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Processo n.º 186/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. e B. interpuseram no Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel recurso, ao abrigo do disposto nos artigos 89.ºA, n.º 7, da Lei Geral Tributária (LGT), e 146.º-B, n.º 2, do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), da decisão do Diretor de Finanças do Porto que procedeu à fixação do seu rendimento coletável em IRS, nos termos da tabela constante do n.º 4 do artigo 89.ºA da LGT, relativamente a cada um dos anos de 2008, 2009 e 2010.
Por sentença proferida em 3 de janeiro de 2013, foi dado provimento ao recurso e revogada a decisão recorrida, tomando como alicerce os seguintes fundamentos:
«(…) [N]o caso em apreço foi ao abrigo do estatuído no n. 4 do artigo 89º-A da LGT que o Recorrido procedeu à fixação de rendimento tributável no montante de 51.800,00€ para os anos de 2008, 2009 e 2010.
Assim, porque releva para a apreciação da presente lide importa enquadrar a noção de “manifestações de fortuna” de que aqui tratamos.
As manifestações de fortuna são os sinais exteriores de riqueza, como tal tipificados no citado artigo 89º A da LGT. Constituem comportamentos do sujeito passivo relevados pela lei como exteriorizadores de determinados rendimentos/capacidade contributiva, os quais, se não forem declarados pelo contribuinte, ou declarados em montante inferior ao que resulta dos indicadores eleitos pelo legislador, são por este presumidos como obtidos e não declarados. Nesta conformidade, são, assim, enquadrados na categoria G respeitante a acréscimo patrimoniais não justificados.
Em suma, a manifestação de fortuna reconduz-se à dedução de um facto desconhecido – o rendimento – a partir de um facto conhecido/manifestado e, justifica-se, como medida de prevenção e combate à evasão fiscal, sendo determinado por princípios de justiça e igualdade fiscal.
Posto isto, impõe-se, agora, atentar no que seja o princípio da capacidade contributiva.
Este princípio encontra-se consagrado no artigo 4º n. 1 da LGT que prevê “Os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património.”
Em suma, e nas palavras de Diogo Leite Campos e Mónica Horta Neves Leite Campos, a capacidade contributiva é “(...) um fenómeno jurídico-económico, sendo medida pela riqueza, pelo rendimento ou pela despesa do sujeito. (...) É a idoneidade económica para suportar o ónus do tributo.” Afirmam ainda, que “(...) Para que se atinja esta realidade, haverá que fixar métodos de determinação da matéria colectável que permitam atingi-la. Não a escamoteando ou substituindo por outra. Se não houver procedimentos adequados a atingir a realidade indicada, estaremos perante normas inconstitucionais – por violarem os princípios da capacidade contributiva, da matéria colectável e da igualdade – in Direito tributário, 2ª ed., pág. 127 a 129.
Adicionalmente, do vocábulo “essencialmente” que vem enunciado naquele normativo retira-se que a capacidade contributiva é, não só, o ponto de partida para a tributação, como também a medida que lhe está sempre subjacente. Pode, certamente, ser coadjuvada por outros princípios, mas o princípio da capacidade contributiva deverá estar sempre presente. Neste sentido, refira-se, que julga o Tribunal serem os indicadores constantes do preceituado no artigo 89º A n. 4 compatíveis com o princípio da capacidade contributiva, todavia, apenas na medida em que aqueles constituam uma aproximação à tributação real, ou seja, na medida em que indiciem, fundadamente, uma realidade tributária.
Por fim, atentemos no que sobre este princípio, afirmou o Tribunal Constitucional, ainda que no âmbito de matéria diversa daquela que aqui tratamos:
“Conforme refere Casalta Nabais, o princípio da igualdade fiscal tem ínsita sobretudo «a ideia de generalidade ou universalidade, nos termos da qual todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, a exigir que semelhante dever seja aferido por um mesmo critério – o critério da capacidade contributiva. Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)» (Direito Fiscal, 5º edição, Coimbra, 2009, pp. 151-152).
Configurando-se o princípio geral da igualdade como uma igualdade material, o princípio da capacidade contributiva – segundo o mesmo autor - enquanto tertium comparationis da igualdade no domínio dos impostos, não carece dum específico e directo preceito constitucional. O seu fundamento constitucional é o princípio da igualdade articulado com os demais princípios e preceitos da respectiva constituição fiscal e, em especial, aqueles que decorrem já dos princípios estruturantes do sistema fiscal que constam dos artigos 103.º e 104.º da Constituição (ob. cit., p. 152; explicitando este ponto de vista, Rogério Fernandes Ferreira/Sérgio Vasques, A tributação das gratificações em sede de IRS: a propósito do acórdão n.º 497/97, do Tribunal Constitucional, in «Estudos jurídicos e económicos em homenagem ao Professor João Lumbrales», Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2000, pp. 976-978).
Como pressuposto e critério da tributação, o princípio da capacidade contributiva – dentro da mesma linha de entendimento - «afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que na selecção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objecto e matéria colectável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respectivo imposto» (ob. cit., p. 154; sobre a capacidade contributiva como critério constitucionalmente adequado à repartição dos impostos, Sérgio Vasques, O Princípio da Equivalência como Critério da Igualdade Tributária, Coimbra, 2008, pp. 52 & segs.).
Em todo o caso, o direito dos impostos está particularmente condicionado pelo princípio da praticabilidade, que conduz à exclusão não só das soluções impossíveis de levar à prática mas também das soluções economicamente insustentáveis.
É isso que o mesmo autor esclarece, a propósito do princípio da igualdade fiscal.
“Especificamente, o princípio da igualdade fiscal tem de actuar no contexto dum direito fiscal que, para ser exequível e praticável, reclama com veemência a sua simplificação a conseguir sobretudo através do recurso à tipificação ou estandardização (quantitativa ou qualitativa) das leis fiscais. Um recurso relativamente ao qual o legislador não é, porém, totalmente livre, já que, para além de ter de respeitar o princípio da proibição do excesso ao lançar mão desse instrumento de simplificação, há-de socorrer-se de tipificações objectivamente assentes em efectivas situações típicas e admitir que a administração fiscal possa socorrer-se de ‘medidas equitativas’, dispensando-a assim de observar as tipificações legais naquelas situações em que o seu respeito conduza a intoleráveis iniquidades.”
Também o Tribunal Constitucional, mais recentemente, tem analisado o princípio da igualdade fiscal sob o prisma da capacidade contributiva, como se pode constatar designadamente no Acórdão n.º 142/04 (que reproduziu em parte o que já se afirmara no Acórdão n.º 452/03), onde se consigna que «[o] princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de uniformidade – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação», entendendo-se esse critério como sendo aquele em que «a incidência e a repartição dos impostos – dos impostos fiscais mais precisamente – se deverá fazer segundo a capacidade económica ou capacidade de gastar de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício)».
O reconhecimento do princípio da capacidade contributiva como critério destinado a aferir da inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adoptadas pelo legislador fiscal, tem conduzido também à ideia, expressa por exemplo no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97, de que a tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará «a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado para objecto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objecto do mesmo».
