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Processo n.º 698/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Por apenso ao processo de insolvência que corre termos no 1.º Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial da Maia, os devedores A. e B. suscitaram o incidente de aprovação do plano de pagamentos pelos credores, que apresentaram.
Citados os credores constantes da relação de créditos, sete deles recusaram o plano de pagamentos. Notificados, os devedores modificaram o plano de pagamentos, mas sem lograr modificar a posição de tais credores.
Os devedores requereram, então, que fosse suprida judicialmente a aprovação dos credores oponentes, o que foi indeferido, ordenando-se o prosseguimento dos termos do processo de insolvência.
2. Inconformados, os devedores interpuseram recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, admitido no Tribunal a quo, foi rejeitado por decisão do relator. Os recorrentes reclamaram desse despacho para a conferência, que proferiu acórdão a indeferir a reclamação e a manter a decisão do relator, com os seguintes fundamentos:
«2.1. É jurisprudência firme e corrente do tribunal constitucional a de que o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. O que se lhe impõe, isso sim, imperativamente e sem quaisquer restrições, é o acesso a um grau de jurisdição que constituirá, por assim dizer, a tutela jurisdicional mínima.
A existência de limitações à recorribilidade funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário; e ao legislador ordinário se reconhece, nesta matéria, margem razoável de discricionariedade na concreta conformação da disciplina dos recursos, permitindo-se-lhe poder suprimir alguns tendo em conta, por exemplo, a natureza dos interesses envolvidos. Salvaguardadas os casos de estabelecimento arbitrário de limitação ao direito ao recurso em determinados processos ou situações, impondo um regime de desfavor não legitimado por qualquer justificação objetiva plausível (hipótese que poderá já representar a violação do princípio constitucional da igualdade), afigurar-se-á, em regra, coberta pela Constituição aquela solução normativa que, para certo caso específico enformado por algum interesse substantivo que se lhe adeque, a ele molde, limite ou, até, suprima, a faculdade de impugnação para uma segunda instância.
É o quadro em que se compreendem inúmeras das normas excludentes de recorribilidade que se encontram na ordem jurídica, em particular civilística. E é o quadro em que se integram normas várias do código da insolvência, exatamente assim excludentes.
2.2. É importante lembrar a contextualização do artigo 258º, nº 4. E sob essa ótica avaliar a sua conformidade à Constituição da República.
A norma integra-se num contexto insolvencial, aliás confessado (artigo 252º, nº 4, cód insolv); e por conseguinte num estado de impossibilidade de cumprimento de obrigações assumidas e já vencidas (artigo 3º, nº 1, cód insolv).
É esta uma realidade que está presente; e que, naturalmente, condiciona as primordiais justificações substantivas da instância insolvencial em todas as suas vertentes. O processo de insolvência tem como finalidade primordial a satisfação do interesse dos credores (artigo 1º, nº 1, cód insolv) - o que pode ser feito, designadamente, através dos procedimentos comuns estabelecidos no código, pela forma prevista em plano de insolvência, ou no caso particular das pessoas singulares, dentro de certas características que as excluem daquele plano (artigo 250º cód insolv), ainda mediante a apresentação de um plano de pagamentos aos credores (artigo 251 º cód insolv).
Note-se que o objetivo deste último plano, circunscrito a certos interessados, é exatamente o de escapar ao curso do processo comum de insolvência, ao qual constitui uma alternativa, embora sem nunca ofuscar aquela que é a resposta que o direito tem de dar ao (assumido) estado insolvencial do devedor, e que é sempre o da (maior) satisfação dos interesses (insatisfeitos) dos seus credores. O plano de pagamentos aos credores opera assim em benefício primordial do devedor insolvente (único que aliás é legítimo para o desencadear) permitindo-lhe uma solução discreta para a sua situação de quebra e evitando-lhe o estigma associado.' Porém, em desvio do procedimento comum; e, por causa dos interesses de direito material especialmente visados, e que são os dos credores, com o merecimento de uma palavra muito especial - e decisiva - destes.
O mecanismo reflete o que pode designar-se como processo simplificado de insolvência, especificamente direcionado para a situação específica das tais pessoas singulares, e dentro de certos parâmetros e condicionantes. Reunidas essas condições (artigo 249º cód insolv) pode o devedor apresentar um plano, mas que tem de refletir 'uma proposta de satisfação dos direitos dos credores que acautela devidamente os interesses destes, de forma a obter a respetiva aprovação, tendo em conta a situação do devedor' (artigo 252º, nº 1, cód insolv).
Retomamos e sublinhamos que é um procedimento desviante ao procedimento comum (aquele que, por regra, seria o aplicável); e que o código permite em homenagem e em favor de interesses (no caso do devedor) que, apesar de tudo, também tem como merecedores de acolhimento.
Sem preterimento da primordial tutela - do interesse dos credores.
Este procedimento sucedâneo, em beneficio do devedor, no quadro insolvencial de tutela primordial dos interesses dos credores, permite compreender melhor as restrições legais à respetiva viabilidade.
O plano só é tido por aprovado se merecer a aceitação de todos os credores; quer dizer, a unanimidade (artigo 257º, nº 1, cód insolv).
E este aspeto é fundamental.
A seu respeito, escrevia JOSÉ ALBERTO VIEIRA:
«Os credores podem aprovar o plano de pagamentos proposto pelo devedor ou rejeitá-lo. Nenhum critério normativo determina a posição a tomar por eles. Os credores são os juízes do seu interesse.»
E adiante:
«A aprovação do plano de pagamentos resulta da aceitação de todos os credores, independentemente do peso relativo de cada credor na situação patrimonial do devedor. E basta a rejeição de um só credor para pôr em crise a aprovação do plano de pagamentos. Sem unanimidade, o plano de pagamentos pode ser rejeitado.»
É a vontade dos credores, estritamente, o que está em causa. Como nota o Professor JOSÉ ALBERTO VIEIRA, sem exigência de orientação normativa, que não tem de ser critério de prossecução da sua conveniência.
E é àquela - à vontade dos credores - que o tribunal se há de (se pode) substituir no quadro do artigo 258º cód insolv; de alguma forma, superando o bloqueio da sua oposição quando para esta não encontre razão bastante, e como que fazendo aí acrescentar um fator de proteção ao interesse do devedor.
