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Processo n.º 1348/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A., recorrente nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, foi condenado, por sentença do 4.º Juízo Criminal de Lisboa, de 16 de abril de 2012, pela prática de um crime fiscal, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução sob a condição de demonstrar, no mesmo prazo, o pagamento ao Estado da prestação tributária em dívida.
Recorreram, para o Tribunal da Relação de Lisboa, o arguido e o Ministério Público.
A Relação de Lisboa, por acórdão de 16 de abril de 2013, negou provimento ao recurso do arguido e concedeu provimento ao recurso do Ministério Público, revogando a sentença recorrida na parte em que suspendeu a pena de prisão e condenando o arguido na pena de dois anos de prisão efetiva.
O arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento nos artigos 399.º, 432.º, n.º 1, alínea b), e 400.º, n.º 1, a contrario, todos do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, invocando ser esta a versão aplicável do Código em apreço, uma vez que era a que vigorava à data da prolação e depósito da decisão de primeira instância, e tendo em conta o Acórdão n.º 4/2009, do Supremo Tribunal de Justiça. Suscitou ainda as seguintes inconstitucionalidades:
a) A inconstitucionalidade do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, na interpretação segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a 5 anos quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, por violação do princípio da legalidade criminal, como foi decidido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 591/2012;
b) A inconstitucionalidade da «norma extraída das disposições conjugadas do artigo 5.º, n.º 2, alínea a), e 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual é imediatamente aplicável esta última norma aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, após a entrada em vigor da referida lei, em processo-crime cuja decisão em 1.ª instância tenha sido proferida antes da entrada em vigor daquela lei e que não tenha sido confirmada pelo tribunal da relação», por violação do disposto nos artigos 20.º, e 32.º, n.º 1, da Constituição.
O recurso foi admitido na Relação (fls. 1233).
O Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se no sentido da inadmissibilidade do mesmo. Notificado do parecer, o arguido apresentou resposta, mencionando, na mesma, o Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 324/2013, que, decidindo recurso por oposição de julgados em que o mencionado Acórdão n.º 591/2012 era o acórdão recorrido, julgou inconstitucional, por violação do princípio da legalidade criminal, a interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c), do n.º 1, do artigo 432.º, e da alínea e), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena não privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade.
2. Por decisão sumária de 23 de outubro de 2013 (fls. 1273 e seguintes), o Conselheiro Relator no Supremo Tribunal de Justiça rejeitou o recurso com fundamento em irrecorribilidade da decisão, face ao disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, uma vez que, consubstanciando a norma resultante desta última alteração uma norma interpretativa, a mesma seria imediatamente aplicável:
« Como lei interpretativa, a nova lei integra-se na lei interpretada, nos termos do art. 13.º, n.º 1, do Código Civil, e deve ser aplicada imediatamente, não podendo ser arguida de retroativa, uma vez que ela já correspondia a uma das interpretações possíveis da lei, não sendo assim suscetível de frustrar expetativas seguras e legitimamente fundadas por parte do arguido.»
A decisão sumária abordou ainda o já referido Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 324/2013, e a sua eventual relevância para a matéria decidenda, nos seguintes termos:
« Não se ignora que o TC, revendo e invertendo a posição numerosas vezes enunciada quanto à não inconstitucionalidade da posição definida nesta 3ª Secção, acabou por, em acórdão proferido em plenário, “julgar inconstitucional a interpretação normativa resultante da conjugação das normas da al. c) do nº 1 do art. 432º e da al. e) do nº 1 do art. 400º do CPP, na redação da Lei nº 48/2007, de 29-8, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (arts. 29º, nº 1 , e 32º, nº 1 , da CRP).”(…)
Contudo, este acórdão, proferido ao abrigo do nº 5 do art. 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional, não tem força obrigatória geral, mas apenas eficácia no processo, nos termos do art. 80º, nº 1, da mesma lei.
Por outro lado, a decisão, baseada na ofensa do princípio da legalidade em matéria penal, não é convincente. Na verdade, segundo esse acórdão, a redação da al. e) segundo a Lei nº 48/2007, de 29-8, não comporta a extensão à pena de prisão efetiva, superior ou não superior a 5 anos. E daí que conclua que essa extensão extravase da interpretação e se situe no campo da analogia, violando assim o citado princípio da legalidade.
