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Processo n.º 562/13
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A., e é recorrida a Massa Insolvente de B. e C., a primeira interpôs recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
2. Pela Decisão Sumária n.º 502/2013, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão, na parte que agora releva, tem a seguinte fundamentação:
“(…)3. De acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Suscitação que há de ter ocorrido de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Ora, independentemente da falta de verificação de outros requisitos, relativamente à “norma” cuja apreciação é requerida pela recorrente, não pode dar-se como verificado o requisito objetivo de suscitação prévia nos presentes autos.
Para que o Tribunal Constitucional conheça de um pedido de fiscalização concreta da constitucionalidade é necessário que em fase anterior à do requerimento de recurso para este Tribunal, no decurso do processo, o recorrente tenha identificado expressamente a questão de inconstitucionalidade, de forma expressa, direta e clara de modo a criar para o tribunal a quo o dever de pronúncia sobre a matéria em causa. Como tem sido entendimento uniforme do Tribunal Constitucional, a identificação da inconstitucionalidade deve ser feita em termos de o Tribunal «a poder enunciar na decisão, de modo a que os respetivos destinatários e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa norma não pode ser aplicada em tal sentido» (cfr., entre muitos, o Acórdão n.º 367/94, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt).
4. Ora, a recorrente manifestamente não cumpriu este seu ónus. Nas suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Évora (o tribunal recorrido), a recorrente limitou-se a afirmar que «não seria justo admitir que o comerciante empresário em nome individual, que não constituiu sociedade nem limitou a sua responsabilidade por qualquer modo a determinados bens, tivesse que perder para a massa insolvente todos os seus bens pessoais, adquiridos antes do início da atividade empresarial que o levou à situação de insolvência, quando o ordenamento jurídico, em caso de insolvência de empresas constituídas e que giram sobre a forma de sociedades, permite a apreensão dos bens da sociedade mas não dos bens pessoais dos sócios, que não estão obviamente afetados à atividade empresarial da sociedade» (conclusão 20), concluindo que «a sentença recorrida faz desse modo errada interpretação das normas citadas do CIRE, à luz e tendo em conta o princípio da proporcionalidade com assento constitucional, sendo essa errada interpretação, por violação flagrante, injusto e desmedida desse princípio, inconstitucional» (conclusão 21) e «a decisão recorrida violou o princípio da proporcionalidade estabelecido na CRP e as disposições dos artigos 668.º, n.º 1, alínea d) do CPC, 236.º do Código civil, 150.º, n.º 5 do CIRE» (conclusão 23).
Conclui-se, assim, que na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Évora a recorrente não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa reportada às disposições legais a que faz referência no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade. E, ao não cumprir este seu ónus, não concedeu ao tribunal perante o qual a questão foi colocada a possibilidade de decidir sobre a inconstitucionalidade da norma supostamente em questão. Por força deste fundamento, é legalmente inadmissível conhecer do objeto do presente recurso mesmo que se considere o mesmo interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Termos em que, por falta de suscitação prévia adequada, não é possível conhecer do recurso.”
3. Da decisão sumária vem agora a recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, sustentando a reclamação essencialmente nos seguintes fundamentos:
“1º.
A decisão sumária que rejeitou a apreciação do objecto do recurso considerou que a recorrente não invocou expressamente a questão da inconstitucionalidade por ter concluído no seu requerimento de interposição de recurso da decisão da 1ª instância para o Tribunal da Relação que aquela Sentença faz errada interpretação das normas (dos artigos 120º, 121°, 123°, 126° e 150°) do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas à luz do princípio da proporcionalidade ínsito na CRP, violando desta forma este princípio.
2º.
Admitamos que poderá não ter sido a forma mais feliz mas que se entende que as identificadas normas violam o princípio da proporcionalidade com a interpretação que lhe foi dada pelo Juiz.
3º.
Na motivação de recurso foram sendo referidas as normas do CIRE cuja inconstitucionalidade está em causa, apenas, por lapso, não foram as mesmas expressamente repetidas nas conclusões 20, 21 e 23 apenas se tendo remetido para as mesmas com o adjectivo “citadas”.