É isto tudo que também permite situar o alcance do suprimento - carente dos maiores cuidados e cautelas, já que situado em quadro de superação de uma vontade privada, que não pode preterir o interesse primordial, presente sempre (de proteção dos credores); embora, ao mesmo tempo, dando guarida, em medida ajustada, a um interesse que também se crê dela merecedor, do devedor.
O suprimento do tribunal representa um sucedâneo da aceitação dos credores oponentes ao plano apresentado pelo devedor; permitindo obter a aprovação que algum, ou alguns, rejeitem. E nele o que o tribunal deve principalmente controlar 'é que os credores recebam um tratamento igualitário no que toca à satisfação dos seus créditos, não obstante eventuais diferenças entre os seus créditos, e que o plano não constitua uma tentativa de favorecer alguns credores em detrimento dos outros'.
A sua decisão positiva deve fundar-se em razões que levem a suspeitar, com alguma solidez, nenhum óbice sério, razoável, ou merecedor de aceitação, haver com virtualidade de permitir gerar prejuízo à satisfação igualitária dos interesses dos credores, que urge sempre salvaguardar; de alguma forma, não se perspetivar perturbação razoável à realização adequada dos fins substanciais que guiam primacialmente o processo de insolvência.
Sendo esta injustificação, na rejeição do plano por algum dos credores, que viabiliza a sua superação; e, neste particular, no desequilíbrio da proteção (assumida pelo tribunal) agora em favor do devedor.
Naturalmente, que os interesses substanciais latentes (sempre a proteção primacial dos credores) e o desequilíbrio agora evidenciado por este segmento normativo (em beneficio do devedor) permitem, com facilidade, compreender que se admita recurso, a interpor pelos credores, da decisão que supra a respetiva aprovação. Mas ao mesmo tempo tornam percetível a opção do legislador ordinário pela irrecorribilidade da decisão que a indefira.
O primado é o da satisfação dos credores. Na ótica do devedor consagra-se este regime sucedâneo, simplificado, de processo de insolvência, já de si altamente vantajoso na prossecução do seu próprio interesse, que desvia das consequências e dos estigmas correntemente aliados à insolvência.
O interesse do devedor não pode ofuscar o dos credores. Este, que prevalece, é ainda prosseguido pela garantia de um segundo grau de jurisdição. Já aquele, salvaguardado por um (único) grau de jurisdição, por este se basta; logo porque não merece a mesma dignidade do outro, a que se submete.
A garantia da jurisdição está, em ambos os casos, salvaguardada; com a diferença de, num caso, o ser em duplo grau e, no outro, em grau único. E com as razões objetivas evidenciadas; portanto, sem arbitrariedade mas ao invés com sustentação plausível - que assim permite percecionar a diferença de tratamento e, dessa forma, conformar o princípio constitucional da igualdade (artigo 13º, nº 1, da Constituição da República).
Quer dizer, afigura-se-nos que, atentos os interesses materiais envolvidos, o escrutínio da rejeição dos credores do plano de pagamentos apresentado pelo devedor, num único grau de jurisdição, se comporta nos limites constitucionais; não se exigindo, para os respeitar, que a situação haja de ser reapreciada por uma segunda instância.
Na hipótese, os devedores argumentam com as ações de estado ou sobre interesses imateriais, cujo valor supera sempre o da alçada da relação (artigo 312º, nº 1, cód proc civ) e cujo recurso, ademais, comporta sempre efeito suspensivo (artigos 692º, nº 3, alínea a), e 723º, nº 1, cód proc civ). Mas as situações não são comparáveis à do processo de insolvência. Este não tem a natureza daquelas outras ações; estando a sua natureza bem evidenciada no artigo 1 º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Por outro lado, argumentam os devedores pela desigualdade que reflete o recurso da sentença homologatória do plano (artigo 259º, nº 3, cód insolv). E sobre este assunto valem os considerandos já realizados; quer dizer, o incidente de aprovação do plano constitui desvio ao processo comum da insolvência e em especial beneficio do devedor; só a plena salvaguarda dos interesses dos credores, mesmo nesta específica e sucedânea tramitação, viabiliza a sua aceitabilidade - e é esta necessidade de salvaguarda que aconselha o duplo grau de jurisdição, para a hipótese da sua viabilização judicial. Já a respetiva rejeição, cuja consequência é tão-só a de se remeter para o processo comum (a regra portanto) se basta com um único grau de avaliação.
Argumentam ainda, e por fim, não haver, em contexto de plano de insolvência, limitação à possibilidade de recurso da sentença, homologatória ou não homologatória, do plano. Mas nem aqui as situações são comparáveis. Note-se qual seja o objeto do suprimento - a manifestação da vontade dos credores num certo sentido. Ora, em tema de plano de insolvência não há sequer lugar a um tal suprimento: a vontade dos credores é, apenas e tão-só, aquela que cada um manifestar, no uso da respetiva autonomia que lhe assiste (artigo 212º cód insolv); e só, uma vez aprovado por eles o plano, é ele sujeito à homologação do juiz (artigo 214º cód insolv). Distintamente no caso do plano de pagamentos em que o suprimento é o da própria aprovação, da feitura e configuração do próprio plano. Donde, também aqui, se por hipótese um plano aprovado vier a ver a sua homologação rejeitada, não merecerá dúvida a respetiva recorribilidade. Em suma tempos diferentes, o da aprovação e o da homologação - certo que a falta da 1.ª impede a sujeição à 2.a, em qualquer caso; e que, na fatti specie do questionado artigo 258º, nº 4, apenas essa (a l.ª) é a que está em causa.
Não se intui, portanto, que para o suprimento da aprovação dos credores a constituição imponha um duplo grau jurisdicional. O devedor tem tutela jurisdicional de um grau. A insolvência comporta um regime de regra ao qual se reconduz a frustração da especial vantagem concedida ao devedor, e refletida na sucedânea e incidental aprovação do plano de pagamentos. O regime legal não retrata desvio algum incomportável ao princípio de igualdade (cit artigo l3º, nº 1); os interesses assumidos da dinâmica da insolvência centram-se na salvaguarda e tutela dos credores (artigo 18º, nº 2, final); por fim, o acesso à tutela jurisdicional efetiva existe também, concretizado na avaliação da situação de vida por um juiz, em um grau de jurisdição (artigo 20º, nºs 4 e 5).
Na hipótese, a avaliação realizada foi no sentido de detetar credores oponentes que, na ótica do juiz 'a quo' eram, no plano apresentado pelos devedores (mesmo reformulado), 'objeto de um tratamento discriminatório injustificado'. Portanto, enquadramento no nº 1, alínea b), do artigo 258º, cód insolv; a fazer arredar a possibilidade de ter a respetiva vontade por suprida.
