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Processo n.º 905/13
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para a conferência ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da decisão sumária proferida pelo Relator que decidiu não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade interposto.
2. A reclamação para a conferência tem o seguinte teor:
«(...)
1 – O Despacho reclamado tem por base um erro manifesto e incontornável sobre os elementos da decisão.
2 – Com efeito, o fundamento de não ter sido tomado conhecimento do objeto do Recurso vem de “o recorrente ter podido beneficiar do duplo grau de jurisdição se tivesse recorrido da decisão do Tribunal da Relação do Porto, à semelhança do que fizeram os (ora) recorridos; porém, não o tendo feito, viu a condenação como litigante de má-fé – à partida recorrível – transitada em julgado; assim se explicando que o STJ, por estar em causa um Agravo de 2ª Instância, haja convocado o ART.º 754/2.3 C.P.C. – mas não como sentido de furtar ao Recorrente o direito de recorrer da decisão condenatória”.
3 - Ora bem! Certo, certo, é que não foram os recorridos (originariamente autores) que interpuseram qualquer Recurso.
4 – Assim, não ocorreu, com toda a evidência, o “caso julgado” a que alude a motivação do Despacho do Excelentíssimo Senhor Conselheiro Relator, e de que o Recorrente agora reclama.
5 – Por conseguinte, continuam a valer os motivos que o Recorrente levou à reclamação perante o Excelentíssimo Senhor Conselheiro Relator no STJ.
6 – Continuam a convencê-lo e, que, por isso, dá aqui por reproduzidos a Vossas Excelências, sem necessidade de copiar para não incomodar e respeitar o Princípio da Economia.
7 – No fundamental, nada mais se dirá.
8 – Mas há um pormenor que tem de ficar esclarecido.
9 – Ei-lo: O Recorrente interpôs Recurso Global do Acórdão da Relação, mas que apenas foi recebido no tema da condenação por má-fé.
10 – Seguiu a Lei e, por isso mesmo, enquanto esperou a decisão sobre a recorrida litigância, reclamou pelo não recebimento do Recurso quanto aos demais temas.
11 – Mas o certo é que, até hoje, nem sequer a Reclamação foi autuada!
12 – Logo, identifica-se aqui uma conexão entre este Recurso de Constitucionalidade e a Reclamação acima lida.
13 – Questiona-se o Recorrente: Não haverá motivo para que o Tribunal Constitucional suspenda e deixe de pronunciar-se, por enquanto, sobre a Constitucionalidade recorrível, para aguardar os efeitos de um vencimento que o Recorrente espera acerca da ampliação do objeto do Recurso que interpôs de todo o inteiro Acórdão do Tribunal da Relação do Porto.
14 – Só ao Presidente do STJ compete mandar subir o Recurso e, se assim for, surgirá um conflito entre o seguimento de uma parte da crítica ao Acórdão, e o abortamento na parte menor.
15 – Pensa o Recorrente que esta dissimetria e injustiça só poderá ter remédio através, depois, de uma decisão, então útil e necessária do Tribunal Constitucional, que desamarre de obstáculos formalísticos o Recurso por litigância de má-Fé.
(...)»
3. O Ministério Público pugnou pelo indeferimento da reclamação deduzida.
II. Fundamentação
4. A decisão sumária reclamada tem a seguinte redação:
«(...)
1. A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de junho de 2013, que indeferiu a reclamação apresentada, confirmando o despacho de não admissão do recurso proferido pelo Relator, em 12 de fevereiro de 2013.
2. Por despacho de fls. 1083, de 3 de março de 2006, foi o recorrente condenado, pelos Juízos de Competência Cível de Vila Nova de Famalicão, como litigante de má-fé, numa multa equivalente a 3 UCs. No mesmo despacho (ponto 2), em face da arguição de nulidade suscitada a fls. 776, 777, 952 e 954, decidiu o tribunal declarar nula a perícia efetuada nos autos. Por conseguinte, em requerimento de fls. 1100, veio o recorrente requerer, ao abrigo dos artigos 669.º, n.º 1, alínea a) e 686.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, esclarecimento quanto a saber “se a anulação da perícia implica ou não a anulação de todo o processado subsequente”. Já os ora recorridos (então autores), inconformados com a condenação em litigância de má-fé, interpuseram recurso de agravo, em requerimento de fls. 1102. Em decisão de fls. 1110, o tribunal esclareceu, em resposta ao requerimento do recorrente, que “a anulação da perícia não acarreta a anulação de todo o processado subsequente”, e admitiu o recurso de agravo interposto pelos (ora) recorridos.