Mas, como se acentua no voto de vencido do Cons. Vítor Gomes, o TC excede os seus poderes de cognição, uma vez que “para concluir pela violação do art. 29º da CRP (...) o acórdão averigua diretamente, assumindo-a como tarefa sua, se o sentido com que a norma da al. e) do nº 1 do art. 400º do CPP foi aplicado pelo STJ é comportado pelos termos do preceito legal.”
E nessa análise ignora ostensivamente a natureza interpretativa da redação introduzida pela Lei nº 20/2013, de 21-2, que acolhe precisamente a interpretação que o TC considera “não comportada” pela redação de 2007!
Consequentemente, clarificada pelo legislador a interpretação da lei, não existe nenhuma violação do princípio da legalidade penal, não procedendo, pois, a argumentação do plenário do TC.
Por último, há que considerar que recentemente este Supremo Tribunal, por acórdão do pleno das secções criminais de 9.10.2013, ainda não publicado, decidiu fixar a seguinte jurisprudência:
Da conjugação das normas do artigo 400.º alíneas e) e f) e artigo 432.º n.º 1 alínea c), ambos do CPP, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão.»
Como se afere da transcrição, a título conclusivo a decisão mencionou ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 14/2013, de fixação de jurisprudência (então ainda inédito, posteriormente publicado no Diário da República, 1.ª série, de 12 de novembro de 2013). Face a estes argumentos, concluiu no sentido da imediata aplicabilidade do disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, o que determinou a inadmissibilidade do recurso.
3. O arguido apresentou reclamação para a conferência, suscitando os seguintes problemas de constitucionalidade:
1.º
«Sendo inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 20º e 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, a norma extraída das disposições conjugadas dos artigos 5.º, n.º 2, alínea a) e 400.º, n.º 1, alínea e), na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21.02, ambos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual é imediatamente aplicável esta última norma aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, após a entrada em vigor da referida lei, em processo-crime cuja decisão em 1.ª instância tenha sido proferida antes da entrada em vigor daquela lei e que não tenha sido confirmada pelo acórdão da Relação.» (fl. 1298)
2.º
« [É], inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 20.º, 29.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, que consagram o princípio da legalidade em matéria criminal e o princípio das garantias de defesa, incluindo o recurso, a norma extraída das disposições conjugadas do artigo 13.º n.º 1 do Código Civil e do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21.02, na interpretação segundo a qual esta última norma interpretativa da mesma norma com a redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08 e, como tal, é imediatamente aplicável aos acórdãos condenatórios proferidos em recurso, pelas Relações, após a entrada em vigor da Lei n,º 20/2013, de 21.02, em processo-crime cuja decisão em 1.ª instância tenha sido proferida antes da entrada em vigor dessa lei e que não tenha sido confirmada pelo acórdão da Relação.» (fl. 1300)
3.º
« [É] inconstitucional a interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, segundo a qual irrecorrível o acórdão proferido pelas Relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos - como é o caso dos presentes autos -, quando o Tribunal de 1.ª instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade - como sucedeu no caso sub judice – por violação do princípio da legalidade em matéria criminal, consagrado nos artigos 29.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa e em violação destes artigos, tal como se decidiu no douto acórdão do Tribunal Constitucional n.º 591/2012, de 05.12.2012, acessível in www.tribunalconstitucional,pt.» (fl. 1303)
Por acórdão de 20 de novembro de 2013, a conferência no Supremo Tribunal de Justiça manteve, na íntegra, a decisão então reclamada, com os mesmos fundamentos (fls. 1310 e seguintes).
4. É deste acórdão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (adiante referida como “LTC”), que foi admitido no tribunal a quo.
O requerimento de recurso contempla três questões de constitucionalidade distintas:
- 1.ª questão de constitucionalidade: a «interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas Relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o Tribunal de 1.ª instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, [é inconstitucional] por violação do princípio da legalidade em matéria criminal, consagrado nos artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa»;
- 2.ª questão de constitucionalidade: a «interpretação normativa resultante da conjugação das normas do artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil, e do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21.02, segundo a qual esta última norma é interpretativa da mesma norma com a redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, e, como tal, imediatamente aplicável aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, após a entrada em vigor da Lei n.º 20/2013, de 21.02, em processo-crime cuja decisão em 1.ª instância tenha sido proferida antes da entrada em vigor dessa lei e que não tenha sido confirmada pelo acórdão da Relação», é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 20.º, 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, todos da Constituição;
- 3.ª questão de constitucionalidade: a «norma extraída das disposições conjugadas dos artigos 5.º, n.º 2, alínea a), e 400.º, n.º 1, alínea e), na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21.02, ambos do CPP, na interpretação segundo a qual é imediatamente aplicável esta última norma aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, após a entrada em vigor da referida lei, em processo crime cuja decisão em 1.ª instância tenha sido proferida antes da entrada em vigor daquela lei e que não tenha sido confirmada pelo acórdão da Relação», é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 20.º, e 32.º, n.º 2, da Constituição.