Do nº 4, deste artigo, decorre a expressa irrecorribilidade da decisão.
E não vemos que seja limitação que a lei constitucional censure.»
3. Inconformados A. e B. interpuseram recurso desse acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.ºs 1, al. b) e 2 e 75.º, ambos da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), e com vista à apreciação da inconstitucionalidade do artigo 258.º, n.º 4, do Código da Insolvência e de Recuperação de Empresas, por violação do disposto nos artigos 13.º, 18.º, n.º 2 e 20.º, n.ºs 4 e 5, da Constituição.
O recurso foi admitido.
4. Neste Tribunal, os autos prosseguiram para alegações, que apenas foram apresentadas pelos recorrentes, extraindo as seguintes conclusões:
«A) O presente recurso, conforme resulta do requerimento de interposição, pretende que seja declarada a inconstitucionalidade do teor do artigo 258º nº 4 do CIRE, o qual dispõe que 'Não cabe recurso da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor'.
B) É um facto que a Jurisprudência deste Tribunal segue o entendimento que, em processo civil, a Constituição da República não consagra um duplo grau de jurisdição.
C) Porém, como bem refere A. Geraldes in 'Recursos em Processo Civil Novo Regime,', 3ª edição revista e atualizada, 2010, 'sempre se deverá considerar como inaceitável e inconstitucional a exclusão arbitrária do direito de recorrer', ou seja, tal direito não poderá ser coartado de forma discriminatória.
D) E, no mesmo sentido Gomes Canotilho e Vital Moreira em comentário ao artigo 20º da Constituição in 'Constituição da República Portuguesa anotado', vol. I, págs. 161 - 165, 4a edição, Coimbra Editora referem que 'Não existe, porém, um preceito constitucional a consagrar 'a dupla instância' ou o duplo grau de jurisdição em termos gerais (Ac. TC nº 31/87, 65/88, 163/90, 259/97 e 595/98). Todavia, o recurso das decisões que afetem direitos fundamentais, designadamente direitos, liberdades e garantias, mesmo fora do âmbito penal, apresenta-se como garantia imprescindível desses direitos.'
E) O artigo 258º nº 4 do CIRE ofende efetivamente o principio da igualdade estabelecido no artigo 13º nº 1 da CRP, nos termos da qual 'todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei' e afeta direitos fundamentais.
F) Esta norma ao restringir o direito do devedor de recorrer da decisão que indeferiu o pedido de suprimento de aprovação dos credores que não aprovaram o plano de pagamentos por si apresentado e o mesmo não sucedendo em relação aos seus credores, que poderão recorrer da decisão que defira esse mesmo pedido de suprimento, quando é certo que é o devedor a parte mais fraca na correlação de interesses e como tal, aquele que necessita de mais proteção, é de uma manifesta injustiça e é de uma desigualdade gritante.
G) Acresce que a decisão de não suprir a aprovação de credores implica o 'desmoronar' da vida dos Recorrentes porque está em causa uma decisão que influirá necessariamente sobre a sua capacidade jurídica que ficará naturalmente limitada,
H) para além de que implica forçosa e necessariamente a apreensão e ulterior liquidação de todos os bens dos Recorrentes por parte do Administrador da Insolvência, e mais, ficam os Recorrentes privados da administração dos seus bens. (v.g. artigo 38.º, al. g, do CIRE).
I) Conforme é referido no preâmbulo do D.L. nº 53/2004 de 18.03, 'o incidente do plano abre caminho para que as pessoas que podem dele beneficiar sejam poupadas a toda a tramitação do processo de insolvência (com apreensão de bens, liquidação, etc), evitem quaisquer prejuízos para o seu bom nome ou reputação e se subtraiam às consequências associadas à qualificação da insolvência como culposa'.
J) O indeferimento do pedido de suprimento da aprovação pelos credores do plano de pagamentos tem, como efeito obrigatório, a declaração de insolvência dos Recorrentes na plenitude dos seus termos, conforme previsto nos artigos 262.º, 36.º e/ou 39.º, do CIRE e não a constante do artigo 259.º, n.º 1, do mesmo Código, cujos efeitos e consequências são totalmente distintos.
K) É que, contrariamente aos efeitos limitados da declaração de insolvência prevista no artigo 259.º, n.º 1, do CIRE, a declaração na plenitude do artigo 36.º, do CIRE implica a publicidade e registo nos assentos de nascimento de cada um dos Recorrentes, conforme o prevê o artigo 38.º, n.º 2, al. a), do CIRE,
L) Ponderados os valores que se encontram em causa: por um lado a VIDA e o 'modus vivendi' de um agregado familiar com filhos menores e, por outro lado, um mero crédito reclamado a ser ou não ressarcido, não se entende e não se pode aceitar, à luz da mais elementar noção de Justiça, a disparidade de tratamento entre Devedores e os credores,
M) Assim sendo, forçoso será concluir que não é constitucionalmente tolerável que o legislador ordinário elimine simplesmente a possibilidade de recurso no caso em apreço!
N) Dois recentes Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora vão no sentido de considerar como inconstitucional o teor do artigo 258º nº 4 do CIRE, sendo que um já se encontra em apreciação na Iª Secção deste Venerando Tribunal com o nº 407/13 e o outro, da responsabilidade da 13 Secção Cível respetiva com o nº 760/12.6TBSTR-F.E1, aguarda alegações pelo competente Magistrado do Ministério Público.
O) Finalmente, conforme supra referido, a disparidade de tratamento, supra exposta, viola frontalmente os seguintes preceitos da Constituição da República Portuguesa:
- artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa quando esta refere que 'Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei'.
- artigo 2º, nos termos do qual 'a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado (...) no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais (...),
- artigo 18.º, n.º 2 quando dispõe que 'A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos'
- artigo 20º nº 1 quando refere que 'a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (...)
- artigo 20º nº 4 que enuncia que 'Todos têm direito a quem uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo'
- artigo 20º nº 5 que dispõe que 'Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos'.