De tal decisão interpôs o recorrente recurso de agravo, em requerimento de fls. 1135. O acórdão da Relação do Porto, de 17 de setembro de 2012, negou provimento ao recurso de agravo interposto pelos ora recorridos quanto à condenação por litigância de má-fé (fls. 1690-1699), considerando, no que respeita ao recorrente, que tal condenação já transitara em julgado, por dela não ter sido interposto qualquer recurso. Inconformado, o recorrente interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 1720), admitido pelo tribunal recorrido, como recurso de agravo, na parte relativa à “decisão sobre a má-fé” (fls. 1735). Por despacho de fls. 1766, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça não admitir o recurso interposto, razão pela qual veio o recorrente requerer acórdão (fls. 1800), argumentando, para o efeito, do seguinte jeito:
«(...)
1 – O valor do recurso é superior à alçada porque consequência da decisão recorrida é a retirada do apoio judiciário.
2 – Ora, seja pelo valor das custas que o recorrente teria de pagar, seja porque em termos de apoio judiciário se está, na verdade, perante um litígio estimável em numerário, segundo as regras do interesse pessoal e não de interesse patrimonial, o valor do recurso será, neste caso, acima do valor da alçada por disposição de lei.
3 – Por outro lado, também é certo, que nem há necessidade de ir a raciocínio tão elaborado:
o valor do recurso presente é o valor da ação, e esta tem de valor 50 000€ (cinquenta mil euros).
4 – Mas, o recurso é antes um recurso de apelação, corresponde a ter sido impugnado um efeito colateral da decisão da causa, que lhe é incindível.
5 – E como apelação, tendo atenta a data da propositura da ação, o recurso é admissível, sem mais.
6 – Por fim, o recorrente reproduz aqui o argumentos de inconstitucionalidade opostos ao Despacho-parecer e que não tiveram qualquer resposta no despacho que motiva o presente pedido de acórdão,
7 – A saber:
(i.) A interpretação da norma aplicada, de poder ser aplicada pelos Tribunais uma multa irrecorrível, por mor de alçada, torna o Artigo de lei, preceito-travão, contrário à Constituição da República;
(i.i) Com efeito, em matéria sancionatória, o critério de irrecorribilidade não é nunca o montante da multa, mas o da penalidade ou outras circunstâncias diferentes;
(i.i.i) Por isso mesmo, na tradição normativa, o Recurso de litigância de má-fé é sempre admissível num grau.
(i.v.) Por conseguinte, como o recorrente concluiu perante o Excelentíssimo Relator, alocar, neste caso concreto o ARTº 754/2.3 do CPC a um travão dos recursos de litigância infringe os Princípios da Justiça, da Confiança e da Judicialidade Plena, emergentes todos do ARTº 20º da CRP.
«(...)
Em acórdão de 4 de junho de 2013, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça manter o despacho do Relator, indeferindo a reclamação apresentada, considerando que:
«(...)
1 –Âmbito do recurso
Ponderando a data de instauração da lide (2000) é aplicável o regime processual civil na redação anterior ao Decreto-Lei n.º 303/07, de 24 de agosto e, em consequência, a regulamentação dos agravos interpostos na 2.ª instância do artigo 754.º do Código de Processo Civil, na redação dos Decretos-leis n.ºs 375-A/99, de 20 de setembro e 180/96, de 25 de setembro.
Isto dito, passemos ao âmbito do recurso.
O recorrente restringiu o recurso à litigância de má-fé nas alegações e respetivo acervo conclusivo e, com essa restrição, foi admitido pelo douto despacho de fls 1735.