5. Subidos os autos, foram as partes notificadas para alegações, as quais foram concluídas como se segue:
A) Alegações do recorrente (fls. 1342 e ss.)
I. O douto acórdão recorrido, quanto à sua fundamentação, limitou-se a remeter para o que consta da decisão sumária reclamada, que não admitiu o recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa para o STJ e para o decidido no acórdão de fixação de jurisprudência do STJ, de 09. 10.2013, com o n.º 14/2013. Assim sendo, importa analisar os fundamentos da decisão sumária cujo entendimento o acórdão recorrido “ratifica e confirma inteiramente”.
Ora, na decisão sumária de 23.10.2013 foi decidido rejeitar o recurso interposto pelo recorrente, “nos termos dos arts. 400º, nº 1, e), 414º, nº 2, 417º, nº 6, b), e 420, nº 1, b), todos do CPP”. Nessa decisão, em jeito de conclusão, consta o seguinte: “A norma aplicável ao caso dos autos é, pois, a da al. e) do n.º 1 do art. 400º do CPP, na redação da Lei º 20/3013, de 21-2, que impede o recurso dos acórdãos proferidos em recurso pelas Relações que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos.
Tendo o recorrente sido condenado pela Relação de Lisboa numa pena de 2 anos de prisão, tal decisão é irrecorrível, por força daquela alínea, pelo que o recurso terá de ser rejeitado.” (destaque nosso)
Porém, salvo o devido respeito por outra opinião, cremos não ser a referida redação do artigo 400.º, n.º 1, alínea e) do CPP, introduzida pela Lei n.º 20/3013, de 21.02, a aplicável ao caso dos autos.
II. Tal como o recorrente alegou, no seu requerimento de interposição de recurso para o STJ e na respetiva motivação, o seu recurso foi interposto ao abrigo do disposto nos artigos 399.º, 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, a contrario, todos do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, porquanto, era a versão em vigor em 16.04.2012, data em que foi proferida e depositada a decisão em 1.ª instância, data essa relevante para determinar a lei aplicável em matéria de recorribilidade do recurso, tal como decidido no douto acórdão de Uniformização de Jurisprudência 4/2009, proferido pelo STJ, em 18.02.2009.
O artigo 400.º, n.º 1, alínea e), na redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, determina que, no caso de inexistência de “dupla conforme” – estando as situações de “dupla conforme” previstas nas alíneas d) e f) do n.º 1 do referido artigo -, apenas será inadmissível recorrer dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade.
Situação essa que não se verifica no caso em apreço, porquanto, no douto acórdão recorrido que foi proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, foi aplicada ao recorrente uma pena privativa da liberdade, mais concretamente, uma pena de 2 (dois) anos de prisão efetiva.
Por sua vez, o artigo 400.º, n.º 1, alínea e) do CPP, na redação atual, introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21.02, determina que são irrecorríveis “os acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos”.
O artigo 5.º, n.º 2, alínea a) do CPP dispõe que a lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar o agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa.
Desta feita, caso se aplicasse imediatamente aos presentes autos o artigo 400.º, n.º 1, alínea e) do CPP, na sua redação atual, introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21.02, deixaria de ser recorrível o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
Assim sendo, claramente, se constata que a referida alteração legislativa agravou sensivelmente a situação processual do arguido/recorrente, ocorrendo uma limitação das suas garantias de defesa, maxime, do seu direito de recorrer – cfr. artigos 20.º e 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Como tal, deverá considerar-se que não é aplicável aos presentes autos o artigo 400.º, n.º 1, alínea e) do CPP, na redação atual, nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea a) do CPP e nos artigos 20.º e 32.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, contrariamente ao decidido na decisão sumária confirmada pelo acórdão recorrido.