Por outro lado, o Tribunal tem também considerado que o princípio da capacidade contributiva tem de ser compatibilizado com outros princípios com dignidade constitucional, como o princípio do Estado Social, a liberdade de conformação do legislador, e certas exigências de praticabilidade e cognoscibilidade do facto tributário, indispensáveis também para o cumprimento das finalidades do sistema fiscal (o citado Acórdão n.º 142/04).
O Tribunal Constitucional tem vindo, portanto, a afastar-se de um controlo meramente negativo da igualdade tributária, passando a adoptar o princípio da capacidade contributiva como critério adequado à repartição dos impostos; mas não deixa de aceitar a proibição do arbítrio como um elemento adjuvante na verificação da validade constitucional das soluções normativas de âmbito fiscal, mormente quando estas sejam ditadas por considerações de política legislativa relacionada com a racionalização do sistema.
Em suma, o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem excepção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional (cfr. Rogério Fernandes Ferreira/Sérgio Vasques, ob. cit., p. 974 (...) – vd. Acórdão n.º 306/2010).
Do que se deixa transcrito, retira o Tribunal, além do mais, que, não obstante, o princípio da capacidade contributiva se encontrar plasmado apenas na Lei Geral Tributária, a verdade é que o mesmo decorre dos princípios constitucionais da generalidade, igualdade e justiça, daí, provindo a sua prevalência face às normas legais que o violem.
Desta feita, exposto este enquadramento legal, doutrinário e jurisprudencial, revela-se, desde já, ser entendimento deste Tribunal que a aplicação do artigo 89ºA n. 2 alínea a) conjugado com n. 4 do mesmo preceito, quando interpretado no sentido de que a manifestação de fortuna evidenciada num ano permite a aplicação do rendimento padrão apurado aos três anos posteriores, é violadora do principio da capacidade contributiva.
Não ignora o Tribunal, é certo, que o artigo 89ºA n. 4 da LGT foi alterado no sentido de, expressamente, permitir a correcção do rendimento nos três anos posteriores à manifestação de fortuna evidenciada. No entanto, ainda assim e, à luz do princípio da capacidade contributiva, como bem sustentam os Recorrentes em argumentação que o Tribunal acolhe inteiramente, tal redacção tem-se por violadora em primeira linha do princípio da capacidade contributiva plasmado no artigo 4º da LGT, mas primacialmente, por violadora daquele mesmo princípio, enquanto princípio constitucional que, directamente, dimana dos princípios da generalidade, igualdade e da justiça.
Com efeito, como bem alegam os Recorrentes não é pelo facto de terem evidenciado uma manifestação de fortuna no ano de 2007 - pela qual foi devidamente corrigido o seu rendimento e foram devidamente tributados -, que se pode presumir que nos três anos posteriores tenham obtido o mesmo tipo/ montante de rendimentos.
Ora, se o mecanismo das manifestações de fortuna assenta na circunstância de a partir de um facto conhecido – a fortuna manifestada – se deduzir um outro desconhecido - o rendimento -, neste caso, com o entendimento propugnado pelo legislador e aqui pelo Recorrido, estar-se-ia a retirar consequências múltiplas de um só facto. Ou seja, de um facto aquisitivo ocorrido num único ano - na situação em apreço a aquisição de bens imóveis no valor global de 259.000,00€, no ano de 2007 -, vem o Recorrido retirar o rendimento padrão não só para o ano da aquisição, como também para os três anos seguintes, quando, saliente-se, nesses três anos posteriores não existiu qualquer manifestação de fortuna.
Na verdade, como bem dizem os Recorrentes, se o contribuinte se lança a despesas com a aquisição de um imóvel num determinado ano assim evidenciando fortuna, a conclusão lógica que se impõe é que, se nos anos posteriores não assumiu despesas semelhantes é porque não auferiu rendimentos para tal.
E, sendo assim, julga o Tribunal que não é meio adequado para a determinação de rendimentos a transposição para anos posteriores de rendimentos obtidos em anos anteriores.
Fica, porém, uma breve nota para referir que não colhe a argumentação exposta pelo Recorrido no sentido de que os Recorrentes não lograram, ou sequer, tentaram justificar a manifestação de fortuna evidenciada, quanto ao ano de 2007, agora limitando-se, em sua defesa, a inovar a inconstitucionalidade do regime jurídico que se encontra consolidado (cfr. artigos 44º e 45º da contestação).
Pois bem, julga o Tribunal que tal ausência de justificação quanto ao acréscimo patrimonial verificado em 2007 não contende com a decisão que aqui se encontra em recurso.
É que, os Recorrentes não contestam a correcção ao rendimento tributável feita com base no apuramento do rendimento padrão para o ano de 2007, mas, tão-só, que esse apuramento se possa aplicar aos três anos posteriores sob pena de violação do princípio da capacidade contributiva. Por este motivo, não colhe a alegação do Recorrido ali plasmada.
Destarte, considerando o supra expendido conclui o Tribunal que o princípio da capacidade contributiva afasta a aplicação das normas legais que o violem, in casu, do disposto no artigo 89º n. 2 alínea a) conjugado com o disposto no n. 4 do mesmo preceito, quando interpretado no sentido de permitir a consideração como rendimento tributável em IRS, o rendimento padrão apurado no ano da manifestação de fortuna, nos três anos posteriores aquela, considerando-se prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.
Em suma, julga-se assim inválido o acto de fìxação de valores patrimoniais aos AA. para os anos de 2008, 2009 e 2010, objecto do presente recurso.»
2. O Ministério Público, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 3 e 75.º, n.º 1 da Lei 28/82, de 15 de novembro (LTC), interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, dizendo que: “na interpretação do recorrente [a sentença proferida] recusou a aplicação das normas contidas nos n.º 2, al. a) e n.º 4 do art. 89.ºA da LGT, aprovada pelo DL 398/99 de 17/12, por violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, consagrados nos n.ºs 1 e 2 do art. 13.º da CRP, na interpretação de que a manifestação de fortuna apresentada pelo contribuinte permite à AT a correcção do rendimento, para efeito de IRS, nesse ano e nos três anos seguintes”.
3. O recurso foi admitido.
4. Neste Tribunal, determinado o prosseguimento do processo, veio o Ministério Público apresentar alegações, que rematou conclusivamente nos seguintes termos:
«1. Segundo o n.º 1 do artigo 89.º-A da LGT, há lugar à avaliação indirecta de matéria colectável quando o rendimento líquido declarado mostre uma desproporção superior a 50%, para menos, em relação ao rendimento padrão resultante da tabela prevista no n.º4.
2. Segundo a tabela, tendo sido adquiridos imóveis de valor igual ou superior a 250.000€, o rendimento padrão corresponde a 20% do valor de aquisição.
3. Ao contribuinte é concedida a oportunidade para ilidir aquela presunção, reafirmando a veracidade da declaração de rendimentos apresentada, informando e fazendo prova de que é outra a fonte do acréscimo de património (n.º 3 do artigo 89.º-A).