Usou, assim, da faculdade do n.º 2 do artigo 684.º do Código de Processo Civil, procedendo à delimitação objetiva do segmento impugnatório de uma decisão complexa, já que podia ser parcelada.
Foi por esta via que optou – embora pudesse tê-la reservado para a fase conclusiva das suas alegações (n.º 3 do citado artigo 684.º).
Como explica o Conselheiro Amâncio Ferreira, “mesmo no que concerne a alguns julgados desfavoráveis, a parte vencida pode não estar interessada em questioná-los, ou por com eles concordar, ou por os prejuízos que daí lhe advêm não serem de grande monta, ou por não querer protelar no tempo a definição da situação jurídica submetida a juízo (“Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8.ª ed., 150).
Do exposto, resulta que este Supremo Tribunal está perante um recurso cujo objeto foi, e terá de manter-se limitado à condenação do recorrente como litigante de má-fé.
2 – Recorribilidade
2.1 Delimitado que foi o âmbito do recurso põe-se a questão de saber se o Acórdão em crise é recorrível para este Supremo Tribunal.
O Tribunal Constitucional recordou que “se o texto constitucional é omisso quanto ao limite máximo dos graus de jurisdição também o é quanto ao mínimo” (...) não sendo desejável a banalização do acesso à jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça” (Acórdão n.º 259/97 – Diário da República II, 30/06/97, tirado a propósito da limitação de recurso no Código das Expropriações; cf., quanto ao artigo 387-A do Código de Processo Civil, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 132/2001, de 27 de março de 2001, a concluir pela não inconstitucionalidade do preceito).
2.2 Assim sendo, o Acórdão em apreço não seria recorrível.
E tratando-se de questão que se prende com a litigância de má-fé, e em que a parte foi condenada em montante que não excede a alçada da Relação o recurso não seria de conhecer.
O n.º 3 do artigo 456.º do Código de Processo Civil admite sempre o “recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má-fé”.
Vejamos, procedendo antes a algumas considerações sobre litigância de má-fé.
2.3 Seguro é tratar-se de litigar conscientemente (com dolo ou negligência grave) violando o dever de probidade imposto às partes (deduzindo pretensão ou oposição que sabe não ter fundamento); alterando a verdade ou omitindo factos relevantes; omitindo gravemente o dever de cooperação; ou fazendo do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, para lograr um objetivo ilegal ou entorpecer a ação da justiça).
Nas primeiras hipóteses há má fé material e nas duas últimas surge a má fé instrumental.
Ali está em causa o mérito (o fundo) a relação substancial, aqui põe-se em causa valores de natureza processual.
Exige-se a má-fé (dolo ou culpa grosseira) em sentido psicológico, que não apenas má-fé em sentido ético (leviandade ou mera imprudência).
Mas, “in casu”, sendo aplicáveis os n.ºs 2 e 3 do artigo 754.º do Código de Processo Civil por se estar perante um agravo continuado, o recurso não será de admitir.
Dir-se-á, muito sucintamente, que tratando-se de condenação proferida pela primeira instância, e confirmada pela Relação poderia ser, isoladamente suscitada objeto de agravo.
Porém, como agravo na 2.ª instância, não seria de conhecer por força do preceito acima citado (cfr. v. g. os Acórdãos do STJ 18 de abril de 2006 – 06A871 – e de 30 de maio de 2006 – 06A1440).
De qualquer modo, sempre irrelevaria pelas razões, o valor processual da causa, ao contrário do que pretende o reclamante estando outrossim, e no limite, em causa a sucumbência que é o valor da multa aplicada.
(...)»
Veio então o recorrente requerer aclaração deste acórdão e, ao mesmo tempo, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, admitido em despacho com data de 15 de julho de 2013.
Contudo, em face do disposto no artigo 76.º, n.º 3, da LTC, e porque o presente caso se enquadra na hipótese normativa delimitada pelo artigo 78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma, passa a decidir-se nos seguintes termos.