III. Como tal, deverá julgar-se ser inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 20.º e 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, a norma extraída das disposições conjugadas dos artigos 5.º, n.º 2, alínea a) e 400.º, n.º 1, alínea e), na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21.02, ambos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual é imediatamente aplicável esta última norma aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, após a entrada em vigor da referida lei, em processo-crime cuja decisão em 1.ª instância tenha sido proferida antes da entrada em vigor daquela lei e que não tenha sido confirmada pelo acórdão da Relação.
Pelo exposto, o douto acórdão recorrido, ao perfilhar a posição defendida na decisão sumária que confirmou, aplicou ao presente caso o artigo 400.º, n.º 1, alínea e) do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21.02, adotando a interpretação inconstitucional dessa norma vinda de referir.
IV. Como já referimos, na Lei n.º 20/2013, de 21/02, o legislador mudou a redação do artigo 400.º, n.º 1, alínea e) do CPP, acrescentando a expressão “ou pena de prisão não superior a 5 anos”.
Na decisão sumária, para cuja fundamentação remete o acórdão recorrido, defende-se que estamos perante uma lei interpretativa, que se integra na lei interpretada, nos termos do artigo 13.º, n.º 1 do Código Civil.
Porém, cremos que estamos perante uma clara alteração do pensamento legislativo e não perante uma mera lei interpretativa da versão anterior da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP.
Em abono da tese defendida na referida decisão sumária – adotada pelo acórdão recorrido -, invoca-se a “Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 77/XII, que está na origem daquela lei”.
Contudo, não obstante considerarmos que do seu teor não se retira a conclusão defendida na decisão em análise, há ainda que ter em conta que as circunstâncias em que uma lei é votada, os trabalhos preparatórios e a “Exposição de Motivos” são elementos indicativos, mas não decisivos, para se aferir do caráter interpretativo de uma lei, até, porque, normalmente, se tratam de questões de resolução singular. Aliás, por vezes, o legislador é tentado a designar, inclusive expressamente - o que não aconteceu no presente caso - como lei interpretativa certas leis que, na verdade, não o são, com a intenção de beneficiar do regime de aplicação da lei no tempo previsto no artigo 13.º do Código Civil.
Nesses casos, têm entendido a Doutrina e a Jurisprudência que se deve considerar que aquela designação como lei interpretativa deve equivaler a uma atribuição expressa por parte do legislador de efeitos retroativos à lei em causa, devendo, enquanto tal, respeitar as limitações constitucionais que existem a este respeito.
Ademais, mesmo tendo em conta a tese da alegada natureza interpretativa da lei em causa, defendida na decisão sumária e secundada pelo acórdão recorrido, chegar-se-ia à conclusão que tal interpretação chamada “autêntica” – seria inconstitucional, pelos motivos supra e infra expostos.
V. Deverá, assim, ser julgada inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 20.º, 29.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, que consagram o princípio da legalidade em matéria criminal e o princípio das garantias de defesa, incluindo o recurso, a norma extraída das disposições conjugadas do artigo 13.º, n.º 1 do Código Civil e do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21.02, na interpretação segundo a qual esta última norma é interpretativa da mesma norma com a redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08 e, como tal, é imediatamente aplicável aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, após a entrada em vigor da Lei n.º 20/2013, de 21.02, em processo-crime cuja decisão em 1.ª instância tenha sido proferida antes da entrada em vigor dessa lei e que não tenha sido confirmada pelo acórdão da Relação.
Ainda assim, decidiu-se em sentido contrário na decisão sumária confirmada pelo acórdão recorrido, adotando-se, na nossa modesta opinião, uma interpretação das normas em causa ferida de inconstitucionalidade, nos moldes anteriormente expostos, motivo pelo qual se reclama a sua revogação.
VI. Quanto a esta questão, importa ter presente a douta posição defendida pelo Prof. Cavaleiro de Ferreira que considera que as leis interpretativas são de aplicação aos factos pretéritos se forem mais favoráveis ao arguido, só nessa medida se integrando nas normas interpretadas.
De igual modo, jamais seria aplicável a alegada norma interpretativa ao presente caso, porquanto, a mesma seria desfavorável para o recorrente.
VII. Não obstante o já alegado, consideramos que, mesmo atendendo ao disposto no artigo 13.º, n.º 1 do Código Civil, em caso algum seria de aplicar, ao presente caso, a alegada norma interpretativa, porquanto, teria de ser salvaguardado o direito ao duplo grau de recurso, adquirido pelo recorrente aquando da prolação da decisão em 1.ª instância, situação essa salvaguardada na parte final da referida norma, referindo-se a “atos de natureza análoga”.