4. Mostrando-se a presunção razoável para o ano da aquisição e para os três anos seguintes e como ónus que impende sobre o contribuinte para ilidi-la não se reveste de grandes dificuldades no seu cumprimento, não se vislumbra a violação de qualquer princípio constitucional.
5. Assim, integrada neste regime, a norma do artigo 89.ºA, n.º 2, alínea a), conjugada com n.º4 do mesmo preceito, da Lei Geral Tributária, quando interpretada no sentido de que a manifestação de fortuna evidenciada num ano permite a aplicação do rendimento padrão apurado aos três anos posteriores, não viola o princípio de igualdade conexionado com o de capacidade contributiva (artigo 13.º, n.º 1 e 104.º, n.º 1, da Constituição), não sendo, por isso, inconstitucional.
6. Termos em que deve conceder-se provimento ao recurso.»
5. Determinada a notificação da Administração Tributária (AT), veio esta apresentar contra-alegações, com as seguintes conclusões:
«A. No caso em apreço na sentença recorrida do douto Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel foi dado como provado que no ano de 2007 os contribuintes A. e mulher B. adquiriram dois prédios urbanos e um rústico por escritura de compra e venda de 10.17.2007 no valor global de 259.000,00 € (duzentos e cinquenta e nove mil euros).
B. Sendo que, para efeitos de tributação em IRS, foi declarado em 2007, o rendimento global de 18.952,00 € (dezoito mil, novecentos e cinquenta e dois euros).
C. A aquisição de bens patrimoniais são de per si uma evidência da capacidade contributiva do contribuinte para a realização de despesas na ordem de grandeza evidenciada, capacidade essa que não está harmonizada com os rendimentos declarados pelo mesmo na declaração a que está sujeito para efeitos de apuramento do imposto devido.
D. Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 89º-A da Lei Geral Tributária, competia aos sujeitos passivos a prova de que os rendimentos por eles declarados correspondem à realidade ou que os acréscimos de património ou de despesa exibidos provêm de fonte não sujeita a tributação em Portugal ou não sujeita a declaração.
E. Notificados para se pronunciarem sobre a origem ou proveniência da verba aplicada na aquisição dos referidos imóveis os mesmos não vieram apresentar qualquer justificação quanto à origem ou proveniência do montante que utilizaram para a compra dos referidos imóveis.
F. Ou seja, no caso em concreto os sujeitos passivo prescindiram de justificar, não só, a providência dos montantes utilizados na aquisição dos imóveis, bem como, que os referidos montantes não estão sujeitos a tributação, renunciando ao direito que a lei lhes confere de elidirem a presunção legal.
G. A ausência desta prova justifica a sujeição a tributação indireta nos termos que constam do ato controvertido em primeira instância.
H. Não ficando demonstrada a origem da verba aplicada na manifestação de fortuna evidenciada na aquisição dos referidos imóveis, verificaram-se preenchidos os pressupostos legais para o recurso ao procedimento de avaliação indireta da matéria tributável e fixado o rendimento tributável nos três anos posteriores, nos termos do n.º 4 do art.º 89.-A da LGT.
I. A fixação do rendimento coletável prevista no n.º 4 do art.º 89.º-A da LGT nos três anos posteriores não constitui uma tributação autónoma mas antes resulta da tributação da manifestação de fortuna evidenciada num determinado ano.
J. A presunção iuris tantum de rendimento que a lei estabelece no n.º 4 do art.º 89.º-A da LGT é motivada pela preocupação de fazer um escalonamento do rendimento que originou o acréscimo patrimonial num período de três anos, ao invés de tributar o acréscimo patrimonial verificado todo de uma só vez e num único ano.
K. Não obstante, salienta-se que a fixação do rendimento por métodos indiretos resulta da omissão do contribuinte em apresentar elementos que justifiquem a fonte da fortuna evidenciada e não da aplicação de qualquer dispositivo legal que não tenha em consideração a situação em concreta de cada sujeito passivo em particular.
L. E porque assim, só estaríamos perante uma situação de violação do princípio da capacidade contributiva, caso o legislador fiscal estabelecesse uma presunção juris et de jure vedando por completo aos contribuintes a possibilidade de contrariarem o facto presumido, que não se verifica.
M. Não há, pois, motivo para considerar, contrariamente ao que sustenta a decisão recorrida, que a norma em causa viola o princípio da capacidade tributária.
N. Pelo que improcede o entendimento veiculado na sentença recorrida que o disposto na alínea a) do n.º 2 conjugado com o disposto no n.º 4 do art.º 89.º-A da LGT viola o princípio da capacidade contributiva quando interpretado no sentido de permitir a consideração com rendimento tributável em IRS o rendimento apurado no ano da manifestação de fortuna e nos três anos posteriores.
O. Nestes termos, o despacho do Diretor de Finanças do Porto, que fixou aos contribuintes rendimento tributável em IRS relativo ao ano 2008, 2009 e 2010 nos termos do n.º 4 do art. 89.º-A da LGT, não padece de qualquer vício de violação de lei ou qualquer outro.
Nestes termos e nos mais de Direito que mui doutamente este Tribunal Constitucional suprirá, deve o presente Recurso ser considerado procedente, por não se verificarem as alegadas inconstitucionalidades.»
II. Fundamentação
6. Vem o Ministério Público, através da via de recurso concretizada na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, e em prossecução do dever estabelecido no n.º 3 do artigo 72.º do mesmo diploma, submeter à apreciação deste Tribunal segmento normativo extraído dos n.ºs 2, alínea a) e 4 do artigo 89.ºA da LGT, com o sentido de que a aquisição de imóveis que constitua manifestação de fortuna permite à AT a correção do rendimento do(s) sujeito(s) passivo(s) adquirente(s), em sede de IRS, no ano em que tenha lugar e nos três anos seguintes, cuja aplicação considera ter sido recusada, com fundamento em inconstitucionalidade. Como parâmetros constitucionais violados apontam-se os princípios da igualdade e da capacidade tributária.
Verifica-se dos autos que o Tribunal a quo defrontou argumentação dos recorrentes que, sem colocarem em crise a correção de rendimento no ano da aquisição dos imóveis - liquidação adicional que não impugnaram judicialmente -, discordaram da aplicação de idêntica correção em cada um três anos seguintes, com fundamento em que tal manifestação de fortuna não era idónea a constituir indicador de capacidade contributiva em anos posteriores ao da sua ocorrência.
Tais razões encontraram acolhimento expresso na decisão recorrida, na qual, pese seja equacionado o disposto no artigo 4.º da LGT - em que se acolhe no ordenamento tributário ordinário o princípio da capacidade contributiva -, o Tribunal a quo toma como fator decisório “primacial” para afastar a aplicação ao caso do disposto no artigo 89.º, n.º 2, alínea a), da LGT, conjugado com o n.º 4 do mesmo preceito, “quando interpretado no sentido de permitir a consideração como rendimento tributável em IRS, o rendimento padrão apurado no ano da manifestação de fortuna, nos três anos posteriores àquela”, a sua desconformidade com a Constituição, mormente com os princípios constitucionais da igualdade e da capacidade contributiva.
