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Processo n.º 726/13
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que são recorrentes A. e B., e recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
2. Pela Decisão sumária n.º 726/2013, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:
«(…) 5. O recurso incide sobre o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que negou provimento ao recurso interposto da sentença condenatória proferida em primeira instância.
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, o controlo exercido pelo Tribunal Constitucional tem natureza estritamente normativa, não contemplando a apreciação da conformidade constitucional da decisão judicialmente proferida. O recurso de constitucionalidade delineado pela Constituição não prevê o «recurso de amparo» ou «queixa constitucional».
Em conformidade, os recursos de constitucionalidade interpostos de decisões de outros tribunais apenas podem ter por objeto «interpretações» ou «critérios normativos» identificados com caráter de generalidade, e nessa medida suscetíveis de aplicação a outras situações, independentemente, pois, das particularidades do caso concreto. A respetiva admissibilidade depende, assim, da identificação da interpretação ou critério normativos - uma regra abstratamente enunciável vocacionada para uma aplicação para lá do caso concreto – cuja desconformidade constitucional se suscita.
6. No requerimento de interposição do recurso, os recorrentes formulam do seguinte modo as questões de constitucionalidade que pretendem ver apreciadas:
“A arguida suscitou nas alegações de recurso dirigidas ao Tribunal da Relação de Coimbra e nas alegações de recurso para o STJ -relativamente ao acórdão da Relação de Coimbra- diversas inconstitucionalidades, em virtude da interpretação dada pelo tribunal “a quo” às normas infra designadas.
Pretende a arguida que seja apreciada a inconstitucionalidade das seguintes normas: (art.75º-A nº01 da LOTC)
a- art.344º do CPP.
b- art. 129º do CPP
c- arts.127º e 430º do CPP
d-_arts. 374º e 127º do CPP
As normas e/ou princípios constitucionais violados são, respetivamente:
a- art. 32º nº02 da CRP.
b- art.32º da CRP
c-arts. 1º e 32º nº01 da CRP
d- 32º nº01 da CRP
MOTIVAÇÃO:
a- O art.344º CPP do CPP foi interpretado pelo tribunal “a quo “da seguinte forma:
O juiz de 1ª instância valorou o depoimentos dos coarguidos que negaram os factos, mas no entender da juiz “a quo” de modo contraditório o que motivou a sua convicção para os condenar.
Considera a recorrente que a forma correta interpretar as normas é:
O art.344º do CPP tem de ser interpretado de molde a que só se pode dar valor ao depoimento do arguido e utilizá-lo contra si desde que confesse os factos e/ou deponha sobre factos referentes ao coarguido, caso contrário violar-se-ia o pr. constitucional do in dúbio pro reo.
b- O art. 129º CPP do CPP foi interpretado pelo tribunal a quo da seguinte forma:
O juiz 1ª instância valorou o depoimento das testemunhas, Dina, Inês e Madalena tratando-se na íntegra de dar atenção a depoimentos indiretos sem valor probatório (cfr. art.129º do CPP), apesar destas testemunhas não identificaram quem lhes disse que a arguida se prostituía no apartamento.
A disciplina do art.129º nº01 do CPP não viola os princípios constitucionais do art.32º da C.R.P., não viola o princípio da estrutura acusatória do processo, nem o princípio da imediação, nem a regra do contraditório, porque ao mesmo tempo que admite o testemunho de ouvir dizer impõe que as pessoas referenciadas nesse depoimento sejam, elas próprias, chamadas a depor por forma a validar o depoimento indireto, caso contrário viola-se o citado preceito constitucional.
Considera a recorrente que a forma correta interpretar a norma é:
O art. 129º do C.P.P.- de forma, diga-se desde já, absolutamente excecional - regula o testemunho de ouvir dizer, admitindo que este valha como meio de prova - sempre que a testemunha ausente não esteja disponível - por morte, anomalia psíquica superveniente ou desaparecimento.
Donde, não pode ser valorado o depoimento de uma testemunha que se recusa ou não se encontra em condições de indicar a pessoa ou a fonte da qual obteve conhecimento do facto objeto da inquirição, devendo o Tribunal - no caso de a testemunha ter ouvido dizer a pessoas determinadas - chamar estas a depor, valendo, então, o depoimento que por elas vier a ser prestado.
Se o Tribunal não chamar as ditas pessoas o depoimento indireto da testemunha não pode ser valorado (salvo os apontados casos de impossibilidade).