VIII. Pelo exposto, deverá considerar-se ser aplicável aos presentes autos o disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea e) do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, porquanto, era a versão em vigor em 16.04.2012, data em que foi proferida e depositada a decisão em 1.ª instância.
IX. Para defesa da irrecorribilidade do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, na decisão sumária de que o recorrente reclamou - e, consequentemente, o acórdão recorrido que para ela remete - alegou-se, então, o decidido no acórdão de fixação de jurisprudência do STJ, de 09.10.2013, com o n.º 14/2013, acórdão esse no qual, por sua vez, se adotou a tese defendida na decisão sumária reclamada, porquanto a mesma já havia sido defendida noutras decisões da 3.ª Secção do STJ.
X. Na decisão sumária reclamada e no acórdão recorrido, ao remeterem para o acórdão de fixação de jurisprudência -, de modo algo contraditório, diremos nós, atendendo ao 1.º argumento vindo de analisar - é defendida a irrecorribilidade de acórdãos das Relações como a dos presentes autos com base no disposto na redação que consideramos ser aplicável do artigo 400.º, n.º 1, alínea e) do CPP (da Lei n.º 48/2007, de 29.08) em conjugação com o artigo 432.º, n.º 1, alínea c) do CPP, que determina que se recorre para o STJ de acórdãos finais proferidos pelo Tribunal do júri ou pelo Tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito.
E, a partir desta norma, essa Jurisprudência extrai o seguinte raciocínio, analógico e constitucionalmente proibido – como infra se expõe: se não é admissível recurso direto da 1.ª instância para o STJ em caso de pena de prisão não inferior a 5 anos então, por identidade ou até por maioria de razão, não deve ser também admissível recurso da Relação para o Supremo quando a pena de prisão não exceda os 5 anos.
Todavia, salvo melhor opinião, cremos que não terá sido intenção do legislador a solução duplamente restritiva adotada nessa Jurisprudência.
Com efeito, o legislador decidiu restringir a recorribilidade para o STJ para as situações elencadas no artigo 432.º CPP, não se exigindo qualquer cumulação nos requisitos das várias alíneas, neste caso, das alíneas b) e c) desse artigo.
XI. Sendo, assim, deverá ser julgada inconstitucional a interpretação normativa defendida no acórdão recorrido resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas Relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos - como é o caso dos presentes autos -, quando o Tribunal de 1.ª instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade - como sucedeu no caso sub judice – por violação do princípio da legalidade em matéria criminal, consagrado nos artigos 29.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa e em violação destes artigos, tal como se decidiu no douto acórdão do Tribunal Constitucional n.º 591/2012, de 05.12.2012, acessível in www.tribunalconstitucional.pt.
XII. Mais, já após a interposição de recurso pelo recorrente para o Supremo Tribunal de Justiça, o Tribunal Constitucional, em Plenário, no acórdão n.º 324/2013, de 04.06.2013, decidiu o seguinte: “Julgar inconstitucional a interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 artigo 432.º e da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redação da Lei 48/2007, de 29 de agosto (aplicável ao presente caso), segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1 e 32. º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).”
Igualmente, no mesmo sentido, decidiu-se no douto acórdão do Tribunal Constitucional n.º 425/2013, de 15 de julho de 2013.
XIII. Na determinação de uma lei como interpretativa ou inovadora, importa recordar que, tal como ensina o Prof. J. Baptista Machado, para que uma lei seja realmente interpretativa, ela tem, nomeadamente, de impor uma solução que se situe dentro dos limites normalmente impostos à interpretação e à aplicação da lei. Assim sendo, atendendo a que o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a interpretação referida no acórdão n.º 324/2013, de 04.06.2013, proferido pelo Plenário, forçoso se torna concluir que jamais se poderá aceitar o caráter interpretativo da Lei n.º 20/2013, de 21.02, quanto ao artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, na redação anterior, pois a mesma consagra uma solução que é inconstitucional e, como tal, se situa fora dos limites impostos à interpretação e aplicação da lei, não sendo, também por esse motivo, aplicável aos presentes autos.»
B) Alegações do recorrido (fls. 1387 e ss.)
