si mesmo, para depois as refutar.
Tal argumentação só é compatível com uma interpretação das normas constantes dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal desconforme com o preceituado no artigo 32º n.º 1 e n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, pelo que o que está efetivamente em causa é “o sentido com que os artigos foram tomados no caso concreto” e não “a averiguação e determinação dos factos descritos na pronúncia”.
A impugnação pelo recorrente, mediante o presente recurso para o Tribunal Constitucional, dos Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa e do Tribunal Coletivo de a Instância só atinge o respetivo sentido decisório na medida das interpretações desconformes à Constituição aí oportunamente detetadas. Não se trata de impugnar um ato decisório por si só. Trata-se de criticar, nesse ato decisório, interpretações normativas aí realizadas, com base na sua desconformidade à Lei Fundamental”.
7. Por sua vez, o Ministério Público respondeu à questão prévia, dizendo, em síntese, o seguinte: «Este Ministério Público dá, pois, o seu acordo, a que se conclua, como sugerido pelo Ilustre Conselheiro Relator, pelo não conhecimento do objeto do presente recurso de constitucionalidade, por a interpretação normativa da questão de constitucionalidade, nele suscitada, não ter integrado a ratio decidendi da decisão recorrida – o Acórdão de 28 de fevereiro de 2012, do Tribunal da Relação de Lisboa».
II. Fundamentação
8. Admitido o recurso, não obstante ter sido determinada a produção de alegações, cumpre, na sequência do despacho emitido pelo relator e das respostas do recorrente e do Ministério Público, decidir se dele se pode conhecer.
O recorrente suscita a inconstitucionalidade das «normas contidas nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual se não entende como alteração dos factos — substancial ou não substancial — a consideração, na decisão condenatória, de factos atinentes à forma de comissão do crime que não se encontravam especificadamente enunciados, descritos ou discriminados na acusação e na pronúncia, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º n.º 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa».
Assim delimitado o recurso, desde logo, importa averiguar se a decisão recorrida aplicou as normas questionadas com a interpretação que o recorrente considera inconstitucional.
Na verdade, decorre do nº 1 do artigo 280º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), que o objeto do recurso de constitucionalidade interposto de decisões jurisdicionais não assenta nas referidas decisões, mas sim nas normas jurídicas e nas interpretações normativas que por elas são aplicadas. Assim sendo, a admissibilidade deste tipo de recurso depende da efetiva aplicação, na decisão recorrida, da norma ou interpretação normativa cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal aprecie. E segundo a jurisprudência reiteradamente firmada deste Tribunal, a efetividade dessa aplicação só ocorre quando a norma ou interpretação normativa impugnada constitui a “ratio decidendi” da decisão proferida, isto é, seja o fundamento jurídico determinante da solução dada ao caso concreto pelo tribunal “a quo”.
Quando o recorrente pretende sindicar uma norma, na exata medida em que a mesma foi interpretada e aplicada com um determinado sentido inconstitucional, não é suficiente demonstrar que a norma tenha sido objeto de aplicação, exige-se ainda, correspondentemente, que ela tenha sido aplicada no caso concreto com essa mesma interpretação.
9. O recorrente reporta o recurso de inconstitucionalidade a uma suposta interpretação das normas dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal (CPP) que teve como resultado a exclusão do âmbito das expressões normativas «alteração substancial dos factos» e «alteração não substancial dos factos» os factos atinentes à forma de comissão do crime que não se encontravam especificamente enunciados, descritos ou discriminados na acusação e pronúncia, o que consubstancia violação das garantias e direitos do arguido asseguradas nos nºs 2 e 5 do artigo 32º da CRP.
Na peça processual em que suscitou a inconstitucionalidade – as alegações do recurso interposto do acórdão que o condenou pela prática do crime de peculato, previsto e punido no artigo 375º, nº 1 do Código Penal – o recorrente arguiu a nulidade do acórdão, alegando que foi condenado por factos diversos dos descritos na pronúncia, sem que em audiência o tribunal tenha dado cumprimento ao preceituado nos artigos 358º e 359º do CPP. O recorrente começou por identificar os factos que foram objeto de alteração pelo tribunal relativamente ao despacho de pronúncia, procedendo de seguida à qualificação de tal alteração e apreciação das consequências jurídicas daí decorrentes.