Não sofre, então, dúvidas que o Tribunal a quo assentou a sua ratio decidendi na recursa de aplicação do sentido normativo indicado pelo Ministério Público, alojado no apontado preceito da LGT, em termos de proporcionar o respetivo controlo por este Tribunal no âmbito do recurso previsto pela alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Haverá, no entanto, que considerar que a decisão recorrida ponderou a redação do n.º 4 do artigo 89.ºA da LGT conferida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, e não as posteriores, referidas no requerimento de interposição de recurso, decorrentes das leis n.º 55-A/2010, de 29 de outubro, e n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
Posto isto, assente a identidade entre a questão colocada e a normação cuja aplicação foi recusada com fundamento em inconstitucional, passemos a apreciar o mérito do recurso.
7. O artigo 89.ºA, da LGT, na redação conferida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, apresenta a seguinte conformação:
Artigo 89.ºA
(Manifestações de fortuna e outros acréscimos patrimoniais não justificados)
1 - Há lugar a avaliação indirecta da matéria colectável quando falte a declaração de rendimentos e o contribuinte evidencie as manifestações de fortuna constantes da tabela prevista no n.º 4 ou quando o rendimento líquido declarado mostre uma desproporção superior a 50%, para menos, em relação ao rendimento padrão resultante da referida tabela.
2 - Na aplicação da tabela prevista no n.º 4 tomam-se em consideração:
a) Os bens adquiridos no ano em causa ou nos três anos anteriores pelo sujeito passivo ou qualquer elemento do respectivo agregado familiar;
b) Os bens de que frua no ano em causa o sujeito passivo ou qualquer elemento do respectivo agregado familiar, adquiridos, nesse ano ou nos três anos anteriores, por sociedade na qual detenham, directa ou indirectamente, participação maioritária, ou por entidade sediada em território de fiscalidade privilegiada ou cujo regime não permita identificar o titular respectivo;
c) Os suprimentos e empréstimos efectuados pelo sócio à sociedade, no ano em causa, ou por qualquer elemento do seu agregado familiar.
3 - Verificadas as situações previstas no n.º 1 deste artigo, bem como na alínea f) do artigo 87.º, cabe ao sujeito passivo a comprovação de que correspondem à realidade os rendimentos declarados e de que é outra a fonte das manifestações de fortuna ou o acréscimo de património ou o consumo evidenciados.
4 - Quando o sujeito passivo não faça a prova referida no número anterior relativamente às situações previstas no n.º 1 deste artigo, considera-se como rendimento tributável em sede de IRS, a enquadrar na categoria G, no ano em causa, e no caso das alíneas a) e b) do n.º 2, nos três anos seguintes, quando não existam indícios fundados, de acordo com os critérios previstos no artigo 90.º, que permitam à administração tributária fixar rendimento superior, o rendimento padrão apurado nos termos da tabela seguinte:
Manifestações de fortuna
Rendimento padrão
1 – Imóveis de valor de aquisição igual ou superior a €250 000.
20% do valor de aquisição.
2 – Automóveis ligeiros de passageiros de valor igual ou superior a €50 000 e motociclos de valor igual ou superior a €10 000.
50% do valor no ano de matrícula, com o abatimento de 20% por cada um dos anos seguintes.
3 – Barcos de recreio de valor igual ou superior a €25 000.
Valor no ano do registo, com o abatimento de 20% por cada um dos anos seguintes.
4 – Aeronaves de turismo.
Valor no ano do registo, com o abatimento de 20% por cada um dos anos seguintes.
5 – Suprimentos e empréstimos feitos no ano de valor igual ou superior a € 50 000.
50% do valor anual.
5 - No caso da alínea f) do artigo 87.º, considera-se como rendimento tributável em sede de IRS, a enquadrar na categoria G, quando não existam indícios fundados, de acordo com os critérios previstos no artigo 90.º, que permitam à administração tributária fixar rendimento superior, a diferença entre o acréscimo de património ou o consumo evidenciados e os rendimentos declarados pelo sujeito passivo no mesmo período de tributação.
6 - A decisão de avaliação da matéria colectável pelo método indirecto constante deste artigo é da competência do director de finanças da área do domicílio fiscal do sujeito passivo, sem faculdade de delegação.
7 - Da decisão de avaliação da matéria colectável pelo método indirecto constante deste artigo cabe recurso para o tribunal tributário, com efeito suspensivo, a tramitar como processo urgente, não sendo aplicável o procedimento constante dos artigos 91.º e seguintes.
8 - Ao recurso referido no número anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, a tramitação prevista no artigo 146.º-B do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
9 - Para a aplicação dos n.ºs 3 a 4 da tabela, atende-se ao valor médio de mercado, considerando, sempre que exista, o indicado pelas associações dos sectores em causa.
8. A primeira consagração da tributação do rendimento através de métodos indiretos, fundados na exteriorização de atos evidenciadores de riqueza, encontra-se no Código do Imposto Complementar (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 45399, de 30 de novembro de 1963), através do seu artigo 15.º-A, (aditado pelo Decreto-Lei n.º 192/84, de 11 de junho), com o objetivo, declarado no respetivo preâmbulo, de “obviar a eventuais desvios da tributação das pessoas singulares”.
Nesse artigo 15.º-A, era havido como rendimento, para efeitos de tributação em sede de imposto complementar, o montante correspondente à desproporção entre o rendimento declarado, ou que o devia ter sido, e o montante dos valores atribuídos aos sinais exteriores de riqueza constantes de tabela anexa, desde que estes valores excedessem, pelo menos, em um terço a soma dos rendimentos declarados no ano a que respeitasse a declaração e, igualmente, no ano anterior. A tabela anexa para que remeteu esse preceito integrou bens imóveis, adquiridos como primeira ou segunda habitação, veículo automóveis, motociclos, barcos e aeronaves.
Ao sujeito tributário assistia a faculdade de solicitar, por requerimento fundamentado, ao Ministro das Finanças e do Plano, o afastamento da tributação acrescida em caso de “injustiça grave ou notória na determinação do rendimento” (artigo 15.º-C do Código do Imposto Complementar). Porém, como apontam Sérgio Vasques e Carlos Lobo, esse processo de revisão dirigia-se aos casos de incorreta operação das presunções legais, e não à sua ilisão, apresentando “o complexo de presunções constante do artigo 15.ºA natureza legal e absoluta” (A Tributação por Presunções, Fisco n.º 72/73, págs. 115 a 118).
Com a reforma fiscal de 1989, o Código do Imposto Complementar foi revogado, entrando em vigor o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, no qual o recurso à avaliação indireta de rendimentos, através da ponderação presuntiva de sinais exteriores de riqueza, não encontrou assento. Tal ausência persistiu até à entrada em vigor da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, que consagrou a avaliação indireta de rendimentos tributáveis com base em manifestações exteriores de riqueza, com contornos gerais que perduram até ao presente, através do aditamento à LGT das alíneas d) do artigo 75.º, do artigo 87.º e, em especial, do artigo 89.º-A, apresentado e justificado pelo legislador como medida de combate à evasão e fraude fiscais.
