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Processo n.º 1142/13
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é reclamante A. e reclamado o Ministério Público, o primeiro reclamou, ao abrigo do disposto no artigo 76.º, n.º 4, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante LTC, do despacho daquele tribunal que, em 18 de setembro de 2013, não admitiu recurso para o Tribunal Constitucional.
2. Resulta da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) em 17 de janeiro de 2013, certificada nos autos, que o aqui reclamante foi condenado, em primeira instância, pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 10 anos de prisão.
Desta decisão recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 3 de novembro de 2011, negou provimento ao recurso.
Novamente inconformado, recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 27 de junho de 2012, decidiu anular a decisão da Relação, determinando o cumprimento do disposto no artigo 417.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
Após suprimento da nulidade, a Relação de Lisboa, por acórdão de 21 de fevereiro de 2013, concedeu parcial provimento ao recurso, reduzindo a pena para oito anos de prisão, mantendo, no mais, a decisão de primeira instância.
Desse acórdão foi mais uma vez interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que, em 10 de julho de 2013, o rejeitou, por inadmissibilidade.
Apresentado recurso para o Tribunal Constitucional, como este não foi admitido, o recorrente reclama agora dessa decisão para este mesmo Tribunal.
3. É o seguinte o teor do despacho reclamado:
“O arguido A., notificado do acórdão deste Supremo Tribunal de fls. 5041 e ss, que rejeitou o recurso que interpusera do acórdão da Relação de Lisboa, que confirmou a condenação pelo crime de tráfico de estupefacientes proferida em 1ª instância, reduzindo a pena para 8 anos de prisão, vem reagir, apresentando dois requerimentos: uma “reclamação” para este Supremo Tribunal (fls. 5059-5061); e um recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 5063- 5065).
Quanto à “reclamação”, é manifesto que ela não tem cabimento legal. Na verdade, só há reclamação, para a conferência, das decisões proferidas em decisão sumária (art. 417º, nº 8, do CPP), o que não é o caso da decisão ora “reclamada”, que constitui um acórdão, proferido em conferência.
Indefere-se, pois, o requerimento de fls. 5059-5061, por falta de base legal.
Vai o requerente condenado em 2 UC de taxa de justiça.
Quanto ao recurso para o Tribunal Constitucional, interposto ao abrigo do art. 70º, nºs 1 e 2, b), da LTC, há que ter em conta os requisitos legais que são: existência de um objeto normativo; esgotamento dos recursos ordinários; suscitação prévia da questão da questão da inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido; aplicação da norma como “ratio decidendi” da decisão recorrida.
No caso, o recorrente pretende que seja analisada a constitucionalidade da interpretação dada ao art. 127º do CPP no acórdão da 1ª instância, confirmado pela Relação.
Contudo, tal matéria não foi tratada no acórdão recorrido, que analisou exclusivamente a questão da admissibilidade do recurso do acórdão da Relação para este Supremo Tribunal.
Sendo assim, o recurso interposto não cumpre os requisitos de admissibilidade acima enunciados.
Não admito, pois, o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.”
4. Os reclamantes sustentam a reclamação nos seguintes fundamentos:
“A., recorrente no processo à margem referenciado, vem, ao abrigo do disposto no art. 76.º n.º 4 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redação dada pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, e pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro,
RECLAMAR
Do despacho proferido pelo Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator a quo que não admitiu o recurso dirigido ao Tribunal Constitucional, o que faz nos seguintes termos:
Tempestivamente o ora reclamante interpôs recurso do douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de Lisboa para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redação dada pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, e pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro.
Invocou para o efeito a inconstitucionalidade da interpretação das normas que contemplam o princípio da livre apreciação da prova, designada e concretamente a interpretação com que foi aplicado o artigo 127.º do C.P.P., na decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância e confirmada em sede de Decisão proferida pelo Tribunal da Relação.
Considerando que o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal de 1ª Instancia, confirmado pelo Tribunal Superior, ao decidir como decide, fazendo uma apreciação da prova fundada, no entender do recorrente, exclusivamente na sua livre convicção, ultrapassa todos os limites da livre convicção da prova fazendo uma interpretação extensiva da norma que viola os mais fundamentais direitos do arguido, constitucionalmente consagrados, designadamente o disposto no art.º 32º do C.R.P.
Consequentemente, aquela decisão faz uma interpretação inconstitucional da norma, o que o Recorrente suscitou desde o recurso para o Tribunal da Relação e ora se reitera.
A fixação dos factos em que assenta a convicção do Tribunal, julgador, para condenar uma pessoa não se basta, felizmente num Estado de Direito Democrático com os nossos Princípios Constitucionais, com uma espécie fugaz de pequena certeza como a evidenciada no douto Acórdão do Tribunal “a quo”
A condenação depende da certeza da culpabilidade do arguido, essa certeza, vinca-se, assenta e sustenta-se numa convicção profunda, objetivada pela prova, dos julgadores.