4º.
Tal deficiente redacção não obsta todavia que um destinatário normal de um recurso, pessoa preparada, como é um Juiz ou conjunto de Juízes, entenda quais as normas do CIRE que são inconstitucionais, urna vez que ao referir “normas citadas” estas só podem ser as que foram sendo citadas/invocadas na motivação do recurso, motivação de que resulta que, dada a interpretação com que foram aplicadas, a decisão recorrida colocou em situação de desigualdade e sujeitou a tratamentos diferentes o património social e dos sócios, por um lado, e o património pessoal de uma pessoa singular afectado a uma actividade empresarial e aquele afectado à sua esfera de vida privada.
5º.
Não poderemos assim concluir, salvo o devido respeito, que a inconstitucionalidade não foi suscitada no decurso do processo nem que o Tribunal de Recurso, o Tribunal da Relação, não pôde enunciá-la na decisão.”
4. Notificada da reclamação, a recorrida não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. Como resulta do acima exposto, foi proferida decisão de não conhecimento do objeto do recurso com fundamento na falta de suscitação prévia e adequada da questão de constitucionalidade.
Para contrariar o decidido a reclamante, limita-se a sublinhar que ao longo da motivação do recurso interposto para o tribunal (aqui recorrido) “foram sendo referidas as normas do CIRE cuja inconstitucionalidade está em causa”, entendendo que, daquela forma, se mostra suficientemente cumprido o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, já que uma eventual “deficiente redacção [das conclusões do recurso] não obsta (…) que um destinatário normal de um recurso, pessoa preparada, como é um Juiz ou conjunto de Juízes, entenda quais as normas do CIRE que são inconstitucionais”.
6. De acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (ao abrigo da qual foi interposto o recurso), cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Suscitação que há de ter ocorrido de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Para que o Tribunal Constitucional conheça de um pedido de fiscalização concreta da constitucionalidade é, portanto, necessário que em fase anterior à do requerimento de recurso para este Tribunal, no decurso do processo, o recorrente tenha identificado expressamente a questão de inconstitucionalidade, de forma expressa, direta e clara de modo a criar para o Tribunal a quo o dever de pronúncia sobre a precisa norma em causa. Como tem sido entendimento uniforme do Tribunal Constitucional, a identificação da inconstitucionalidade deve ser feita em termos de o Tribunal «a poder enunciar na decisão, de modo a que os respetivos destinatários e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa norma não pode ser aplicada em tal sentido» (cfr., entre muitos, o Acórdão n.º 367/94, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt).
Acresce que «a configuração do ónus da suscitação procedimentalmente adequada como respeitante ao pressuposto “legitimidade” suporta a conclusão segundo a qual não se verificam os pressupostos do recurso tipificados na alínea b) quando – apesar da omissão ou da suscitação deficiente do interessado – o tribunal “ a quo” se aperceba da questão de constitucionalidade substancialmente em causa e a aborde, para a considerar improcedente (cfr., v.g., Acórdãos n.ºs 96/02 e 156/08)» (Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, p. 182, onde se indica ainda no mesmo sentido o Acórdão n.º 710/04).
7. Ora, a recorrente manifestamente não cumpriu o ónus de suscitação prévia adequada da questão de constitucionalidade que pretende ver sindicada pelo Tribunal Constitucional, como decorre do acima já exposto. Na verdade, e independentemente do teor das conclusões apresentadas no recurso para o Tribunal da Relação de Évora (o tribunal recorrido), certo é que naquele recurso a recorrente se limitou a impugnar a interpretação das normas do CIRE feita pela sentença recorrida, que classificou de “inconstitucional à luz do princípio da proporcionalidade com assento constitucional”.
Desta forma, não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, incumprindo o ónus da suscitação prévia e de forma adequada de uma questão de constitucionalidade.
Com efeito, impõe-se confirmar a decisão de não conhecimento do recurso.
III. Decisão
8. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 25 de novembro de 2013.- Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes – Maria Lúcia Amaral.