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Processo n.º 161/13
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, o Município de Lisboa veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se o seguinte:
“(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Comecemos a análise pela natureza do objeto a sindicar. O recurso de constitucionalidade apenas pode incidir sobre a constitucionalidade de normas ou interpretações normativas, impendendo sobre o recorrente o ónus de enunciar o concreto critério normativo cuja desconformidade constitucional invoca, reportando-o a uma determinada disposição ou conjugação de disposições legais. A enunciação terá necessariamente de corresponder a um dos sentidos extraíveis da literalidade do(s) preceito(s) escolhido(s) como suporte da norma ou interpretação normativa colocada em crise.
Ora, no caso concreto, a questão enunciada pelo recorrente, no requerimento de interposição de recurso, não comporta um mínimo de correspondência verbal com a alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 46/2007, de 24 de agosto, que estabelece que “não se consideram documentos administrativos, para efeitos da presente lei: (b) os documentos cuja elaboração não releve da atividade administrativa, designadamente referentes à reunião do Conselho de Ministros e de secretários de Estado, bem como à sua preparação”.
Esta falta de conexão com a literalidade do preceito legal evidencia que a questão enunciada não traduz um critério normativo do mesmo extraível.
De facto, o recorrente limita-se a transpor uma afirmação que o tribunal a quo convoca, numa argumentação mais vasta conducente à conclusão de que os documentos em causa se classificam como documentos administrativos, não demonstrando qualquer preocupação em selecionar o específico critério normativo, que a decisão recorrida utilize como ratio decidendi, e em enunciar o mesmo, em termos tais que o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela sua inconstitucionalidade, possa reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral fiquem cientes do concreto sentido normativo, extraído de determinado preceito legal, que é julgado desconforme com a Lei Fundamental.
Sublinhe-se, aliás, que, apesar de o tribunal a quo utilizar, na sua fundamentação, o argumento da ausência de função política dos Municípios, desenvolve outras linhas argumentativas que conduzem ao juízo conclusivo de não subsunção dos documentos em análise à previsão normativa da alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 46/2007, de 24 de agosto.
Na verdade, o acórdão recorrido começa por referir que “incumbe à entidade requerida (…) demonstrar que os documentos solicitados não são documentos administrativos, para efeitos do CPA, da LADA e do CPTA”, porquanto, “[n]os termos do disposto no n.º 2 do artº 342º do CC, cabe à Administração alegar e demonstrar o facto impeditivo do direito à informação invocado pelo requerente, não bastando alegar a natureza política dos documentos em causa.”
Por outro lado, não obstante o acórdão, na ponderação que efetua, concluir que “é de recusar a função política aos Municípios”, não deixa de analisar, de forma que se revela determinante, a natureza dos concretos documentos solicitados, referindo que “[c]onforme alegação expressa do recorrente estão em causa documentos preparatórios de reuniões e das decisões que vieram a ser tomadas, o que não se subsume à noção do exercício da atividade política.” Acrescenta, utilizando novo argumento, que “(…) ainda que assim não fosse, mesmo quando esteja em causa documento respeitante à atividade político-legislativa, “não se conclui que tais documentos são reservados”, pois, “em geral, estão sujeitos a publicidade”. Mais refere que “ainda que (…) tais documentos (…) se traduzissem em documentos preparatórios, contendo propostas ou valorações relativas à orgânica dos serviços municipais, sempre é de recusar que se traduzam em valorações de cariz ou natureza política.”
Ora, do que vem de ser dito resulta, com clareza, não ter o recorrente conseguido erigir, desde logo, como objeto do recurso de constitucionalidade, um verdadeiro critério normativo extraível da disposição legal que seleciona, ficando, por tal razão, prejudicada a admissibilidade do recurso.
Assim, em virtude da demonstrada não verificação de um dos pressupostos de admissibilidade do recurso, e face à natureza cumulativa dos mesmos, mostra-se ociosa a apreciação dos restantes, concluindo-se, desde já, pela inadmissibilidade do recurso e consequente não conhecimento do seu objeto.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. Manifesta o reclamante a sua discordância, relativamente ao teor da decisão sumária, referindo que entende que deve ser conhecido o objeto do recurso.
Para fundamentar a sua posição, argumenta que “o entendimento assumido pelo Tribunal no caso presente parece ser, prima facie, o de que o requisito da “existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação” e bem assim e por maioria de razão, o de que “a aplicação da norma ou interpretação normativa cuja sindicância se pretende como ratio decidendi da decisão recorrida”, apenas se considerariam corretamente preenchidos se a própria letra da norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 46/2007, de 24 de agosto (…) fosse já de feição a induzir diretamente uma interpretação reputável de inconstitucional.”