Assim, a alínea d) do artigo 75.º da LGT passou a afastar a presunção de veracidade e de boa fé incidente sobre a declaração do contribuinte sempre que os rendimentos declarados em sede de IRS se afastem significativamente para menos, sem razão justificativa, dos padrões de rendimento que razoavelmente possam permitir as manifestações de fortuna evidenciadas pelo sujeito passivo, enquanto a alínea d) do artigo 87.º inscreveu nos pressupostos de admissibilidade da avaliação indireta o afastamento significativo entre os rendimentos declarados e o rendimento padrão consentâneo com a manifestação de fortuna evidenciada.
O preceito que concretiza os critérios e padrões de avaliação indireta, encontra-se no artigo 89.ºA da LGT. Determina a avaliação indireta de matéria coletável quando falte a declaração e o contribuinte evidencie alguma das manifestações de fortuna constantes da tabela prevista no preceito – onde se contempla a aquisição, entre outros, de imóveis de valor igual ou superior a €250 000 – ou quando o rendimento declarado seja metade ou menos do rendimento padrão resultante daquela tabela. Nos termos do n.º 2 do preceito, o momento de produção do facto qualificado pelo legislador como manifestação de fortuna foi estipulado como correspondendo ao ano a que respeita a fixação da matéria coletável e também aos dois anos anteriores.
Compete à administração tributária a demonstração dos pressupostos legais da aplicação da avaliação indireta, ou seja, a verificação da existência de uma determinada manifestação de fortuna com as precisas características indicadas na tabela do mencionado preceito e a desproporção evidenciada entre o rendimento padrão presumido e os rendimentos declarados (ou a falta deles) pelo contribuinte. Verificados tais pressupostos, cessa a presunção de veracidade e de boa fé das declarações do contribuinte (artigo 75.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), da LGT), e, invertendo-se o ónus da prova, passa a recair sobre o sujeito passivo, no âmbito do direito de audição previsto no artigo 60.º, n.º 1, alínea d), da LGT, o ónus de provar que os rendimentos declarados correspondem à realidade e que é outra – diversa de rendimentos ocultados – a fonte dos meios financeiros aplicados no facto qualificado como manifestação de fortuna (artigo 89.ºA, n.º 3, da LGT). Note-se que, na redação original do preceito, o legislador indicava, de forma não taxativa, como factos justificativos da desconformidade evidenciada, a perceção de herança ou doação, a obtenção de rendimentos não sujeitos a obrigação declarativa, a utilização de capital acumulado ou o recurso ao crédito.
Se o sujeito passivo não lograr essa comprovação, considera-se como rendimento tributável em sede de IRS, a enquadrar na categoria G – incrementos patrimoniais -, o rendimento padrão, apurado pela aplicação do rácio fixado na tabela do n.º 4 do artigo 89.ºA da LGT - no caso da aquisição de imóveis, 20% do valor de aquisição -, a não ser que se verifiquem “indícios fundados”, que permitam à administração tributária a fixação de um valor superior, por aplicação dos critérios previstos no artigo 90.º da LGT.
O rendimento padrão constante da tabela do n.º 4 do artigo 89.ºA da LGT assume, nestes termos, uma dupla finalidade: num primeiro momento, fornece a medida do cálculo da desproporção, servindo para verificar se ocorrem os pressupostos legais para o recurso a métodos indiretos de determinação do rendimento tributável fundada em manifestações de riqueza; num segundo momento, ultrapassada a fase contraditória, opera a fixação da matéria coletável do imposto, assumindo, nessa dimensão, a natureza de norma de incidência objetiva de IRS (cfr. Xavier de Basto, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, 2007, págs. 368 e 369).
Temos, assim, que com a referida normação, o legislador consagrou sistema de fixação presuntiva de rendimentos, com vista à sua tributação e consequente redução da margem de evasão fiscal: perante aquisições onerosas de bens ou consumos e na falta de declaração de rendimentos ou na sua desproporção face ao rendimento declarado (facto base de presunção), a lei presume um determinado rendimento não declarado ou oculto, tido por necessário à expressão da riqueza que revelam as manifestações de fortuna (facto presumido), em ordem à sua tributação (João Sérgio Ribeiro, Tributação Presuntiva do Rendimento – Um contributo para Reequacionar os Métodos Indirectos de Determinação da Matéria Colectável, 2010, págs. 278 a 282). Trata-se inequivocamente de uma presunção iuris tantum, admitindo a lei, no n.º 3 do artigo 89.ºA da LGT, que o sujeito passivo faça “a comprovação de que correspondem à realidade os rendimentos declarados e de que é outra a fonte das manifestações de fortuna”, o que, aliás, enquanto norma de incidência tributária, sempre resultaria do disposto no artigo 73.º da LGT.
9. O Tribunal Constitucional pronunciou-se diversas vezes sobre a conformidade constitucional do recurso a presunções como forma de determinação da matéria coletável, face ao princípio da capacidade contributiva, enquanto dimensão concretizadora do princípio da igualdade no domínio fiscal ou tributário, concluindo pela solvabilidade constitucional de tal normação, desde que o sujeito passivo disponha de efetiva possibilidade de ilidir a presunção (cfr., entre outros, os Acórdãos 26/92, 348/97, 84/2003, 211/2003 e 452/2003, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Destaca-se, a este propósito, o que se diz no Acórdão n.º 84/2003:
«O princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de “uniformidade” – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação.
Consiste este critério em que a incidência e a repartição dos impostos – dos “impostos fiscais” mais precisamente – se deverá fazer segundo a capacidade económica ou “capacidade de gastar” (na formulação clássica portuguesa, de Teixeira Ribeiro, “A justiça na tributação” in “Boletim de Ciências Económicas”, vol. XXX, Coimbra 1987, n.º 6, autor que também se lhe refere como “capacidade para pagar”) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício).
A actual Constituição da República não consagra expressamente este princípio com longa tradição no direito constitucional português - a Carta Constitucional de 1826 expressa-o na fórmula de tributação “conforme os haveres” dos cidadãos e, na Constituição de 33, o artigo 28º consigna-o na obrigação imposta a todos os cidadãos de contribuir para os encargos públicos “conforme os seus haveres”)
Não obstante o silêncio da Constituição, é entendimento generalizado da doutrina que a “capacidade contributiva” continua a ser um critério básico da nossa “Constituição fiscal” sendo que a ele se pode (ou deve) chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fiscal formulados nos artigos 103º e 104º da CRP (cfr. Casalta Nabais “O dever fundamental de pagar impostos”, págs. 445 e segs., onde, no entanto, se defende que, embora o princípio não careça – para ter suporte constitucional – de preceito específico e directo, não é de todo inútil ou indiferente a sua consagração expressa).