No confronto que faz entre os factos descritos na pronúncia e os que foram dados como provados e não provados no acórdão condenatório, conclui que não se está perante uma “diferente redação” dos factos constantes do despacho de pronúncia, como se qualifica nesse acórdão, mas de verdadeira alteração substancial dos factos ou, mesmo que assim não se entenda, sempre se estará na presença de alteração não substancial dos factos.
A alteração de factos entre a pronúncia e o acórdão condenatório, tal como o recorrente defende, decorre de se constatar que, enquanto na decisão instrutória a ilegitimidade dos chamados “prémios de gestão” recebidos pelo arguido se fundar na desconformidade com a Resolução do Conselho de Ministros nº 29/89, publicada no DR nº 196, de 26 de agosto de 1989, no acórdão condenatório se basear na falta de competência do arguido para determinar o pagamento para si próprio de tais prémios.
Apesar da extensão das alegações, quer para a Relação quer para este Tribunal, a alegada alteração de factos sintetiza-se na seguinte passagem: «enquanto na decisão instrutória de fls. 2694 a 2708 dos autos a atribuição de prémios de gestão aos arguidos seria ilícita ou ilegítima por não estar em conformidade com o estabelecido na Resolução do Conselho de Ministros nº 29/89 (em concreto, por exceder o limite máximo aí previsto), o Tribunal a quo considerou que a atribuição de tais prémios de gestão aos arguidos é ilícita ou ilegítima por estes não terem competência para “determinar o pagamento, para si próprios, dos montantes em apreço”, facto que nunca fora referenciado nem na acusação nem na pronúncia como fundamento da ilicitude ou ilegitimidade daquela atribuição».
Entende, portanto, o recorrente que a descrição factual constante da pronúncia, e perante a qual preparou a sua defesa, configurava um determinado modo de comissão do crime de peculato – receber mais do que certos limites – enquanto os factos considerados provados pelo acórdão condenatório vieram a configurar uma outra forma de comissão do referido tipo de crime – determinar pagamento a si mesmo sem competência – sem que lhe tivesse sido concedida qualquer oportunidade prévia para preparar e apresentar a sua defesa relativamente à imputação dessa outra forma de comissão daquele mesmo ilícito penal.
10. Acontece que o fundamento jurídico em que assentou o indeferimento do pedido de nulidade do acórdão condenatório não tem coincidência ou identidade normativa com a interpretação que o recorrente faz dos artigos 358º e 359º do CPP, no sentido de se incluir no seu âmbito as alterações de facto ocorridas entre a pronúncia e o acórdão condenatório.
Ao julgar a arguida nulidade, o tribunal recorrido não aplicou as normas dos artigos 358º e 359º do CPP porque, contrariamente ao alegado pelo recorrente, considera que o fundamento da ilicitude do crime de peculato pelo qual foi condenado já se encontra descrito na pronúncia, não tendo ocorrido qualquer alteração no objeto do processo. Ou seja: enquanto o recorrente interpreta a pronúncia como contendo apenas um fundamento da ilicitude – a violação da Resolução do Conselho de Ministros – o acórdão recorrido faz uma leitura diferente, julgando que dela também já faz parte o fundamento da ilicitude pelo qual o recorrente foi condenado – não ter competência para determinar pagamento a si próprio.
O acórdão recorrido é bem explícito quanto a considerar que a falta de competência para determinar o pagamento a si próprio dos chamados prémios de gestão é um dos factos normativos descritos na pronúncia.
Na verdade, aí vem referido o seguinte:
«Nessa pronúncia, foram imputados, aos arguidos C., A., D. e B., factos que consubstanciavam a determinação por parte de tais arguidos do recebimento de determinados montantes, quando não o podiam fazer (cfr., designadamente, o Art.º 42º dessa mesma peça processual).
No entanto, a sobredita factualidade continha ainda elementos que apontavam no sentido de que tal determinação era ilegal, uma vez que os montantes em causa excediam os limites legalmente permitidos.
Acontece que o acórdão impugnado decidiu apreciar tão-somente os factos relativos ao primeiro segmento da pronúncia, entendendo que o segundo segmento (saber se os citados montantes se contêm ou não nos limites legais), logo que se apure que os arguidos não tinham competência para se atribuírem as quantias em causa, era irrelevante.