P) Assim e em consequência impõe-se a apreciação e análise do teor do aludido artigo 258.º, n.º 4, do CIRE concluindo-se pela sua evidente e manifesta inconstitucionalidade.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A. Delimitação do objeto do recurso
5. Nos termos do requerimento de interposição de recurso, que delimita o objeto do recurso, encontra-se submetida à apreciação deste Tribunal a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 4 do artigo 258.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março (com alterações posteriores introduzidas pelos Decretos-Lei n.ºs 200/2004, de 18 de agosto, 76-A/2006, de 29 de março, 282/2007, de 7 de agosto, 116/2008, de 4 de julho, e 185/2009, de 12 de agosto, e pelas Leis n.ºs 16/2012, de 20 de abril, e 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante referido por CIRE, diploma a que se faz referência sempre que não seja mencionada outra localização).
O preceito em que insere a norma questionada é o seguinte, na integralidade:
Artigo 258.º
Suprimento da aprovação dos credores
1 – Se o plano de pagamentos tiver sido aceite pelos credores cujos créditos representem mais de dois terços do valor total dos créditos relacionados pelo devedor, pode o tribunal, a requerimento de algum desses credores ou do devedor, suprir a aprovação dos demais credores, desde que:
a) Para nenhum dos oponentes decorra do plano uma desvantagem económica superior à que, mantendo-se idênticas as características do devedor, resultaria do prosseguimento do processo de insolvência, com liquidação da massa insolvente e exoneração do passivo restante, caso esta tenha sido solicitada pelo devedor em condições de ser concedida;
b) Os oponentes não sejam objeto de um tratamento discriminatório injustificado;
c) Os oponentes não suscitem dúvidas legítimas quanto à veracidade ou completude da relação de créditos apresentada pelo devedor, com reflexos na adequação do tratamento que lhes é dispensado.
2 – A apreciação da oposição fundada na alínea c) do número anterior não envolve decisão sobre a efetiva existência, natureza, montante e demais características dos créditos controvertidos.
3 – Pode ser sempre suprida pelo tribunal a aprovação do credor que se haja limitado a impugnar a identificação do crédito, sem adiantar quaisquer elementos respeitantes à sua configuração.
4 – Não cabe recurso da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação de qualquer credor (itálico aditado).
Os recorrentes, na sequência do que arguíram, sem êxito, junto do Tribunal a quo, sustentam que o disposto no n.º 4 do preceito, na medida em que veda ao(s) devedor(es) o recurso da decisão que indefira o pedido de suprimento judicial da aprovação de qualquer credor oponente ao plano de pagamentos, colide com os princípios consagrados nos artigos 2.º, 13.º, n.º1, 18.º, n.º 2, e 20.º, n.ºs 1, 3 e 5, da Constituição.
Dito isto, denota-se do requerimento de interposição de recurso e também, naturalmente em termos mais desenvolvidos, das alegações apresentadas, que os recorrentes defendem a paridade entre a posição subjetiva dos credores que vejam suprida a sua aprovação do plano de pagamento, relativamente aos quais é permitido interpor recurso, e a posição dos devedores que viram indeferido o pedido de suprimento da aprovação de qualquer dos credores.
Assim sendo, a dimensão normativa cuja conformidade constitucionalidade vem questionada não incide sobre todos os sujeitos processuais relativamente aos quais tem aplicação a proibição de recurso: também os credores que não sejam oponentes ao plano de pagamento, necessariamente apresentado pelo devedor (artigo 251ª), podem requerer o suprimento pelo tribunal da aprovação de outro(s) credor(es), situação em que assumem a posição de vencidos, sem que lhes seja reconhecida legitimidade para impugnarem junto de instância superior o decidido.
Ora, essa vertente aplicativa da norma que veda o recurso da decisão de indeferimento do suprimento judicial não é visada pelo presente recurso de constitucionalidade, pois os recorrentes são claros na circunscrição do problema em discussão à verificação de desigualdade no acesso ao direito e aos tribunais entre credores e devedores, e não também entre credores.
Em consequência, importa delimitar o objeto do recurso em conformidade com o apontado sentido normativo, ou seja, apreciar a conformidade constitucional da norma contida no n.º 4 do artigo 258.º do CIRE, na medida em que não permite ao devedor recorrer da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação do plano de pagamentos por qualquer credor.
B) Do mérito do recurso
6. Para atingir a resposta à questão que se vem de enunciar, há que começar por proceder ao enquadramento normativo do disposto no n.º 4 do artigo 258.º do CIRE.
O regime de insolvência das pessoas singulares contido no CIRE apresenta, a par do procedimento comum, duas especialidades: a exoneração do passivo restante e o plano de pagamento aos credores. Ambos os institutos visam a diminuição do impacto dos efeitos da declaração de insolvência, sendo o primeiro aplicável à generalidade dos devedores pessoas singulares e o segundo limitado aos devedores não empresários ou titulares de pequenas empresas.
O plano de pagamento aos credores é regulado nos artigos 251.º a 263.º do CIRE, constituindo incidente do processo principal de insolvência, intentado pelo devedor ou por terceiros, e corre por apenso àquele processo (artigo 263.º), dando oportunidade ao devedor de atingir um patamar de concordância com os credores que lhe permita eximir-se a alguns dos efeitos da declaração de insolvência. Nessa dimensão, enquanto processo simplificado para as pessoas singulares fundado em acordo das partes e alternativo ao processo comum, o incidente do plano de pagamento aos credores desempenha função próxima da que no regime precedente, constante do Código de Processo Especial de Recuperação de Empresa e Falência (CPREF), era assumido pela concordata particular, embora aí limitada ao devedor insolvente não titular de empresa (cfr. artigos 240.º e segs.). Mesmo que, como sublinham CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, o distinto âmbito subjetivo e o sistema em que se insere comportem mais aspetos inovadores do que pontos comuns com a regulação dos artigos 240.º e segs. do CPREF (cfr. Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2008, p. 810 e segs).
O escopo legal, como se disse, é o de evitar a aplicação às pessoas singulares que se encontrem nas situações previstas no artigo 249.º de alguns dos efeitos principais da declaração de insolvência. Embora a aprovação do plano de pagamentos não obste à declaração de insolvência do devedor, até porque a lei associa a apresentação do plano à confissão do estado de insolvência, ao menos iminente (cfr. artigo 252.º, n.º 4), a verdade é que posterga alguma das suas consequências mais nefastas, em particular a liquidação da massa insolvente, a publicitação da situação de insolvência e a abertura do incidente de qualificação da insolvência. Tal propósito encontra expressão no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, que aprovou o CIRE, onde se diz: “(...) O incidente do plano abre caminho para que as pessoas que dele podem beneficiar sejam poupadas a toda a tramitação do processo de insolvência (com apreensão de bens, liquidação, etc.), evitem quaisquer prejuízos para o seu bom nome ou reputação e se subtraíam às consequências associadas à qualificação da insolvência como culposa”.