«V - Conclusões
43. O presente recurso de constitucionalidade foi interposto pelo arguido A., em 10 de Dezembro de 2013, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, e nele são suscitadas três distintas questões de constitucionalidade, respeitantes a interpretações normativas, identificadas pelo subscritor nos seguintes moldes:
“a) A inconstitucionalidade da interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas Relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o Tribunal de 1.ª instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal, consagrado nos artigos 29.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa e em violação destes artigos;
b) A inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 20.º, 29.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, que consagram o princípio da legalidade em matéria criminal e o princípio das garantias de defesa, incluindo o recurso, da interpretação normativa resultante da conjugação das normas do artigo 13.º, n.º 1 do Código Civil e do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21.02, segundo a qual esta última norma é interpretativa da mesma norma com a redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08 e, como tal, é imediatamente aplicável aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, após a entrada em vigor da Lei n.º 20/2013, de 21.02, em processo-crime cuja decisão em 1.ª instância tenha sido proferida antes da entrada em vigor dessa lei e que não tenha sido confirmada pelo acórdão da Relação;
c) A inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 20.º e 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, da norma extraída das disposições conjugadas dos artigos 5.º, n.º 2, alínea a) e 400.º, n.º 1, alínea e), na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21.02, ambos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual é imediatamente aplicável esta última norma aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, após a entrada em vigor da referida lei, em processo-crime cuja decisão em 1.ª instância tenha sido proferida antes da entrada em vigor daquela lei e que não tenha sido confirmada pelo acórdão da Relação”.
44. No que respeita à primeira questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente, a da “inconstitucionalidade da interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08”, entendemos que o Tribunal Constitucional dela não deverá tomar conhecimento, uma vez que tal interpretação normativa não constituiu ratio decidendi da decisão aqui impugnada.
45. Efetivamente é o próprio tribunal “a quo” - o Supremo Tribunal de Justiça –, o último decisor do direito infraconstitucional aplicável ao caso concreto, quem declara expressamente que:
“A norma aplicável ao caso dos autos é, pois, a da al. e) do nº 1 do art. 400º do CPP, na redação da Lei nº 20/2013, de 21-2 (…)”.
46. No que concerne à segunda questão apresentada pelo recorrente, a da inconstitucionalidade da interpretação normativa resultante da conjugação das normas do artigo 13.º, n.º 1 do Código Civil e do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, segundo a qual esta última norma é interpretativa da mesma norma com a redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, defendemos, igualmente, que dela também não deverá o Tribunal Constitucional tomar conhecimento.
47. O, ora, recorrente, apenas suscitou esta questão de constitucionalidade no seu requerimento de Reclamação para a Conferência da 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça.
48. Acresce que, tal suscitação evidencia que esta questão de constitucionalidade carece de autonomia, sendo meramente instrumental da terceira questão levantada, tendo servido, apenas, como argumento jurídico de suporte da decisão sobre a aplicação imediata da alteração imposta pela Lei n.º 20/2013.
49. Por fim, no tocante à terceira questão explanada pelo recorrente, a da inconstitucionalidade da interpretação normativa extraída das disposições conjugadas dos artigos 5.º, n.º 2, alínea a) e 400.º, n.º 1, alínea e), na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, ambos do Código de Processo Penal, segundo a qual “é imediatamente aplicável esta última norma aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, após a entrada em vigor da referida lei, em processo-crime cuja decisão em 1.ª instância tenha sido proferida antes da entrada em vigor daquela lei e que não tenha sido confirmada pelo acórdão da Relação”, também entendemos que dela não deverá o Tribunal Constitucional tomar conhecimento.
50. Com efeito, a suposta interpretação normativa impugnada pelo recorrente, a saber, a resultante da conjugação dos artigos 5.º, n.º 2, alínea a) e 400.º, n.º 1, alínea e), na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, ambos do Código de Processo Penal, não foi aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça, não tendo constituído ratio decidendi da decisão proferida por este tribunal.
51. Mais acresce, que a conjugação normativa cuja constitucionalidade foi questionada não viola qualquer dos preceitos constitucionais invocados pelo recorrente – o artigo 20.º e o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa -, razão pela qual, atenta a natureza do recurso interposto - o previsto na alínea b), do n,º 1, do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional – não poderá o mesmo deixar de ser julgado, por esta razão, improcedente.