No caso concreto, cremos, então, que não pode deixar de aqui interceder - decisivamente - o apontado limite, para valorar a prova testemunhal como meio de prova, na parte em que aquela testemunhas dão a conhecer conversas que ouviram sem identificar a fonte.
Assim, não podendo valer como prova o depoimento indireto de testemunhas, sobre o que ouviram dizer a testemunhas não reveladas.
O mesmo se dirá e se alega a mesma inconstitucionalidade quando a juiz “a quo “valora o depoimento do inspetor quando relata o que ouviu aos colegas, sendo que caso concreto não se ouviu a fonte que ele identifica.
c- Os arts.430º do CPP em conjugação com art.127º do CPP foram interpretados pelo tribunal a quo, da seguinte forma:
Consideraram que a matéria de facto fixada em 1ª instância resultou de um trabalho de depuração dos meios de prova, alicerçado no princípio da livre apreciação da mesma, nos termos do art.127º do CPP, por tal em tributo a este princípio e ao disposto no art.374º nº02 do CPP, concluíram pela desnecessidade de reapreciar a prova gravada, por a convicção do juiz 1ª instância ter resultado de abundante prova e que a reapreciação apenas levava a questionar a formação da convicção do tribunal.
O tribunal da Relação de Coimbra com este fundamento recusou-se a reapreciar a prova testemunhal gravada
Considera a recorrente que a forma correta interpretar as normas é:
O art. 127º do CPP e 430º do CPP devem ser interpretados no sentido de assegurar, em sede de recurso, a reapreciação da prova testemunhal gravada, em sede de recurso, independentemente de ser posta em causa ou não o modo de formação da convicção do tribunal, a não ser assim não está garantido um duplo grau de jurisdição e a análise do erro da apreciação da prova.
O que aconteceu nos autos, foi negada aos arguidos um duplo grau de jurisdição violando-se o art.32º da CRP., isto é os recorrentes não puderam ver reapreciada a prova testemunhal, inclusive, com especial atenção às testemunhas aditadas em audiência de julgamento pelo MºPº ao se aperceber que nenhuma prova havia sido produzido que seguramente levasse à condenação dos arguidos.
d- Os art.374º e 127º do CPP foram interpretados pelo tribunal a quo, da seguinte forma:
Os juízes desembargadores interpretaram tais preceitos legais de modo a não conhecerem e/ou se pronunciaram quanto à validade e pertinência das questões levantadas pelos arguidos relativamente aos documentos de fls.49, 50, 73, 83 a 125, 179, 240 a 246, 248 a 259, 269, 272 a 275 e 280 a 287, sobre os quais juiz 1ª instância fundou a sua convicção, relegando a falta de tal conhecimento para o princípio da livre apreciação da prova e que a convicção da 1ª instância é inalterável.
Considera a recorrente que a forma correta interpretar as normas é:
Devem ser interpretados no sentido de assegurar, em sede de recurso, a reapreciação de toda a prova documental em sede de recurso, a não ser assim não está garantido um duplo grau de jurisdição.
Consideram os recorrentes que tal interpretação é inconstitucional, pois foi subtraído aos recorrentes o direito a um efetivo recurso, o que viola o preceito constitucional constante do art.32º nº 01 da CRP.
O entendimento que os arguidos fazem dos documentos que serviram para os condenar não foi tido em consideração pelo tribunal ad quem, por não terem sido por ele examinados
CONCLUSÕES:
1ª Os recorrentes foram julgados num processo que veio a declarar que o seu casamento foi simulado para que a recorrente mulher obtivesse a sua legalização e/ou naturalização.
Os recorrente não se conformam com tal decisão, uma vez que o seu casamento é uma realidade, constituíram e constituem um casal, viveram juntos em diversas habitações após o casamento que constituíam a sua casa de morada de família, sentem um entranhado amor um pelo outro, o recorrente encontra-se bastante doente com problema cancerígeno, a recorrente teve de emigrar para outro país europeu, por forma a poder sustentar a família, de onde resulta que o casamento não tinha em vista a sua legalização, já que até saiu do país para assegurar o sustento da família.
2ª Pretende a arguida que seja apreciada a inconstitucionalidade das seguintes normas:
a- art.344º do CPP.
b- art.129º do CPP
c- arts.127º e 430º do CPP
d-_art.374º e 127º do CPP
As ditas normas tal como foram interpretadas pelo tribunal “a quo” violaram, respetivamente normas e/ou princípios constitucionais:
a- art. 32º nº02 da CRP.
b- art.32º da CRP
c- art.32º nº01 da CRP
d- 32º nº01 da CRP
As normas violadas deveriam ter sido interpretadas consoante a forma supra explanada na motivação, para a qual se remete e se dá por reproduzida.”