Autores há, porém, que contestam a operatividade jurídica prática ao princípio da capacidade contributiva, em razão, nomeadamente, da sua acentuada e indiscutível indeterminabilidade, não se estando aí senão perante uma “fórmula passe-partout” imprestável para um teste juridico-constitucional dos impostos, quer porque se limitaria a “estabelecer que “deve pagar-se o que se pode pagar” sem definir o “poder pagar”, quer porque “não forneceria nenhum critério concreto para a repartição justa dos encargos fiscais por todos os contribuintes”, quer ainda porque “diria muito pouco sobre as taxas a considerar correctas dos impostos ou sobre a sua exacta progressão, caso esta, em alguma medida possa resultar de um tal princípio” (cfr. Casalta Nabais ob. cit. págs. 459 e 461).
Diferentemente, outros autores, como é o caso do próprio Casalta Nabais reconhecem ainda “importantes préstimos” ao princípio, o qual “afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que, na selecção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja erija em objecto ou matéria colectável de cada imposto um determinado pressuposto que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respectivo imposto” e tem “especial densidade no concernente ao(s) imposto(s) sobre o rendimento” exigindo “um conceito de rendimento mais amplo do que o rendimento-produto” e implicando “quer o princípio do rendimento líquido (...) quer o princípio do rendimento disponível (...)” (“Direito Fiscal”, págs. 157/168).
De todo o modo, deve reconhecer-se não ser fácil retirar consequências jurídicas muito líquidas e seguras do princípio da capacidade contributiva, traduzidas num juízo de inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adoptadas pelo legislador fiscal. (…)
Objectar-se-á que certos métodos de tributação, pela sua mesma estrutura, podem, afinal, acabar por conduzir à imposição de situações ou realidades em que falece, de todo, a capacidade contributiva, ou (e com maior probabilidade) em que a medida do imposto exigido não tem efectiva correspondência com essa capacidade, indo além (e, porventura, bastante além) dela; é o que ainda Casalta Nabais (“O dever fundamental...”págs. 497/498 e 501/502) considera, quando se refere a “soluções tradicionais do direito dos impostos” com suporte no “interesse fiscal”, em particular as “presunções”, considerando esta técnica legislativa “movida por legítimas preocupações de simplificação de praticabilidade das leis fiscais”, mas que “tem de compatibilizar-se com o princípio da capacidade contributiva, o que passa, quer pela ilegitimidade das presunções absolutas, na medida em que obstam à prova da inexistência da capacidade contributiva visada na respectiva lei, quer pela idoneidade das presunções relativas para traduzirem o correspondente pressuposto económico do imposto” e, mais adiante, aludindo ao “rendimento normal”, quando sustenta que ele “apenas poderá ser contestado nos casos em que a tributação conduza a situações de intolerável iniquidade”.
(...) [N]ão pode deixar de se concluir que a solução em causa se compatibiliza com o princípio da capacidade contributiva. É que, a admitir-se que na hipótese em apreço se está perante uma “presunção”, ela admite prova em contrário e, a considerar-se que se trata de um tributação pelo “rendimento normal”, não pode dizer-se que ela necessariamente conduza a “situações de intolerável iniquidade”.»
E, na mesma linha, refere o Acórdão n.º 211/2003:
« 2.- O legislador fiscal recorre com frequência à técnica das presunções, inspiradas em regras da experiência comum, de ciência e outras para, desse modo, garantir mais eficientemente a regular e pronta percepção dos impostos, e, ao mesmo tempo, minorar a evasão e a fraude fiscais, assim conferindo “certeza e simplicidade às relações fiscais” [José Casalta Nabais, Contratos Fiscais (Reflexões acerca da sua admissibilidade), Coimbra, 1994, pág. 279].
O Tribunal Constitucional, por sua vez, sem embargo de considerar a fixação da matéria colectável “um elemento estruturante da obrigação tributária, integrando, nessa medida, o núcleo fundamental do conjunto de matérias cobertas pelas normas constitucionais de âmbito fiscal”, vem considerando não estar constitucionalmente vedado tributar rendimentos presumidos (assim, e por exemplo, o acórdão nº 26/92, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Junho de 1992, e, no concreto domínio da determinação da base tributável, os acórdãos nºs. 620/99 e 621/99, este publicado no Diário citado, II Série, de 23 de Fevereiro de 2000).
Nesta última perspectiva, o acórdão nº 348/97 (jornal oficial referido, II Série, de 25 de Julho de 1997) admitiu a técnica da presunção desde que permitida a ilisão, situando-se em parâmetros moldados pelo princípio constitucional da igualdade – ou seja, colocando a questão da conformidade jurídico-constitucional da tributação de rendimentos presumidos por forma a confrontá-la com outras situações de tributação, assim ponderando que “a generalidade do dever de pagar impostos significa o seu carácter universal (não discriminatório) e a uniformidade (igualdade) significa que a repartição dos impostos pelos cidadãos há-de obedecer a um critério idêntico para todos”. Uma presunção juris et de jure, escreveu-se então, “veda por completo aos contribuintes a possibilidade de contrariarem o facto presumido, sujeitando-os a uma tributação que pode fundar-se numa matéria colectável fixada à revelia do princípio tributário”.
O aresto revelaria, aliás, segundo já se observou, o germe de um entendimento segundo o qual o princípio da tributação do rendimento real exprime uma exigência constitucional mais vasta que se alarga a toda a tributação do rendimento que, no entanto, exclui o recurso à técnica das presunções absolutas para a definição da incidência ou a determinação da matéria colectável do imposto (cfr. J.M. Cardoso da Costa, “O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal: A Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, in Perspectivas Constitucionais. Nos 20 Anos da Constituição de 1976, vol. II, Coimbra, 1997, pág. 425, nota 19).
A entender-se diferentemente, surpreender-se-ia desigualdade de regimes para situações análogas, quanto à questão da tributação em si mesma considerada, sujeitando a critérios não idênticos a articulação entre a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado pelo legislador para objecto do imposto, o que tem a ver com o conceito de capacidade contributiva que, não obstante a sua não consagração constitucional, mais não será do que “a expressão (qualificada) do princípio da igualdade, entendido em sentido material, no domínio dos impostos, ou seja, a igualdade no imposto” (José Casalta Nabais, “Jurisprudência do Tribunal Constitucional em Matéria Fiscal”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXIX, 1993, pág. 417. Cfr., igualmente, a anotação do mesmo autor no mencionado acórdão nº 348/97 na revista Fisco, ano IX, nºs. 84/85, págs. 93 e segs. E Clotilde Celorico Palma, “Da Evolução do Conceito de Capacidade Contributiva “ in Ciência e Técnica Fiscal, nº 402, pág. 134, nota 34).»
Prossegue o mesmo aresto, sublinhando que o recurso a técnica de fixação presuntiva de rendimentos deve assegurar o respeito pelo princípio da igualdade, congregado com o princípio da capacidade tributária, de acordo com padrões de normalidade:
«3. - A violação do princípio constitucional da igualdade subentende uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada ou discriminatória, sendo certo que, a este propósito, a jurisprudência constitucional tem insistentemente sublinhado não proibir aquele princípio que se criem distinções, desde que estas não sejam arbitrárias ou desprovidas de fundamento material bastante.
