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Processo n.º 1227/2013
2ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, A. reclamou, em 30 de abril de 2013 (fls. 1 a 5), ao abrigo do n.º 4 do artigo 76º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho proferido pelo Juiz-Relator junto da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, em 28 de maio de 2013 (fls. 54 e 55), que rejeitou recurso de constitucionalidade por si interposto, em 18 de abril de 2013 (fls. 14 e 104), por falta de suscitação processualmente adequada da questão, conforme determinado pelo artigo 72º, n.º 2, da LTC.
2. Da reclamação consta a seguinte argumentação, que ora se sintetiza:
«(…)
5°. No recurso interposto pela ora Reclamante, para o douto Tribunal da Relação do Porto, em 20 de setembro de 2012, foi demostrado o seu inteiro desacordo com a decisão do Tribunal a quo, suscitando variadíssimos vícios.
6°. Em resposta a esse recurso, o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, do Tribunal da Relação, emitiu o seguinte parecer no que para o caso interessa:
'No caso em apreço, os recorrentes insurgem-se contra a decisão sobre a matéria de facto provada - a recorrente A. quanto a factualidade descrita sob os pontos A,C,O,E,F,H,I,O,P,O e R, nos segmentos que lhe dizem respeito, e o recorrente B. quanto à factualidade descrita sob os pontos O,G,H,I,O,P,O e R, - em seu entender, erradamente dada como provada, porque sem sustentação na prova produzida em audiência.
Em síntese, acham os recorrentes que nem os documentos juntos aos autos nem a prova pericial e testemunhal produzida em audiência permitem concluir que algum deles tenha, de alguma forma participado na prática dos factos por que foram acusados e por que acabaram condenados em 1a instância: sejam os respeitantes à falsificação dos documentos necessários para a obtenção do financiamento seja os relativos à tentativa de obtenção do veículo automóvel.
Considera, ainda a recorrente A., na sua motivação, que o tribunal 'considerou e fundamentou a sua decisão na análise crítica das declarações prestadas pela ofendido e demandante e das testemunhas de acusação e de defesa, não tendo no entanto considerado o exame pericial junto aos autos, para efeitos de prova, o que deveria ter ocorrido'.
Tal crítica - se é verdade que se centra na invocada insuficiência da prova para a condenação pelos crimes de falsificação de documento e de burla - aponta, também, para que o que nos parece ser, por agora, a principal deficiência da sentença impugnada, qual seja a de não deixar claro, na sua fundamentação, o porquê de ter proferido decisão condenatória.
O que vale por dizer, na nossa ótica, que a sentença enferma de nulidade por insuficiência da fundamentação, nos termos previstos na alínea a) do nº 1 do artigo 379º e n.º2 do artigo 374º, ambos do C. P. Penal.
7° Não obstante o Tribunal da Relação do Porto, no seu douto acórdão, decidiu da seguinte forma:
'Conforme já ficou referido o Sr. Procurador- Geral Adjunto, junto deste Tribunal, no seu parecer invocou as nulidades de insuficiência da fundamentação e omissão de pronuncia previstas nos artigos 374 n.º 2 e 379 n.º 1 al a) e al. c) ambos do CPP, que entende que inquinam a sentença recorrida.
Sobre este ponto diremos apenas que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes que não suscitaram estas questões, não tendo havido recurso do M. Publico.
Sabemos que já quem defenda que o conhecimento destas nulidades é oficioso e por isso pode sempre ser suprido por este tribunal de recurso. Porém, nas relações a questão não tem sido liquida, e defendemos a posição contrária...
A recorrente A. invoca estes vícios mas tudo indica que os confunde com o que considera falta de prova para os factos dados como provados e com a divergência da convicção formada pelo julgador relativamente aos mesmos factos.'
8°. Por entender que a interpretação contida no acórdão recorrido, do Tribunal da Relação do Porto, a páginas 30, 3º parágrafo, relativa ao artigo 379º n.º 1 al. a) e al. c) e n.º 2 do CPP, vai no sentido de que as nulidades ai previstas não são insanáveis, e por isso de conhecimento oficioso do Tribunal, interpretação essa que viola o princípio das garantias de defesa, previsto no artigo 32º da CRP, a ora Reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional.
9°. Recurso que não foi admitido, por o Digníssimo Desembargador ter entendido que a constitucionalidade da norma legal não foi anteriormente arguida no processo.