Assim, quando o devedor for uma pessoa singular e, em alternativa, não tiver sido titular da exploração de qualquer empresa nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, ou, à data do início do processo, não tiver dívidas laborais, o número dos seus credores não for superior a 20 e o seu passivo global não exceder 300.000,00€ (artigo 249.º, n.º 1), pode apresentar um plano de pagamentos aos credores conjuntamente com a petição inicial do processo de insolvência (artigo 251º); ou, caso não seja o requerente, em alternativa à contestação (artigo 253º).
Em qualquer dos casos, quando pretenda valer-se da exoneração do passivo restante para a hipótese de o plano de pagamentos não ser aprovado pelos credores, o devedor carece de requerer subsidiariamente esta medida, sob pena de preclusão da mesma (artigo 254.º do CIRE).
Nos termos do artigo 252.º, n.ºs 1 e 2, o plano de pagamentos deve conter uma proposta razoável de satisfação dos direitos dos credores, por forma a obter a respetiva aprovação, tendo em conta a situação do devedor, podendo prever, designadamente, moratórias, perdões, constituição ou extinção de garantias, um programa escalonado de pagamentos ou o propósito de liquidar todos os créditos numa só prestação e quaisquer outras medidas concretas suscetíveis de melhorar a situação patrimonial e a solvabilidade do devedor.
Essa proposta é sujeita a controlo negativo de viabilidade pelo juiz, ao qual cabe encerrar o incidente quando seja altamente improvável que o plano de pagamento venha a merecer aprovação dos credores, decisão de que não cabe recurso (artigo 255.º, n.º 1). Quando assim não aconteça, o juiz determina a suspensão do processo de insolvência até à decisão do incidente, seguindo-se a notificação do credor requerente da insolvência, se for o caso, e a citação dos demais credores constantes da relação de créditos para, alem de se pronunciarem sobre esse relacionamento, analisarem o plano proposto e decidirem sobre a sua aprovação (artigos 255.º, n.º 1, parte final e 256.º).
O plano de pagamentos considera-se aprovado se nenhum credor o tiver recusado ou se a aprovação dos credores oponentes for objeto de suprimento judicial (artigo 257º, nº 1 do CIRE), o que pode acontecer, a requerimento do devedor ou de alguns dos credores aceitantes, se houver aceitação do plano por credores cujos créditos representem mais de dois terços do valor total dos créditos relacionados pelo devedor, verificados certos requisitos cumulativos (artigo 258º, n.º 1).
Caso aprovado por todos os credores, ou aprovado por credores que representem mais de dois terço do valor total dos créditos relacionados pelo devedor e suprida aprovação dos demais, o plano de pagamentos é homologado pelo juiz, seguindo-se, após trânsito, a declaração de insolvência do devedor no processo principal, apenas com as menções da data e hora e identificação do devedor insolvente (artigos 36.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 259.º, n.º 1), não ficando o devedor privado dos poderes de administração do seu património nem se produzem quaisquer dos efeitos que normalmente correspondem à declaração de insolvência (artigos 39.º, n.º 7, al. a) e 259.º, n.º 1).
Quando assim aconteça, a sentença de homologação do plano de pagamentos e a sentença de declaração de insolvência podem ser objeto de recurso ou de oposição por embargos pelos credores cuja aprovação haja sido judicialmente suprida (artigo 259.º, n.º 3).
Para além disso, as sentenças de homologação do plano de pagamentos e de declaração de insolvência, bem como a decisão de encerramento do processo não são objeto de qualquer publicidade ou registo (259.º, n.º 5). Como apontam CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA esse regime comporta “um benefício significativo para o devedor que, por assim dizer, vê limitado o conhecimento da sua precária situação à esfera restrita daqueles a quem, no imediato, afeta” (ob. cit., p. 831). Também CATARINA SERRA, alude a que “o plano de pagamentos pode constituir uma solução discreta para o problema da insolvência da pessoa singular” (O Regime Português da Insolvência, Almedina, 2012, p. 170). Acresce que, em virtude de não vir a ser aberto o incidente de qualificação da insolvência, pois o trânsito em julgado das sentenças de homologação do plano de pagamento e de declaração da insolvência opera o encerramento do processo (artigo 259.º, n.º 4), fica afastada a possibilidade desta ser declarada culposa.
A doutrina aponta a influência que exerceu, neste ponto do regime do CIRE, o Chapter 13 plan previsto no U.S. Bankruptcy Code, e também o acolhimento de figura similar no direito alemão, no âmbito dos quais são previstas ferramentas judiciais de imposição da redução de créditos e da aceitação de um plano de recuperação do devedor pessoa singular, em especial face a credores mutuários com garantia real (designado por cramdown power). Refere, a este propósito, CATARINA SERRA: “O cramdown power tem origem, mais uma vez, no Direito norte-americano, mas estendeu-se com adaptações, a alguns ordenamentos europeus, designadamente o alemão. Aplica-se – tanto ele como o seu equivalente alemão – tendencialmente no âmbito das medidas de recuperação. Na InsO, consagrou-se, em rigor, uma proibição de bloqueio (Obstruktionsverbot), com base na qual o juiz aprecia a oportunidade do Insolvenzplan relativamente ao grupo de credores que o rejeitou, devendo considerar que existe acordo de certo grupo sempre que a maioria dos grupos o tiver aprovado e for presumível que os credores desse grupo não ficarão, por efeito dele, numa situação mais desfavorável do que aquela em que se encontrariam na ausência dele” (ob. cit., p. 169 e 170; vd. igualmente LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito da Insolvência, Coimbra Editora, 2009, p. 320, nota 358; e MENEZES CORDEIRO, Introdução ao Direito da Insolvência, O Direito, ano 137.º, 2005, III, 504).
Caso tenha lugar o desfecho oposto - i.e. quando o plano de pagamentos não obtém aprovação de todos os credores relacionados, ou obtém apenas concordância de parte dos credores e não seja suprida a aprovação dos credores oponentes - é proferida sentença de insolvência nos termos gerais dos artigos 36.º ou 39.º, consoante o caso (artigo 262.º), a menos que, ao apresentar o plano de pagamentos o devedor tenha requerido, a título subsidiário, a exoneração do passivo restante, situação em que é aberto o respetivo incidente (artigo 254.º).