E, fê-lo, nos seguintes termos: “Previamente à indicação da matéria de facto considerada provada e não provada, importa explicitar que, face à conformação da causa decorrente da decisão instrutória e das contestações apresentadas pelos arguidos, está a ser trazida à discussão factualidade que é irrelevante à luz das soluções plausíveis da questão de direito. Na verdade, centrou-se a discussão da causa na circunstância de os arguidos terem recebido montantes que ultrapassam o que é legalmente permitido quando, desde logo face ao que se mostra alegado na pronúncia, o que releva para a decisão é esclarecer se foram os arguidos quem determinou o recebimento desses montantes. Se o pagamento dos montantes for imputado aos arguidos, é irrelevante saber se os mesmos se contêm ou não nos limites legais, pois de todo o modo aqueles não tinham competência para se atribuírem as quantias. Se, por outro lado, o pagamento dos montantes não lhes puder ser imputado, também não influi na decisão da causa o apuramento de tais limites legalmente fixados”.
Ora, ao contrário do que os supra mencionados recorrentes pretendem fazer crer, também o primeiro segmento, aquele sobre o qual se debruçou o tribunal a quo, está contido nos factos descritos na pronúncia, não tendo ocorrido, assim, uma modificação dos factos objeto do processo, mediante a introdução de factos novos, desconhecidos.
E que, de facto, não se nos afigura merecer censura o entendimento que se vislumbra ter sido perfilhado pelo Tribunal de 1ª Instância, nos termos supra exarados, ou seja, de que não vale a pena estar a discutir o mais, ou seja, se os prémios de gestão são superiores ao que era admissível porque os factos (“mínimos”) que constam da pronúncia apontam para a prática do crime mesmo sem essa discussão.
O que, desde logo, decorre do circunstancialismo de não ter havido decisão alguma válida de qualquer órgão deliberativo das sociedades (Conselho de Administração ou Assembleia-Geral) que permitisse o pagamento das quantias em causa.
Nesta conformidade, mais nada se pode concluir senão que, in casu, apenas terão sido levadas a cabo pequenas modificações da matéria de facto, visando a melhor concretização das condutas dos arguidos, que, em nosso entender, não se apresentam como suscetíveis de traduzir qualquer alteração, ainda que meramente não substancial, do objeto do processo.
E dizemos isto até porque as mesmas não revelam interesse algum para a decisão da causa, na medida em que o núcleo essencial da factualidade estava já plasmado no despacho de pronúncia».
Como se vê, o motivo pelo qual foi julgada improcedente a arguida nulidade do acórdão condenatório assenta na interpretação que o tribunal faz dos factos descritos na pronúncia, considerando que eles integram o fundamento da ilicitude que conduziu à condenação do recorrente, pelo que não podiam ser considerados factos novos, nem constituir alteração dos factos constantes da pronúncia.
Ora, se o tribunal recorrido julga que a pronúncia contém todos os factos constitutivos do tipo de ilícito pelo qual o recorrente foi condenado, então não há um juízo aplicativo das normas dos artigos 378º e 379º do CPP. As normas extraíveis destes preceitos não foram negativamente aplicadas porque se formulou um juízo positivo sobre a inclusão na pronúncia do fundamento da ilegitimidade do recebimento dos prémios de gestão – o modo de comissão do crime de peculato –, ficando assim afastado qualquer juízo sobre a existência de alteração, substancial ou não substancial, da factualidade típica descrita na decisão instrutória.
Está fora dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional apreciar a matéria fáctica, bem como a correção do juízo da sua subsunção aos preceitos dos artigos 358º e 359º do CPP. O Tribunal não pode sindicar a correção em concreto do juízo que foi feito sobre a inclusão ou não do despacho de pronúncia no fundamento da ilicitude da apropriação dos prémios de gestão. Uma tal apreciação incidiria sobre a matéria de facto e sobre o mérito da decisão, o que seguramente equivaleria a sindicar o ato de julgamento, com a consequente invasão das áreas de competência dos outros tribunais.
E na verdade, na sombra da inconstitucionalidade de determinada dimensão normativa dos artigos 358º e 359º do CPP, que efetivamente não foi realizada e aplicada, o que se pretende sindicar é o error in iudicando quanto à valoração concreta da quadro fáctico descrito na pronúncia: saber se nele está ou não descrito o fundamento da ilicitude da apropriação pelo qual se julgou verificado o crime de peculato.
Mas a verdade é que o Tribunal Constitucional não pode sindicar diretamente a inconstitucionalidade da decisão recorrida, mas apenas apreciar uma questão de inconstitucionalidade relativamente a uma norma ou interpretação normativa de que essa decisão tenha feito aplicação. E, nessa medida, a interpretação que a decisão recorrida efetuou – e que constitui um dado que o tribunal não pode alterar – foi no sentido de que o fundamento da ilegitimidade da apropriação dos prémios de gestão provado na sentença condenatória está integrado no quadro fáctico descrito na pronúncia.