10°. A questão da constitucionalidade apenas é suscitada pela Reclamante no presente requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, por não ter tido oportunidade processual de levantar a questão antes de ter sido proferida a decisão, pelo que, salvo devido respeito, lhe deverá ser reconhecido o direito de recurso, uma vez que foi apenas o douto acórdão recorrido que fez a interpretação e aplicação da questão da oficiosidade da nulidade da sentença, cuja inconstitucionalidade a reclamante vem arguir, não podendo a reclamante prever antecipadamente que uma tal decisão viesse a ser tomada.
11°. Contudo é jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional que não tem de ser suscitada previamente uma questão de inconstitucionalidade com a qual a reclamante não devesse contar.
12°. É manifestamente o caso.
13°. O entendimento normativo, de que as nulidades de sentença não são de conhecimento oficioso, que implicitamente foi dado pelo acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto é inconstitucional, com fundamento em violação do direito das garantias de defesa previsto no artigo n.º 32 n° 1 da CRP, bem como do direito a um processo equitativo, previsto no artigo 20° n.º4 da CRP.
14° A Reclamante não podia prever que tão insólito entendimento iria ser adotado.
15°. A reclamante não podia contar com esse entendimento.
16°. Assim sendo, a reclamante não podia ter suscitado tal questão da inconstitucionalidade em momento anterior.
17°. Pelo exposto, deve ser admitido o recurso, para discutir a questão da inconstitucionalidade acima assinalada.» (fls. 2 a 4)
3. Em sede de vista, ao abrigo do n.º 2 do artigo 77º da LTC, o Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se nos seguintes termos:
«1. Por acórdão de 21 de março de 2013, a Relação do Porto, concedendo parcial provimento ao recurso interposto da decisão condenatória proferida em 1.ª instância, condenou a arguida A. e outro, em cúmulo, na pena de um ano e oito meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, na condição de ser paga ao ofendido a quantia arbitrada a título de indemnização.
2. Notificada desse acórdão, a arguida interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, enunciando a seguinte questão de inconstitucionalidade:
“O presente recurso destina-se a apreciar a constitucionalidade da interpretação contida no acórdão ora recorrido do Tribunal da Relação do Porto a páginas 30, 3.º parágrafo, relativa ao artigo 379.º n.º 1 al. a) e al. c) e n.º 2 do CPP, no sentido de que as nulidades aí previstas não são insanáveis e por isso de conhecimento oficioso do tribunal, interpretação essa que viola o princípio das garantias de defesa previsto no artigo 32 da CRP.
3. Como o recurso não foi admitido, a recorrente reclamou para este Tribunal Constitucional.
4. Embora não venha referido expressamente, parece resultar do conteúdo do requerimento de interposição do recurso e da presente reclamação que estará em causa a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), sendo certo ainda que esta omissão era suprível (artigo 75.º-A, n.ºs 5 e 6 da LTC).
5. Assim, entendendo-se que o recurso vem interposto ao abrigo daquela alínea, um dos pressupostos de admissibilidade consiste em a questão de constitucionalidade ser suscitada adequadamente “durante o processo”.
6. Os recorrentes só estão dispensados do cumprimento desse ónus quando a interpretação acolhida na decisão recorrida tiver natureza insólita, inesperada e imprevisível, sendo desrazoável exigir-lhes que sobre ela fizessem uma antevisão da sua aplicação.
7. Vejamos pois se, no caso corrente, a interpretação enunciada como devendo constituir objeto do recurso, tem aquela natureza e se a recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar previamente a questão de inconstitucionalidade.
8. O Ministério Público junto da Relação do Porto, no parecer que emitiu (artigo 416.º, n.º 1, do CPP) suscitou como questões prévias “a nulidade da sentença por insuficiência de fundamentação” e da “nulidade da sentença por omissão de pronúncia”.
9. Analisando a sentença então recorrida, aquele magistrado, fundamentadamente, entendeu:
“Pelo exposto, emitimos parecer no sentido de que – sem se conhecer das demais questões suscitadas pelos recorrentes -, seja declarada parcialmente nula a sentença recorrida, por insuficiência da fundamentação (artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a), do C.P. Penal) e omissão de pronúncia (artigo 379.º, n.º 1, al. c), do C.P. Penal, e se devolva o processo ao tribunal a quo, a fim de aí ser proferida nova decisão que supra os apontados vícios.”
10. A Relação, no acórdão recorrido, entendeu, contudo, o seguinte:
“Assim, não sendo as nulidades previstas no art. 379 n.º 1 als. a) e c) do CPP insanáveis e, por isso, de conhecimento oficioso, e não tendo sido interposto recurso pelo M. Público com tal objeto, nem invocadas pelos recorrentes, não pode este Tribunal de recurso conhecer das mesmas nem supri-las, pois, além de os vícios estarem sanados, trata-se de questão estranha ao objeto do presente recurso.”