3. Sendo o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, necessário se mostra que se achem preenchidos um conjunto de pressupostos processuais. A par do esgotamento dos recursos ordinários tolerados pela decisão recorrida, exige-se que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma adequada, uma questão de constitucionalidade, questão essa que deverá incidir sobre normas jurídicas que hajam sido ratio decidendi daquela decisão.
Não é isso que sucede no caso vertente. Verifica-se, com efeito, que o entendimento normativo cuja constitucionalidade o recorrente manifestou, na reclamação para a conferência, pretender ver sindicada não foi ratio decidendi do acórdão do STJ, que, portanto, não o sufragou. Ao contrário do que resulta daquela reclamação, o tribunal recorrido não interpretou o artigo 754.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil, na versão anterior ao Decreto-lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, com o sentido de furtar ao recorrente, condenado em litigância de má-fé, o direito de recorrer da decisão condenatória. Com efeito, como resulta dos autos, o recorrente poderia ter beneficiado do duplo grau de jurisdição, recorrendo daquela decisão para o Tribunal da Relação do Porto, à semelhança do que fizeram os (ora) recorridos. Porém, não o tendo feito, viu tal condenação – à partida, recorrível - transitar em julgado, assim se explicando que o Supremo Tribunal de Justiça, por estar em causa um agravo na 2.ª instância, haja convocado aquele normativo.
Não tendo sido a norma que integra o objeto do presente curso aplicada com o sentido que lhe foi conferido pelo recorrente, há que concluir não estarem preenchidos os pressupostos processuais de que se acha dependente a admissibilidade dos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
4. Atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto do recurso.
(...)»
5. A reclamação apresentada não coloca minimamente em crise a decisão sumária proferida. Com efeito, o juízo de não conhecimento agora objeto de reclamação fundou-se no não preenchimento, pelo recurso de constitucionalidade interposto, dos pressupostos processuais inferidos a partir da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, mormente no facto de o entendimento normativo contestado pelo (ora) reclamante não ter sido ratio decidendi da decisão recorrida, a saber, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de junho de 2013. Tal entendimento, recorde-se, incide sobre o artigo 754.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil, na versão anterior ao Decreto-lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, quando interpretado no sentido de que nele se estabelece a irrecorribilidade da decisão condenatória em litigância de má-fé.
Argumenta o reclamante que, ao contrário do que se pode ler no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17 de setembro de 2012, a decisão condenatória relativa à litigância de má-fé ainda não havia transitado em julgado. A isto acresce que, no seu entender, o Tribunal Constitucional não deveria pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade suscitada nos autos até que fosse decidida a questão da ampliação do objeto do recurso interposto.
Tal arrazoado não vinga, visto que, em primeiro lugar, não cabe ao Tribunal Constitucional substituir-se ao tribunal recorrido na apreciação do trânsito em julgado da condenação em litigância de má-fé. Essa apreciação é um aspeto casuístico da decisão jurisdicional, cuja validade não integra o objeto de controlo, atentas as características do nosso modelo de justiça constitucional.
Depois, independentemente do que venha a ser decidido sobre a questão da ampliação do objeto do recurso, sempre será de confirmar o juízo de não conhecimento vertido na decisão sumária. Isto porque o que aí se disse resultou da circunstância de a questão de constitucionalidade identificada pelo (então) recorrente não coincidir com o entendimento normativo respaldado no acórdão recorrido. Na verdade, o STJ não extraiu dos normativos identificados a negação do direito a um “duplo grau de jurisdição” aquando de condenação em litigância de má-fé. Limitou-se, porém, a reiterar, à semelhança do que já havia feito o Tribunal da Relação do Porto, que a condenação imputada ao reclamante havia transitado em julgado, e que, em virtude disso, se tornara irrecorrível. Logo, a ausência de coincidência entre os segmentos normativos enunciados é determinante e irreversível, não podendo ser suprida por um eventual ganho de causa de que, no futuro, o reclamante venha a beneficiar.
Destarte, nada avançando a presente reclamação que permita obstar à conclusão já formulada na decisão sumária, cumpre confirmar o juízo de não conhecimento do objeto do recurso que aí foi proferido.
III. Decisão
6. Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação apresentada, e, por conseguinte, confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 17 de dezembro de 2013. – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.