A fixação da matéria colectável constitui, por sua vez, um momento central de determinação do montante dos impostos, repercutindo-se no seu apuramento e, consequentemente, na vertente garantística dos cidadãos enquanto contribuintes. No desempenho desta tarefa, o legislador, em nome de razões de eficiência da Administração Fiscal e do combate à evasão e à fraude neste domínio, apela a presunções, como técnica de melhor surpreender a realidade fáctica decorrente das diversas situações da vida, avalizadas por critérios de normalidade, socorrendo-se, desse modo, “de factos conhecidos para afirmar outros que desconhece”, e assim ultrapassar as dificuldades probatórias que a determinação da matéria colectável inevitavelmente levanta (cfr. Jorge Bacelar Gouveia, “A Evasão Fiscal na Determinação e Integração da Lei Fiscal”, in Ciência e Técnica Fiscal, nº 373 [1994], pág. 28).»
No entanto, esse processo técnico há-de compaginar-se com o respeito pelo princípio da igualdade, por seu turno a congraçar-se com o princípio geral da imposição segundo a capacidade contributiva de cada um, o que não é já de admitir quando – voltando ao caso sub judice – se aceite que, nos valores do acervo hereditário, uma quota de bens de determinada natureza aí esteja representada, absoluta e inilidivelmente.
Ou seja, já não é de admitir, em nome daqueles princípios, uma tal mecânica apoiada em semelhante desrazoabilidade, alheia às decorrências da capacidade contributiva dos contribuintes, nos parâmetros constitucionais da igualdade e, em última análise, da “repartição justa de rendimentos e riqueza”, a que alude o nº 1 do artigo 103º da Constituição – entenda-se esse expediente técnico como ficção da existência de bens de uma dada natureza, ou uma presunção radicada em juízos de “normalidade” de certas situações de vida, uma incidindo mais significativamente no âmbito da formulação, outra mais ligada à prova (cfr. Francisco Rodrigues Pardal, “O Uso das Presunções no Direito Tributário”, in Ciência e Técnica Fiscal, nº. 325/327 [1986], pág. 20).»
10. Retomando o caso em apreço, a sentença recorrida não funda a infração do princípio da capacidade contributiva na fixação da matéria coletável através do recurso a métodos presuntivos. Considera, porém, que a liquidação adicional do montante fixado como rendimento padrão no período dos três anos posteriores ao do facto revelador de fortuna não obedece à indispensável logicidade, o que a coloca, nessa dimensão temporal, em infração com a Constituição, no plano das exigências de igualdade fiscal. A síntese conclusiva do entendimento que determinou a recusa de aplicação da normação em questão encontra-se no segmento em que se afirma: “[n]a verdade, como bem dizem os Recorrentes, se o contribuinte se lança a despesas com a aquisição de um imóvel num determinado ano assim evidenciando fortuna, a conclusão lógica que se impõe é que, se nos anos posteriores não assumiu despesas semelhantes é porque não auferiu rendimentos para tal”.
Porém, tal conclusão não se mostra consentânea com a teleologia do instituto, além de que não denota evidência da verificação de entorse lógico (probabilístico), de acordo com as regras de experiência, na consideração de um rendimento padrão quando o sujeito passivo de IRS não veja o seu património aumentado pela aquisição de outros bens imóveis de valor igual ou superior a €250.000,00.
11. Importa começar por referir que o alargamento do horizonte de controlo por parte da AT, e da potencial intervenção corretora da matéria coletável, por um período de quatro anos (o ano da verificação da aquisição de imóveis e os três anos posteriores) encontra como racional a eficácia do instituto como instrumento de combate à evasão fiscal, que de outra forma ficaria seriamente comprometida ou mesmo inviabilizada.
Como refere Sérgio Ribeiro: “se a relevância da aquisição do bem susceptível de ser considerado manifestação de fortuna se limitasse ao ano em que foi adquirido, bastaria, ao sujeito passivo que tivesse a intenção de praticar a evasão fiscal, declarar, nesse ano, um rendimento que não estivesse desfasado do rendimento padrão resultante da aplicação da tabela, podendo nos anos seguintes declarar rendimentos ostensivamente baixos, sem que a Administração Fiscal algo pudesse fazer para a isso obstar” (ob. cit., pág. 306). Paralelamente, aponta o mesmo autor, a opção do legislador explica-se ainda pelo propósito de acautelar as situações em que à data em que é detetada a manifestação de fortuna, a liquidação relativa a esse ano já não se poder efetuar, por ter caducado o respetivo direito, nos termos do artigo 45.º da LGT.
Nessa medida, e enquanto método de imputação presuntiva de rendimentos que tem na sua génese comportamento evasivo do sujeito passivo, a normação questionada obedece ao mesmo propósito que preside à aplicação do rendimento padrão nos anos anteriores ao da realização da manifestação de fortuna.
Com efeito, a modificação do preceituado no artigo 89.ºA da LGT operada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, deixou inalterada a alínea a) do n.º 2 do artigo 89.ºA, onde se estabelece, recorde-se, a aplicação da tabela definidora das manifestações de fortuna e do respetivo rendimento padrão aos bens adquiridos no ano a que diz respeito a tributação – “no ano em causa” – ou nos três anos anteriores. Encontra-se aí âmbito aplicativo com igual expressão plurianual, por quatro anos, contados a partir do ano de aquisição do bem, inclusive, fundado em desconformidade com o mesmo rendimento padrão. Daí que Sérgio Ribeiro defenda que a nova redação, no que concerne aos n.ºs 2 e 4 do artigo 89.ºA da LGT, não assume conteúdo inovador quanto ao âmbito de aplicação da avaliação indireta de rendimentos: “(..) essa ideia já resultava do n.º 2, sem prejuízo de a contagem ser aí feita a partir do ano sujeito [a] inspeção, em direção ao ano de aquisição, e agora, de acordo com o actual n.º4 do artigo 89.ºA da LGT, a contagem se fazer a partir do momento de aquisição para o momento em que se pretende dar relevância à detenção do bem. Na verdade, o resultado é o mesmo, dado que as disposições constituem o reflexo uma da outra. Dizer que para a detenção de um bem ser relevante, ele dever ter sido adquirido no ano em causa, ou num dos três anos anteriores, é a mesma coisa que dizer que a detenção de um bem é relevante no ano em que foi adquirido e nos três anos seguintes” (ob. cit., págs. 306 e 307).
12. Dito isto, não se encontra no funcionamento temporalmente alargado da avaliação indireta de rendimento e, caso não justificada discrepância com os rendimentos declarados, a imputação presuntiva do rendimento padrão em sede de IRS nos três anos posteriores ao da aquisição de imóveis de ordem de grandeza que evidencie riqueza, solução desprovida de idoneidade para revelar uma realidade tributária ou que ficcione rendimentos.
Com efeito, importa ter em atenção que o rendimento tributável decorrente da aplicação da normação em apreço não corresponde inteiramente ao montante aplicado na aquisição dos imóveis. Ainda que o tenha como base de cálculo, o rendimento que se presume auferido e não tributado como devido, encontra-se a partir da aplicação do percentual de 20% a esse valor, sendo o resultado – o rendimento padrão - a expressão do afluxo de proventos numa base anual que se tem como fundadamente indiciado, para efeitos de controlo da sua desconformidade com os rendimentos declarados e eventual liquidação adicional de IRS durante quatro períodos de tributação, caso não justificada. Nessa medida, não se trata, como afirma o Tribunal a quo, de extrair consequências plúrimas do mesmo facto, mas de repercutir – relevar - o mesmo facto presumido em vários períodos de incidência de IRS, no que representa um escalonamento da avaliação presuntiva do rendimento, por confronto com outras opções do legislador tributário democraticamente legitimado.