11. Em abono daquele entendimento, a Relação cita jurisprudência e doutrina, embora reconhecendo que a “questão não tem sido líquida”.
12. A recorrente foi notificada daquele parecer do Ministério Público, porém, não respondeu, como vem certificado a fls. 71.
13. É a própria recorrente que, no requerimento de interposição do recurso, afirma:
“Esta questão da inconstitucionalidade surge no processo, porquanto o mesmo está ferido de nulidade devidamente identificada no recurso da recorrente para o Tribunal da Relação do Porto, tendo sido inclusive amplamente corroborada no parecer do digníssimo Procurador do Ministério Público da Relação do Porto, que entendeu, e bem, que o conhecimento da nulidade deve operar oficiosamente, sob pena de violação das mais elementares regras de defesa do arguido, constantes do citado artigo 32.º da CRP.”
14. Posição que reiterou na presente reclamação.
15. Parece-nos pois, que a interpretação acolhida pela Relação, como, aliás, se demonstra no acórdão, não é anómala ou insólita e a recorrente teve plena oportunidade processual de suscitar a questão de inconstitucionalidade da interpretação que entende não serem as nulidades em causa de conhecimento oficioso: quando foi notificada do parecer do Ministério Público, a fim de lhe poder responder (artigo 417.º, n.º 2, do CPP), o que não fez.
16. Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Posto isto, cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Apesar da falta de indicação expressa, torna-se inquestionável que o recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC. Assim sendo, conforme aliás já notou o despacho reclamado, forçoso seria que a recorrente tivesse suscitado a questão de constitucionalidade que pretende ver agora apreciada, em sede de recurso, em tempo oportuno, ou seja, perante o tribunal recorrido.
Contudo, alega a recorrente que só não o fez porque a decisão recorrida se revestiria de uma natureza surpreendente e, por conseguinte, não lhe teria permitido antecipar ou sequer configurar a possibilidade de a interpretação normativa em crise poder vir a ser aplicada, como o foi, pelo tribunal recorrido. Sem qualquer razão, porém.
Em boa verdade, a recorrente foi confrontada com a questão da nulidade da sentença por insuficiência da fundamentação [cfr. artigo 374º, n.º 2, e artigo 379º, n.º 1, alínea a), do CPP] e por omissão de pronúncia [cfr. artigo 379º, n.º 1, alínea c), do CPP], logo quando o representante do Ministério Público, junto do Tribunal da Relação do Porto, proferiu o seu parecer. Ora, face à invocação de tais fundamentos de nulidade, a recorrente não podia ter deixado de equacionar que o tribunal recorrido teria que ponderar se tais nulidades seriam de conhecimento oficioso, por serem insanáveis, ou não. Além disso, a própria decisão recorrida dá conta quer da posição doutrinária expressa por Germano Marques da Silva (cfr. Curso de Processo Penal, III Volume, 2000, p. 304) e por Vinício Ribeiro (cfr. Código de Processo Penal – Notas e Comentários, 2ª edição, 2011, in anotação ao artigo 379º do CPP), quer por alguma jurisprudência (Acórdão de 03 de outubro de 2007, do Tribunal da Relação do Porto), ainda que não consensual ou unânime, que sufragam posição similar à adotada pelo tribunal recorrido. Na medida em que estes elementos interpretativos auxiliares são prévios às alegações de recurso (e à resposta ao parecer) da recorrente, esta não poderia ter deixado de os ponderar, prevenindo assim a possibilidade da sua aplicação, através da suscitação da respetiva inconstitucionalidade.
Do exposto resulta não poder afirmar-se, de modo algum, que a interpretação normativa acolhida pelo tribunal recorrido fosse insólita ou inusitada e, por conseguinte, surpreendente. Pelo contrário, apesar da divergência doutrinária e jurisprudencial vigente, ela constitui uma das posições possíveis face à letra da lei, devendo assim a recorrente ter antecipado a possibilidade da sua aplicação e, consequentemente, suscitando, logo em sede de alegações de recurso, a sua inconstitucionalidade. Não o tendo feito, em tempo oportuno, mais não resta que confirmar a decisão reclamada, por incumprimento do ónus processual que decorre do n.º 2 do artigo 72º da LTC.
III – Decisão
Nestes termos, pelos fundamentos supra expostos e ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 77º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 9 de janeiro de 2014. – Ana Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.