Isto sem que o devedor possa impugnar por via de recurso a decisão judicial que negue o suprimento por si peticionado, por a tal obstar a norma cuja constitucionalidade vem questionada.
7. Entendem os recorrentes que este impedimento ao recurso infringe os princípios consagrados nos artigos 2.º, 13.º, n.º 1, 18.º, n.º 2 e 20.º, n.ºs 1, 4 e 5 da Constituição, no essencial, por duas ordens de razões: i) por um lado, porque procede a tratamento discriminatório dos devedores, na medida em que lhes veda o direito ao recurso da decisão que indeferiu o pedido de suprimento de aprovação dos credores que não aprovaram o plano de pagamentos por si apresentado, o mesmo não sucedendo em relação aos seus credores, que poderão recorrer da decisão que defira esse mesmo pedido de suprimento; ii) por outro lado, a norma em causa impede os devedores de impugnarem decisão que acarreta forçosa e necessariamente consequências gravosas para a sua situação pessoal e patrimonial, que seriam evitadas caso vingasse o plano de pagamentos, constituindo, nessa ótica, a opção legislativa uma restrição intolerável ao direito de acesso ao direito e aos tribunais, no seu confronto com a eventual realização dos direitos patrimoniais dos credores relacionados.
8. Na argumentação que desenvolvem, os recorrentes reconhecem que a jurisprudência deste Tribunal afasta que resulte da Constituição a garantia de um duplo grau de jurisdição em processo civil (cfr. conclusão B).
Efetivamente, em matéria de direito ao recurso jurisdicional, o Tribunal Constitucional tem afirmado uniforme e repetidamente que não resulta da Constituição, em termos genéricos, nenhuma garantia do duplo grau de jurisdição; nem tal direito faz parte integrante e necessária do princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, expressamente consagrado no artigo 20.º da Constituição (cfr., por todos, os Acórdãos n.ºs 44/2008 e 339/2011, acessíveis, como os demais referidos, em www.tribconstitucional.pt, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª edição, nota XXI ao artigo 20.º, pp. 449 a 452, e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª edição revista, nota XIV ao artigo 20.º, p. 418).
Como se referiu, designadamente, no Acórdão n.º 202/99, o direito que o artigo 20.º, n.º 1, da Constituição a todos assegura de “acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos” consiste no “direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência, e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade no que diz respeito à defesa dos respectivos pontos de vista (designadamente sem que a insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal possibilidade)”. Da previsão constitucional decorre ainda que a tutela jurisdicional dos direitos e interesses legalmente protegidos deve ser efetuada “mediante processo equitativo” e cujos procedimentos possibilitem uma “decisão em prazo razoável” e sejam “caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos” (n.ºs 4 e 5 do referido artigo 20.º da CRP).
A exigência de um duplo grau de jurisdição apenas está expressamente consagrada no âmbito do processo penal e relativamente a decisões condenatórias ou que afetem a liberdade do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da CRP). Para além disso, esse direito é considerado por alguma doutrina e jurisprudência, embora com fundamentação não inteiramente coincidente, como inerente à proteção contra decisões jurisdicionais que imponham restrições a direitos, liberdades e garantias pessoais.
Fora desses domínios específicos, o legislador ordinário goza de ampla margem de conformação do direito ao recurso, podendo regular diversamente a possibilidade e o modo de impugnação das decisões jurisdicionais. Refere LOPES DO REGO: “fora do âmbito processual penal, vem sendo uniformemente entendido pela jurisprudência constitucional que a garantia de um duplo grau de jurisdição não goza de proteção generalizada, não se podendo, nomeadamente, considerar incluída no direito de acesso aos tribunais – e gozando, consequentemente, o legislador infraconstitucional de uma ampla margem de discricionariedade legislativa” (Estudos em Memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida, 2007, p. 853).
Contudo, da não consagração de um direito ao duplo grau de jurisdição em processo civil não decorre que o legislador possa proceder arbitrariamente à regulação dos meios de impugnação das decisões judiciais. Para além da supressão ou inviabilização global da faculdade de recurso – limite que decorre da própria previsão constitucional de tribunais superiores -, as restrições ao direito ao recurso estão sujeitas aos princípios estruturantes do Estado de direito democrático e, de um modo especial, aos princípios da igualdade e da proporcionalidade, ambos invocados como violados pelos recorrentes.
No que respeita ao primeiro, é entendimento abundante e reiterado deste Tribunal que o princípio da igualdade não proíbe ao legislador que faça distinções, mas apenas diferenciações de tratamento sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional (cfr., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 319/2000 e 460/2011 e, entre outros autores, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ob. cit., p. 339); avaliação que se obtém mediante a ponderação da ratio das soluções em confronto e aferição destinada a determinar se a diferenciação possui fundamento razoável. Neste domínio, o Tribunal Constitucional controla sobretudo o respeito pela proibição do arbítrio, enquanto critério negativo e limitador da liberdade do legislador ordinário.
Desta forma, como se afirmou no Acórdão n.º 202/99, a ampla margem de discricionariedade na concreta conformação e delimitação dos pressupostos de admissibilidade e do regime dos recursos que deve ser reconhecida ao legislador ordinário em processo civil tem como “limite a não consagração de regimes arbitrários, discriminatórios ou sem fundamento material bastante, em obediência ao princípio da igualdade”.
Para além disso, tem de ser respeitado o princípio da proporcionalidade, enquanto princípio geral de limitação do poder público, decorrente do próprio princípio geral do Estado de Direito (artigo 2.º da Constituição). Impõem-se, na realidade, limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as medidas eleitas para a sua prossecução, devendo o legislador ajustar a sua projetada ação de modo a não conformar medidas desadequadas, desnecessárias ou excessivamente restritivas.