11. O recorrente construiu uma interpretação normativa que, a ter sido realizada pelo acórdão recorrido, poderia colidir com a Constituição, nos termos em que já foi julgado pelo Tribunal Constitucional no acórdão nº 674/99 de 15 de dezembro de 1999: «Julgar inconstitucionais as normas contidas nos artigos 358º e 359º do CPP, quando interpretados no sentido de se não entender como alteração dos factos – substancial ou não substancial – a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime, que, embora constantes ou decorrentes dos meios de prova juntos aos autos, para os quais a acusação e a pronúncia expressamente remetiam, no entanto aí se não encontravam especificadamente enunciados, descritos ou discriminados, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º, nºs 1 e 5 da Constituição da República».
De resto, todo o discurso argumentativo exposto nas alegações acompanha de perto a fundamentação desse acórdão, alegando o recorrente que se trata da mesma exata interpretação dos preceitos em causa que subjaz à decisão recorrida e que o Tribunal Constitucional não está impedido de a conhecer, porque é inegável a absoluta identidade entre a questão aqui suscitada e a questão aí decidida, quer a nível da admissibilidade da sua apreciação, quer mesmo a nível da sua procedência.
Simplesmente, ao contrário do que o recorrente pretende fazer crer, não há semelhança entre o caso dos autos e o que foi julgado naquele acórdão, a não ser no que se refere à invocação da mesma dimensão normativa como parâmetro de constitucionalidade.
No caso julgado no acórdão nº 674/99, a tribunal recorrido fez um juízo aplicativo da dimensão normativa impugnada ao não entender como alteração dos factos – substancial ou não substancial – a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime, que embora constantes ou decorrentes dos meios de prova juntos aos autos, não se encontravam especificadamente enunciados, descritos ou discriminados no texto da pronúncia (e da acusação), a qual todavia expressamente remetia para esses mesmos meios de prova. Nesse processo, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que, muito embora o acórdão condenatório referisse elementos ou factos constantes de relatórios periciais ou de outros documentos juntos aos autos, e sendo certo que tais factos se não encontravam textualmente descritos na pronúncia, a verdade é que eles não poderiam ser considerados «factos novos», nem sequer constituir alteração dos factos constantes da pronúncia, uma vez que essa mesma pronúncia mencionava e remetia expressamente para aqueles meios de prova.
Como se vê, existe uma diferença substancial entre a situação que foi julgada nesse processo e a dos presentes autos: enquanto naquele, o tribunal recorrido considerou que a pronúncia integra factos que, embora não descritos, estão incorporados nos documentos para que remete, não consubstanciando «alteração dos factos» a sua reprodução na sentença como factos provados, neste outro, o tribunal entende que os factos provados quanto ao fundamento da ilicitude – o segmento impugnado pelo recorrente – estão descritos no texto da pronúncia.
Naquele caso, era certo e seguro que a sentença condenatória considerou factos que, não se encontrando previstos na pronúncia, se podiam extrair de documentos anexos para os quais remetia, circunstância essa que levou o STJ, interpretando o artigo 358º do CPP, a julgar não existir alteração dos factos, o que é contrário à Constituição; já no caso dos autos, considera-se que aos factos provados no acórdão condenatório, quanto ao fundamento da ilicitude do crime, estão descritos na pronúncia. Não se trata pois de aplicar os artigos 358º e 359º numa determinada dimensão normativa, mas de averiguar se efetivamente a pronúncia descreve a factualidade típica que conduziu à condenação, situação que naturalmente envolve o controlo da valoração e subsunção realizada pelo julgador, operação casuística e concreta que não está ao alcance do juiz constitucional.
Assim sendo, não tendo sido aplicada a interpretação cuja conformidade constitucional o recorrente submete à apreciação do Tribunal Constitucional, não pode conhecer-se do objeto do recurso, por falta de preenchimento de um dos seus pressupostos processuais.
III. Decisão
12. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se não conhecer do objeto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em vinte (20) unidades de conta.
Lisboa, 7 de janeiro de 2014. – Lino Rodrigues Ribeiro – Carlos Fernandes Cadilha - Maria José Rangel de Mesquita – Maria Lúcia Amaral.