Ora, o princípio da livre convicção da prova, não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável — e portanto, arbitrária — da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente essa discricionariedade os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de prosseguir a chamada “verdade material”-, de sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e controlo - cfr. Figueiredo Dias, Ob. Cit., pp. 202-203.
Não obstante o supra alegado, entendeu o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator a quo não admitir o recurso, considerando que tal matéria não foi tratada no acórdão recorrido e que o recurso ora interposto não cumpre os requisitos de admissibilidade do disposto no artigo 70.º, n.ºs 1 e 2, al. b) da L.T.C., que são: existência de um objeto normativo; esgotamento dos recursos ordinários; suscitação prévia da questão da inconstitucionalidade perante o tribunal prante o tribunal recorrido; aplicação da norma como “ratio decidendi” da decisão recorrida.
Ora, salvo o devido respeito, que é imenso, não concordamos com tal decisão.
O recorrente no seu requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional cumpriu, em seu entender com todos os requisitos legais estabelecidos na norma supra mencionada.
É certo que não mencionou/requereu expressamente a remessa dos autos ao Tribunal da Relação. Contudo, daquele requerimento decorre esse facto implicitamente, já que ali se refere ser sua intenção ver analisada e apreciada a inconstitucionalidade da interpretação das normas que contemplam o princípio da livre apreciação da prova, na decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instancia e confirmada em sede de decisão proferida pelo Tribunal da Relação.
Parece-nos claro daquele requerimento de recurso que a competência para apreciar da admissibilidade ou não do mesmo cabe ao Tribunal da Relação e não ao Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que efetivamente neste último não foi posta à apreciação aquela matéria, sendo no entanto nesse Tribunal que aquele requerimento teria que dar entrada (acs.363/89, 268/94, 3/96).
O não se requerer expressamente a remessa dos autos ao Tribunal da Relação foi, conforme supra, mero lapso que consideramos suprível, tanto mais que de acordo com o disposto no artigo 75º-A, n.º 5, da L.T.C., o juiz deverá convidar o requerente a suprir a falta de alguns dos requisitos legais no prazo de dez dias.
Tendo em consideração, assim, a menção implícita de que, no caso sub judice, o Tribunal competente sempre poderia aquele Supremo ter desde logo remetido os autos ao Tribunal da Relação ou fazer uso daquele normativo legal mandando convidar o recorrente a corrigir a falta daquele requisito, isto é, o requerer-se expressamente a remessa dos autos ao Tribunal recorrido.
Acresce que, se o citado n.º 5 do artigo 75.º-A do LTC permite suprir a ausência da indicação de qualquer dos requisitos fundamentais de interposição do recurso previstos nos n.ºs 1 a 3 do normativo supra referido, certamente que o legislador visou abarcar o suprimento de um lapso meramente formal: requerer expressamente a remessa dos autos ao Tribunal da Relação.
Ao não ter agido nos termos supra invocados coartou-se o direito fundamental do recorrido - o da defesa.”
5. O Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
6. Após notificação da decisão do Supremo Tribunal de Justiça que, em 10 de julho de 2013, rejeitou o recurso interposto do acórdão da Relação de Lisboa, o aqui reclamante «(…) não se conformando com a douta decisão que lhe foi notificada (…)», apresentou no Supremo Tribunal de Justiça requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional que dirigiu aos Conselheiros daquele tribunal.
7. O despacho reclamado entendeu que, respeitando a questão de constitucionalidade colocada à interpretação dada ao artigo 127.º do Código de Processo Penal no acórdão de 1.ª Instância, confirmada pela Relação, matéria que não foi analisada no acórdão recorrido (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, o qual apreciou exclusivamente a questão da admissibilidade do recurso do acórdão da Relação), não se mostram cumpridos os requisitos de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional. Em conformidade, não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional.
8. Da análise do despacho recorrido resulta evidente que o mesmo apenas fez aplicação de normas do Código de Processo Penal referentes à admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
9. Pretende o reclamante que a decisão de que recorre não é o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu o recurso interposto do Tribunal da Relação, mas sim o próprio acórdão proferido por este último tribunal, o que resulta implícito do teor do requerimento de recurso que apresentou.
10. Os recursos interpõem-se por meio de requerimento dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida (artigo 637.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69.º da LTC).
No caso, o requerimento de recurso foi apresentado no Supremo Tribunal de Justiça e dirigido a este tribunal. E surge na sequência da notificação da decisão daquele tribunal que não admitiu o recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação. Acresce que o próprio reclamante reconhece, na reclamação apresentada, que “interpôs recurso do douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de Lisboa para o Tribunal Constitucional”. Manifesto é que a presente reclamação se apresenta como desprovida de fundamento.
Termos em que se impõe indeferir a presente reclamação.
III - Decisão
11. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 9 de janeiro de 2014. – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes – Maria Lúcia Amaral.