Na verdade, para além de obedecer às apontadas exigências de eficácia na luta contra a fraude e a evasão fiscal, incentivando o sujeito passivo a declarar o rendimento real, a normação em apreço compara favoravelmente para o sujeito passivo com o que seria a tributação do acréscimo patrimonial não justificado de uma só vez e num único ano, como observa a AT. Note-se ainda que, mesmo na expressão cumulativa máxima implicitamente admitida na decisão recorrida (interpretação do regime infraconstitucional vigente que não cabe aqui apreciar, sendo afastada por João Sérgio Ribeiro, ult. ob. cit., págs. 305 e 309 e Algumas Notas Acerca das Manifestações de Fortuna, in Estudos em Memoria do Professor Doutor J.L. Saldanha Sanches, vol. V, 2011, págs. 208 e 210, assim como nos acórdãos do STA de 17 de abril e 24 de Julho de 2013, proferidos nos recursos n.ºs 433/13 e 1203/13, acessíveis em www.dgsi.pt, ambos lavrados com voto dissidente), o rendimento tributável obtido a partir da não justificação de manifestação de fortuna em todos os quatro anos não ultrapassa 80% do valor dos bens imóveis adquiridos, comportando então incidência objetiva que permanece aquém do que aconteceria caso o sujeito passivo tivesse declarado todo o rendimento correspondente ao capital aplicado na mesma.
Não colhe, por outro lado, a consideração de que a efetivação de “despesas” com a aquisição de um imóvel pelo sujeito passivo conduz à conclusão lógica de que, se tal não acontece nos anos posteriores, foi porque não auferiu rendimentos para tal. O que passa por afirmar que só aufere rendimento (padrão) num determinado ano quem o aplica em incremento de património imobiliário e não também quem se limita a acumular proventos ou opta por aplicações de outra índole, por exemplo financeira.
Ora, esse raciocínio encontra o obstáculo de que a experiência comum aponta para que a capacidade aquisitiva de bens de consumo duradouro – categoria em que inequivocamente se inscreve a compra de bens imóveis na ordem de grandeza verificada -, só excecionalmente se atinge com os rendimentos auferidos no próprio ano do ingresso patrimonial, representando em regra esforço de poupança distribuído por período muito superior. Daí que a aferição pelo legislador do valor do rendimento padrão, em que assenta a presunção de rendimento tributável em apreço, tenha necessariamente em consideração realidade temporalmente alargada, tomando a aquisição patrimonial, pelo seu montante e tipologia, como indicador de fluxo de rendimentos – e de capacidade contributiva - continuado, que não se cinge ao espaço de um ano. A sua fixação encontra na sua base índices concretos e positivos reveladores de riqueza, em função da ponderação pelo legislador de regras de experiência e padrões de comportamento socialmente sedimentados, bem como da recolha de dados estatísticos, de acordo com os quais existe probabilidade significativa de que quem realiza investimento em bens imóveis de valor igual ou superior a €250.000,00 beneficiou de lastro de rendimentos anuais compatível, sem o que o ato aquisitivo não seria económica e financeiramente viável.
O que não significa, porém, que tal relação probabilística fique infirmada com no momento da aquisição, pois a simples ausência de novas manifestações de fortuna não consente a ilação de que o nível de rendimentos sofreu uma quebra, ou até que o sujeito passivo tenha exaurido a sua capacidade financeira, podendo corresponder apenas a decisão negativa de investimento, ou à satisfação da utilidade procurada com o ingresso patrimonial imobiliário. Nada obsta, então, a partir dos mesmos dados e do mesmo padrão quanto à presumível e subjacente obtenção de um rendimento de 20% do montante aplicado na aquisição de bens imóveis, o legislador confira idêntico grau de probabilidade à constância desse nível de rendimentos nos três anos seguintes, justificando que, também então, tal montante sirva de base de aferição e de medida da verificação de desconformidade com o valor dos rendimentos declarados pelo sujeito passivo. E que, quando não justificada tal desconformidade em fase contraditória, em qualquer desses três anos seguintes, opere a fixação da matéria coletável do imposto através de presunção de rendimento, sem que daí decorra qualquer “transposição para anos posteriores de rendimentos obtidos em anos anteriores”.
Em todo o caso, contando o sujeito passivo com a efetiva possibilidade de elidir a presunção, em toda a sua amplitude temporal e efeito cumulado, justificando em fase contraditória, sem exigências probatórias de difícil realização, as fontes financeiras que lhe permitiram lançar-se na aquisição dos bens imóveis e, ao mesmo tempo, declarar sucessivamente em sede de IRS rendimentos fortemente inferiores ao rendimento padrão (recorde-se que, na redação aplicável nos presentes autos, o desvio carece de ser superior a 50% para desencadear o recurso a métodos indiretos de determinação do rendimento tributável, ou seja, no caso em apreço, superior a €25.900,00), a margem de incerteza, conatural a todos os instrumentos de fixação presuntiva de rendimento, mostra-se substancialmente reduzida, incluindo no seu prolongamento e aplicação nos três anos subsequentes ao do facto manifestador de riqueza.
Não se encontra, assim, nesse sentido normativo, solução de fixação de rendimento presumido ilógica, desrazoável ou incompatível com o pressuposto económico erigido como objeto do imposto, sendo certo que a capacidade contributiva encontra expressão, para além do rendimento, também na utilização dos bens e no património acumulado.
13. Em suma, estando em questão instrumento de combate à fraude e evasão fiscal, através da operação de presunção baseada em desconformidade de rendimentos evidenciada, presunção essa não absoluta, não ofende os princípios constitucionais da igualdade e da capacidade contributiva, decorrentes dos artigos 13.º, n.º 1 e 104.º, n.º 1, da Constituição, que, por razões de praticabilidade e eficácia, e também de contramotivação dos comportamentos evasivos a que se procura obstar, a avaliação presuntiva de rendimentos tributáveis não declarados possa ter lugar nos três anos posteriores àquele em que ocorre o facto consubstanciador de manifestação de fortuna.
III. Decisão
14. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma contida nos n.º 2, al. a), e n.º 4, do art. 89.ºA, da Lei Geral Tributária, na redação da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, na interpretação de que a manifestação de fortuna apresentada pelo contribuinte permite à Administração Tributária a correção do rendimento, para efeito de IRS, em qualquer dos três anos seguintes ao ano em que se verifica;
b) Julgar procedente o recurso e determinar a reformulação da decisão recorrida em conformidade.
Sem tributação.
Notifique.
Lisboa, 9 de janeiro de 2014. – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins – Pedro Machete – João Cura Mariano - Joaquim de Sousa Ribeiro.