9. Deixadas estas considerações, importa, pois, atentar na teleologia que preside à opção legislativa impugnada.
A decisão recorrida sublinha, com inteira propriedade, que a norma impugnada encontra inscrição em regime de insolvência cuja finalidade primordial reside na satisfação do interesse dos credores. É o que resulta do artigo 1.º do CIRE e se declara, de modo perentório, no n.º 3 do preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE, ao definir como “objetivo precípuo” do processo de insolvência “a satisfação, pela forma mais eficiente possível dos direitos dos credores” (sobre as finalidades do processo de insolvência no CIRE, cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Pressupostos objetivos e subjetivos da insolvência, Revista Themis, 2005, pp. 11 e 12). Finalidade que pode ser atingida através da liquidação universal do património do devedor insolvente ou, em alternativa, por via da confluência de vontades dos credores na aprovação de um plano de pagamentos, no âmbito da sua autonomia privada. Como salienta MENEZES CORDEIRO, a primazia da satisfação dos credores e a ampliação da autonomia da autonomia privada dos credores constituem os vetores principais do regime instituído no CIRE: “A reforma não se limitou a reconhecer a primazia da satisfação dos credores, como o objetivo último de todo o processo: ela consigna meios diretos para a prossecução desse encargo e, designadamente: coloca nas mãos dos credores as decisões referentes ao património do devedor e à sua liquidação” (ob. cit., p. 501 e 502).
O incidente do plano de pagamento não se afasta dessa ratio, nem pode ser visto como inversão do paradigma da insolvência, acolhendo o predomínio do interesse (e da vontade) do devedor sobre os interesses dos credores. Pelo contrário, constitui uma alternativa ao curso comum do processo e à declaração de insolvência com todos os seus efeitos, por certo mais favorável ao devedor, mas sem preterir o interesse primordial do processo de insolvência: satisfação do interesse dos credores – de todos os credores - condição necessária do seu sucesso, avaliação que é deixada por regra ao livre exercício da autonomia dos titulares do direito creditício, em toda a sua amplitude, porque sem qualquer critério normativo condicionador.
Como sublinham CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, “as medidas do plano devem ser tais que assegurem aos credores a satisfação dos seus interesses em medida que os leve a aceitá-lo, por ser, pelo menos, correspondente à satisfação que o prosseguimento do processo de insolvência, nas suas várias fases, razoavelmente acarretaria” (ob. cit., p. 812). No mesmo sentido depõe JOSÉ ALBERTO VIEIRA, quando refere: “a aprovação do plano de pagamentos resulta da aceitação de todos os credores, independentemente do peso relativo de cada credor na situação patrimonial do devedor. E basta a rejeição de um só credor para por em crise a aprovação do plano de pagamento. Sem unanimidade, o plano de pagamentos pode ser rejeitado” (Insolvência dos não empresários e titulares de pequenas empresas, in Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, p. 265).
Nessa medida, exigindo-se a concordância ou, ao menos, a aceitação silenciosa dos credores quanto ao plano de pagamentos apresentado pelo devedor, o suprimento da aprovação do plano de pagamentos não pode ser configurado como direito subjetivo do devedor à aprovação e homologação do plano por si proposto, independentemente do interesse subjacente à subtração a alguns dos efeitos que decorrem da declaração de insolvência nos termos comuns. O plano de pagamento é uma proposta contratual do devedor aos credores, que tem como objeto a aceitação destes, envolvendo, como em geral nas transações, mútuas concessões e o reconhecimento pelos contraentes de um ponto de equilíbrio nas vantagens recíprocas.
Como afirmado pelo recente Acórdão n.º 69/2014, da 1ª secção, que versou a mesma questão normativa aqui em apreço (proferido no processo n.º 407/13, mencionado nas alegações dos recorrentes, e seguido no Acórdão n.º 258/2014, da mesma secção):
«Apesar de poder ser requerido pelo devedor (como por qualquer dos credores que aprovam o plano) o deferimento do suprimento da vontade dos credores, tal como a aprovação do plano de pagamentos, não configuram direitos subjetivos (de tipo potestativo) deste. Apenas se estiverem reunidos os pressupostos previstos nas alíneas do n.º 1 do artigo 258.º do CIRE, o tribunal poderá suprir a aprovação dos demais credores, o que exige do juiz uma complexa avaliação dos dados disponíveis, necessariamente caraterizados ainda por uma forte incerteza em função da fase em que o processo se encontra (desde logo, perante a suspensão do processo de insolvência, os elementos disponíveis quanto à situação do devedor são apenas os fornecidos por este nos anexos ao plano apresentado).»
E, mais adiante:
«[É] inegável a mitigação dos efeitos da declaração da insolvência na sequência de aprovação do plano de pagamentos, quando comparada com a insolvência declarada sem a aprovação de um tal plano. Tenha-se em consideração, em especial, que no caso de aprovação do plano de pagamentos por si apresentado, o devedor não é inibido da administração e disposição dos seus bens, não é aberto o incidente de qualificação da insolvência, nem a sentença é objeto de qualquer publicidade. Estes efeitos não constituem, porém, direitos do devedor, antes configuram consequências da apresentação pelo mesmo de um plano de pagamentos que reuniu a aprovação dos credores, seguramente, por satisfazer os interesses destes.
De todo o modo, as consequências para o devedor da não aprovação do plano que apresentou não integram o conteúdo da decisão de não suprimento da vontade de qualquer credor. Elas surgem apenas como resultado dos atos processuais subsequentes no encadeado lógico que compõe o processo de insolvência e, como tal, não podem deixar de ser avaliadas na ponderação dos equilíbrios que ali se jogam».
Diferentemente, o suprimento da aprovação do plano de pagamentos apresentado pelo devedor constitui, sim, restrição à autonomia privada do credor, cuja justificação não reside na contraposição de interesses entre devedor e credores, dando prevalência ao primeiro, mas em virtude de ponderações intrínsecas ao interesse dos credores oponentes e à proteção do tratamento paritário entre os diversos credores, oponentes e não oponentes.
Assim decorre dos critérios normativos em que assenta a decisão judicial de suprimento da aprovação, com expressão as várias alíneas do n.º 1 do artigo 258.º. A alínea a), exige uma avaliação comparativa das desvantagens económicas que do plano resultem para os credores oponentes, face às que resultariam do prosseguimento do processo de insolvência, havendo exoneração do passivo restante. No final dessa tarefa, que a doutrina reputa de “espinhosa” (CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, ob. cit, p. 827), a conclusão pela desvantagem económica para o credor oponente basta para afastar o suprimento. Por seu turno, a alínea b) limita negativamente o suprimento judicial à ausência de tratamento discriminatório injustificado dos oponentes, representando controlo decorrente do princípio da igualdade entre credores. Trata-se, em substância, de controlar “que os credores recebam um tratamento igualitário no que toca à satisfação dos seus créditos, não obstante as eventuais diferenças entre os seus créditos, e que o plano não constitua uma tentativa de favorecer alguns credores em detrimento dos outros” (JOSÉ ALBERTO VIEIRA, ob, cit., p. 266). Por último, a alínea c), assenta na verificação de dúvidas legítimas apostas pelos credores sobre a veracidade ou completude da relação de créditos apresentada pelo devedor, com consequências desfavoráveis quanto ao tratamento para aqueles previsto no plano de pagamento (CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, ob. cit, p. 828).