52. Por fim, para além do já explanado, e tendo presente que o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a interpretação normativa (mencionada no Acórdão n.º 324/13) resultante da conjugação das normas da alínea c), do n.º 1, do artigo 432.º e da alínea e), do n.º 1, do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, não poderemos deixar de considerar que o Supremo Tribunal de Justiça interpretou a norma contida na alínea e), do nº 1, do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, como não inovatória e meramente interpretativa da mesma norma na redação concedida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, e que esta interpretação se impõe ao Tribunal Constitucional como se de um dado empírico se tratasse.
53. Ora, recordando que o motivo da declaração de inconstitucionalidade daquela norma pelo Tribunal Constitucional radica na violação do princípio da legalidade por força da desconformidade entre a interpretação normativa efetuada pelo tribunal recorrido e o sentido possível das palavras da lei, resultante de interpretação analógica constitucionalmente proibida, verifica-se, por força do decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, a sanação do vício que feria a norma jurídica contida na alínea e), do n.º 1, do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na medida em que a interpretação normativa feita pelo tribunal “a quo” tem inequívoca correspondência nas palavras da lei, sem necessidade de qualquer recurso à analogia.
54. Por estes motivos, deverá o Tribunal Constitucional, caso decida conhecer da presente questão de constitucionalidade, negar, também nesta parte, provimento ao recurso.»
6. Tendo o Ministério Público suscitado questões prévias relativas ao conhecimento do objeto do recurso, o recorrente foi notificado para, querendo, se pronunciar sobre as mesmas. Respondeu o recorrente, pugnando pelo integral conhecimento do referido objeto.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
7. Importa começar pela delimitação do objeto do recurso, uma vez que o recorrido se pronuncia no sentido do não conhecimento das três questões de constitucionalidade que integram o mesmo.
O conhecimento dos recursos de constitucionalidade interpostos com fundamento na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC depende do preenchimento de diversos pressupostos, designadamente da suscitação, em moldes processualmente adequados, da inconstitucionalidade normativa durante o processo. Por outro lado, atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, só pode conhecer-se do respetivo objeto, desde que o mesmo coincida com o critério normativo aplicado pelo tribunal a quo. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar a reforma dessa decisão. Acresce que os poderes de cognição e decisão do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade se encontram limitados à norma que a decisão recorrida tenha aplicado (cfr. o artigo 79.º-C da LTC).
A.1. Das questões prévias suscitadas pelo recorrido Ministério Público
Tendo em conta estas considerações, cumpre apreciar o objeto do presente recurso, de modo a aferir da respetiva cognoscibilidade. Tal objeto integra, como enunciado pelo recorrente, três questões.
8. 1.ª questão: a inconstitucionalidade da «interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal (“CPP”), na redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas Relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o Tribunal de 1.ª instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal, consagrado nos artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa».
Sustenta o Ministério Público, ora recorrido, que esta questão não pode ser conhecida por dissonância entre a mesma e a ratio decidendi do acórdão recorrido, uma vez que se questiona interpretação normativa assacada a preceito do Código de Processo Penal com a redação dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, e a decisão recorrida buscou fundamento na redação conferida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, à alínea e), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal.
Não deixa de assistir razão ao recorrido, uma vez que, formalmente, não existe identidade entre a formulação do referido preceito na vigência da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, e a redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro. Ora, a decisão recorrida aplicou, sem margem para dúvidas, a redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, pelo que, quanto à primeira questão não pode ser conhecido o objeto do recurso.
9. 2.ª questão: a inconstitucionalidade da «interpretação normativa resultante da conjugação das normas do artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil, e do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21.02, segundo a qual esta última norma é interpretativa da mesma norma com a redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, e, como tal, imediatamente aplicável aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, após a entrada em vigor da Lei n.º 20/2013, de 21.02, em processo-crime cuja decisão em 1.ª instância tenha sido proferida antes da entrada em vigor dessa lei e que não tenha sido confirmada pelo acórdão da Relação», por violação do disposto nos artigos 20.º, 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, todos da Constituição
O recorrido sustenta o não conhecimento desta questão pelo facto de a mesma ter sido suscitada apenas na reclamação deduzida da decisão sumária proferida no Supremo, e, além disso, por se apresentar como instrumental e carecida de autonomia face à terceira questão de constitucionalidade.
A circunstância de a questão ter sido suscitada “apenas” na reclamação não coloca obstáculos agora ao seu conhecimento – o tribunal a quo não tinha ainda esgotado o seu poder jurisdicional, pelo que a questão foi, para os relevantes efeitos, suscitada “durante o processo” (cfr. o artigo 70.º, n.º 3, da LTC).