Desta forma, os recorrentes limitam-se a aludir a pretensas inconstitucionalidades da interpretação seguida no tribunal recorrido, da qual discordam, sem, contudo, chegarem a precisar ou enunciar as interpretações normativas (com caráter de generalidade) que teriam estado na base do decidido e cuja desconformidade com a Constituição reclamam.
7. O que os recorrentes visam é ver sindicada a própria decisão do tribunal recorrido e não qualquer norma, por este, aplicada. Na verdade, e à semelhança da fundamentação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra, no recurso de constitucionalidade, ora interposto, os recorrentes voltam a não formular qualquer questão de constitucionalidade a apreciar com grau de generalidade e abstração inerentes ao processo de fiscalização concreta da constitucionalidade.
Ora, ao Tribunal Constitucional apenas cabe a apreciação de conformidade constitucional de normas ou critérios normativos, não de decisões proferidas por outros tribunais. Não apresentando o recurso, no seu objeto, as características de “normatividade” indispensáveis à realização de um controlo de constitucionalidade, na falta do preenchimento do requisito processual em causa, não é possível conhecer do mesmo».
3. Da decisão sumária vêm agora os recorrentes reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, concentrando a fundamentação nos seguintes argumentos (“Conclusões”):
«1ª Os reclamantes, (…) consideram que cumpriram o preceituado no art. 75.º-A n.º 2 LTC, ao contrário do doutamente decidido pela Exmª Srª Juíza Conselheira relatora, uma vez que indicaram no seu requerimento de recurso a norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie e a norma ou princípio constitucional ou legal que se considera violado.
2ª Tomando em consideração o doutamente decidido pela meritíssima juíza e o disposto no art. 75.º-A da LOTC, consideram os reclamantes que deveria ter operado “in cau” o disposto no art. 75.º-A n.º 5 da LTC».
4. Notificado, o Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência da mesma.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. A presente reclamação em nada contraria os fundamentos da decisão sumária.
Com efeito, nos presentes autos foi proferida decisão de não conhecimento do recurso com fundamento em falta de objeto normativo. Entendeu-se, na referida decisão, que «não apresentando o recurso, no seu objeto, as características de “normatividade” indispensáveis à realização de um controlo de constitucionalidade, na falta do preenchimento do requisito processual em causa, não é possível conhecer do mesmo».
Para contrariar o decidido, os reclamantes limitam-se a referir que indicaram a norma cuja inconstitucionalidade pretendem ver apreciada bem como o princípio constitucional violado. Mais sustentam que deveria ter sido dado cumprimento ao disposto no artigo 75.º-A, n.º 5 da LTC, convidando os recorrentes a suprir as deficiências encontradas no requerimento de interposição do recurso.
6. Como resulta do acima já referido, o fundamento da decisão sumária não foi a falta de indicação das “normas” a sindicar ou dos princípios violados, mas sim a ausência de objeto normativo do recurso por se considerar que as questões de constitucionalidade (“normas”) indicadas pelos recorrentes não apresentavam as características de normatividade, designadamente, o grau de generalidade e abstração indispensáveis à realização de um controlo de constitucionalidade.
O vício indicado traduz-se na falta de um pressuposto de conhecimento do recurso de constitucionalidade, pelo que não pode ser suprido por via do aperfeiçoamento previsto no artigo 75.º-A, n.º 5 da LTC.
É no requerimento de interposição do recurso que tem de ser identificado o objeto do mesmo. Ora, no requerimento de recurso apresentado não consta a identificação de nenhuma interpretação normativa suscetível de convocar a fiscalização de constitucionalidade por este Tribunal. E sendo aquele um pressuposto de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da LTC, a sua omissão não pode ser suprida por aperfeiçoamento posterior. A oportunidade de aperfeiçoamento prevista no artigo 75.º-A, n.º 5 da LTC só tem sentido útil em caso de deficiência do próprio requerimento de recurso, designadamente por omissão de meros requisitos formais aludidos nos n.os 1 a 4 do mesmo preceito. Não serve para suprir os pressupostos de admissibilidade do recurso determinantes do conhecimento de mérito, como tem sido entendimento deste Tribunal (cfr., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 33/09 e 116/09 disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt).
E sendo assim, impõe-se confirmar a decisão reclamada.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 25 de novembro de 2013.- Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes – Maria Lúcia Amaral.