10. Resulta deste regime incidental que o interesse primacialmente atendido na concessão de suprimento corresponde ao interesse do credor - agora nas vestes de credor oponente - contra tratamento que afeta negativa e irreversivelmente o seu direito subjetivo no processo de insolvência. Uma vez homologado o plano de pagamentos e encerrado o processo de insolvência, apenas as obrigações deles constantes podem ser exigidas, nos termos em que foram modificadas ou reduzidas (sobre este ponto, cfr. LUÍS MENEZES LEITÃO, ob. cit., p. 331).
Intercedem, igualmente, considerações de celeridade e de eficácia do regime processual de insolvência, em termos constitucionalmente relevantes face ao disposto no artigo 20.º, n.º 5 da Constituição, uma vez que os processos de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, apresentam natureza urgente (artigo 9.º do CIRE). Recorde-se que o incidente em que se inscreve a norma questionada é suscetível de ser encerrado liminarmente, em função de juízo de manifesta evidência da sua inviabilidade (“situações limite”, como aponta JOSÉ ALBERTO VIEIRA, ob. cit., p. 263), caso em que se encontra igualmente vedado o recurso do devedor (artigo 255.º, n.º 1 do CIRE). Denota-se, logo aí, a preocupação do legislador em acautelar a dilação indevida do incidente, tendo em atenção o efeito suspensivo do processo de insolvência que acarreta, o que encontra incidência acrescida num momento em que o juízo de inviabilidade quanto à aprovação já não é probabilístico; no momento regulado pelo artigo 258.º não se mostra necessária prognose sobre a reação de um credor normal, pois encontra-se adquirida a efetiva resposta negativa de credores ao plano de pagamentos, o que faz confere à normação impeditiva do recurso do devedor contida no seu n.º 4 a força do argumento de maioria de razão.
Mostra-se, então, razoável e justificado, sem entorse ao princípio da igualdade na dimensão de igualdade de armas ou de posições no processo, decorrente do princípio do processo equitativo, que a legitimidade recursória seja conferida apenas ao sujeito que vê a sua vontade assim contrariada e sofre modificação ou restrição no seu direito de crédito. O interesse do devedor existe, é certo, na medida em que depende dessa decisão para mitigar as consequências pessoais e patrimoniais mas revela-se como interesse subordinado, não podendo ser colocado no mesmo plano da satisfação eficiente e eficaz dos direitos dos credores, objetivo precípuo do processo de insolvência. Permanecem aplicáveis, uma vez afastada a alternativa que constitui o processo simplificado de insolvência das pessoas singulares, as medidas de proteção do património do devedor conferidas no âmbito do regime comum de insolvência.
Também assim se entendeu no Acórdão n.º 69/2014, em termos transponíveis para os presentes autos:
«Ora, do regime legal descrito decorre que a decisão judicial de suprimento da aprovação do plano de pagamentos, e sua consequente homologação, coloca os credores oponentes numa posição processual particular que não encontra paralelo nem na posição dos demais credores, que deram o seu assentimento ao plano, nem na posição do devedor que o propôs.
Tão-pouco existe paralelo com a posição jurídico-processual que para o devedor deriva do indeferimento do pedido, por si apresentado, de suprimento da aprovação de alguns credores. É que neste caso, o processo de insolvência segue os seus termos normais, gozando os devedores de todos os direitos previstos no CIRE, entre os quais se conta, designadamente, o direito de recorrer da decisão que vier a declarar a insolvência.
Diferentemente dos credores, cuja oposição ao plano de pagamentos é suprida por decisão do juiz (e, nessa medida, veem o seu direito de crédito modelado ou restringido contra a sua vontade), o devedor, que não veja deferido o pedido de suprimento da vontade dos credores oponentes do plano, não sofre qualquer alteração na sua esfera de direitos com a decisão de indeferimento.
Esta diferença afasta a verificação de arbítrio no reconhecimento de direito ao recurso apenas aos primeiros, não se apresentando como discriminatória a diferença de tratamento assinalada. O legislador limitou-se a instituir vias de solução diferentes para situações também elas diferentes, abrindo o acesso ao recurso apenas àqueles a quem a decisão judicial (neste caso de suprimento de vontade) impõe uma restrição na sua esfera de direitos.
Não há, assim, um tratamento discriminatório na norma em análise que desrespeite o princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição).»
11. O mesmo se diga quanto ao respeito pelo princípio da proporcionalidade.
Face aos fins de política legislativa que a orientam, não se vislumbra que a norma impugnada não apresente suficientes credenciais de observância das exigências de adequação, necessidade e respeito pela justa medida, contidas no princípio da proporcionalidade, respeitando, outrossim, a margem de autonomia do legislador democraticamente legitimado na limitação do acesso dos sujeitos processuais – in casu do devedor - a um único grau de jurisdição.
12. Em suma, equacionados os vários interesses em presença no pedido de suprimento da vontade de alguns credores, assim como a sua articulação com a prossecução do processo de insolvência em tempo côngruo e no respeito por adequada racionalização do sistema judiciário, conclui-se que o não reconhecimento ao devedor do direito ao recurso da decisão que indefere esse pedido, decorrente do artigo 258.º, n.º 4, do CIRE encontra inscrição na liberdade de conformação do legislador e não se apresenta desprovida de fundamento material razoável na diferenciação que estabelece, nem se mostra desproporcionada. Não merece, pois, censura à luz dos princípios invocados como parâmetros pelos recorrentes, constantes dos artigos 2.º, 13º, n.º 1, 18.º, n.º 2, e 20º, n.ºs 1, 4 e 5, da Constituição, ou de quaisquer outros.
Cumpre, nestes termos, concluir pela improcedência do recurso.
III. Decisão
13. Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma contida no n.º 4 do artigo 258.º do CIRE, na medida em que não permite ao devedor recorrer da decisão que indefira o pedido de suprimento da aprovação do plano de pagamentos por qualquer credor;
E, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso;
c) Condenar os recorrentes nas custas, fixando-se em 25 (vinte e cinco) Ucs a taxa de justiça, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido e apreciado.
Lisboa, 7 de maio de 2014. – Fernando Vaz Ventura - João Cura Mariano – Pedro Machete - Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.