Nestes termos, acrescenta o reclamante que, sendo claro que a alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º da LADA não faz nenhuma alusão textual às autarquias locais, não se pode deixar de considerar que o advérbio “designadamente” permite abranger o universo das autarquias locais.
Assim, “é principal propósito do recorrente convocar (…) pronúncia desse Tribunal acerca do espaço de politicidade da atividade dos órgãos autárquicos.”
Nesta conformidade, identifica o reclamante, como sentido interpretativo adotado pelo Tribunal Administrativo Central Sul” e cuja sindicância de constitucionalidade se pretende, o entendimento de que “no contexto da qualificação da administratividade dos documentos pela LADA, se possa irrefutável e definitivamente concluir que por mero modo de ser indemonstrado, certas reuniões de órgãos municipais não poderiam jamais equiparar-se por exemplo às de um Conselho de Ministros, por nenhum outro motivo a não ser o de serem aqueles, por natureza, impolíticos.
Alega o reclamante que suscitou, com clareza, a inconstitucionalidade da questão enunciada, junto do Tribunal Central Administrativo Sul, nas conclusões xxii, xiii e xiv das alegações do recurso interposto.
Nestes termos, conclui que “de nenhuma deficiência ou insuficiência padece o requerimento de recurso, designadamente quanto à enunciação do seu objeto que pudesse dar causa fundamentada à recusa liminar da sua apreciação.”
Em conformidade, pugna pela revogação da decisão reclamada e pelo prosseguimento do processo, com a notificação para apresentação de alegações.
Caso assim não se entenda, considera o reclamante que deverá reconhecer-se que existe uma nulidade processual, decorrente da “preterição da notificação do recorrente para suprir eventuais deficiências no preenchimento dos pressupostos cumulativos do requerimento de recurso”, nos termos do n.º 5 do artigo 75.º-A da LTC, pelo que a decisão sumária proferida deve ser substituída por notificação do recorrente para suprir deficiências.
O reclamado, notificado para o efeito, optou por não apresentar resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
4. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pelo reclamante não infirmam a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida.
Na verdade, o reclamante insurge-se, por um lado, contra a circunstância de o não conhecimento do recurso se ter baseado na inidoneidade do respetivo objeto, negando que tal vício se verifique.
Especifica que é seu principal propósito convocar a pronúncia do Tribunal “acerca do espaço de politicidade da atividade dos órgãos autárquicos”, acrescentando que pretende a sindicância de constitucionalidade do entendimento de que “no contexto da qualificação da administratividade dos documentos pela LADA, se possa irrefutável e definitivamente concluir que por mero modo de ser indemonstrado, certas reuniões de órgãos municipais não poderiam jamais equiparar-se por exemplo às de um Conselho de Ministros, por nenhum outro motivo a não ser o de serem aqueles, por natureza, impolíticos.”
Tal especificação apenas confirma a conclusão já plasmada na decisão sumária, deixando claro que o recorrente não pretende a sindicância constitucional de um verdadeiro critério normativo, parecendo antes que deseja a apreciação da própria decisão jurisdicional, na sua vertente de correção da interpretação de preceitos, no plano do direito infraconstitucional, e na dimensão subsuntiva.
Tal apreciação, porém, encontra-se subtraída à competência do Tribunal Constitucional.
A este propósito, refere o Acórdão n.º 633/08 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) o seguinte:
“ (…) sendo o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas, que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação directa de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correcção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correcção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efectuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao acto judicial de “aplicação” a violação (directa) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efectuado in concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correcção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida (…)”
Nestes termos, improcede a argumentação da reclamação, nesta parte.
Por outro lado, refere o reclamante que eventual deficiência do seu requerimento de interposição de recurso deveria ter motivado um convite ao aperfeiçoamento, pelo que a omissão de notificação, nos termos do n.º 5 do artigo 75.º-A da LTC, constitui nulidade.
Relativamente a este aspeto, cumpre esclarecer que o n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC apenas é aplicável nos casos em o requerimento de interposição de recurso não indica algum dos elementos previstos nos n.os 1, 2, 3 do mesmo preceito e não já nas situações em que não se verifica qualquer omissão, mas, pelo contrário, uma indicação incorreta desses elementos, nomeadamente - como sucede no caso - a enunciação de um objeto do recurso que não constitui um objeto normativo.
Procedendo o recorrente a uma indicação incorreta dos elementos referidos no artigo 75.º-A da LTC, a consequência terá de ser, em regra, a não admissibilidade do recurso.
Improcede, assim, igualmente nesta parte, a argumentação da reclamação.
Nestes termos, sendo certo que a fundamentação aduzida na decisão reclamada merece a nossa concordância, damos a mesma por reproduzida e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III – Decisão
5. Pelo exposto, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 15 de julho de 2013, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 26 de fevereiro de 2014. – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.