Quanto à alegada “falta de autonomia” desta questão em face da terceira, não tem razão o recorrido. É certo, como se verá adiante a propósito da rigorosa delimitação do objeto do recurso, que as questões suscitadas pelo recorrente – incluindo, a primeira questão, cujo não conhecimento foi já aferido – se encontram todas interligadas entre si. É que a tónica decisória se apresenta, ela própria, multifacetada, uma vez que imbrica diversos elementos argumentativos de igual relevo para o sentido final da decisão. Deste modo, o desdobramento, pelo recorrente, do objeto do recurso em três questões diferentes traduz apenas uma cobertura exaustiva dessa argumentação multifacetada, em coerência com uma estratégia processual que pretendeu notoriamente acautelar a futura interposição do recurso de constitucionalidade. Deste modo, não procede o argumento da “falta de autonomia” desta questão enquanto fundamento de não conhecimento do recurso.
Com efeito, tal «falta de autonomia» apenas poderia relevar se se verificasse uma de duas circunstâncias: em primeiro lugar, se da mesma decorresse a omissão de uma suscitação da inconstitucionalidade em moldes processualmente adequados de modo a que, como exige o artigo 72.º, n.º 2, da LTC, não tivesse sido o tribunal a quo constituído num verdadeiro dever de decisão sobre o concreto problema de constitucionalidade impugnado. Tal, contudo, não sucedeu. Como se constata a fls. 1300 e seguintes, o recorrente enunciou, perante o tribunal recorrido, durante o processo, o critério cuja interpretação reputava de inconstitucional, identificando os parâmetros geradores de tal vício. Clarificou, ainda, que tal juízo de inconstitucionalidade não teria sido acolhido pela decisão recorrida, a qual havia procedido à aplicação do critério normativo que se tem por desconforme. Foram, portanto, criadas as condições exigidas pelo artigo 72.º, n.º 2, da LTC, para que a inconstitucionalidade se possa ter como suscitada de modo processualmente adequado.
Uma outra hipótese de eventual relevância da «falta de autonomia» desta segunda questão de constitucionalidade consistiria no facto de um eventual conhecimento do respetivo mérito não poder projetar qualquer efeito útil na decisão. Ora, e como se verá melhor infra, tal não sucede, até porque a questão apresenta coincidência com a efetiva ratio decidendi recorrida.
Não procedem, por conseguinte, quanto a esta segunda questão, os fundamentos aduzidos pelo recorrido no sentido do seu não conhecimento.
10. 3.ª questão: a inconstitucionalidade da «norma extraída das disposições conjugadas dos artigos 5.º, n.º 2, alínea a), e 400.º, n.º 1, alínea e), na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21.02, ambos do CPP, na interpretação segundo a qual é imediatamente aplicável esta última norma aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, após a entrada em vigor da referida lei, em processo-crime cuja decisão em 1.ª instância tenha sido proferida antes da entrada em vigor daquela lei e que não tenha sido confirmada pelo acórdão da Relação», por violação do disposto nos artigos 20.º, e 32.º, n.º 2, da Constituição.
Sustenta o recorrido que esta questão não deve ser objeto de conhecimento pelo facto de não coincidir com a ratio decidendi do acórdão impugnado. Não justifica, contudo, a sua asserção, limitando-se a transcrever a norma aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça. Nesse sentido, presume-se que a impossibilidade de conhecimento se ficará a dever ao facto de tal norma não integrar o artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, a qual é compreendida pelo recorrente no objeto do recurso quanto a esta terceira questão.
Ora, e uma vez que o artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, constitui a base legal em que assentou a efetiva ratio decidendi, o único reparo que poderia ser formulado, quanto a este aspeto do objeto do recurso, seria, eventualmente, o do seu excesso, pelo facto de também contemplar o artigo 5.º, n.º 1, alínea a), do CPP. Perante um tal excesso, o que se justifica nesta sede é concluir pela necessidade de delimitar – reduzindo – o objeto do recurso – e não concluir, liminarmente, como pretende o recorrido, pelo seu não conhecimento. Tal delimitação impõe-se, contudo, e não apenas por referência a esta terceira questão de constitucionalidade, pelo que se procederá seguidamente a tal exercício.
A.2 Precisão do objeto do recurso
11. Nos presentes autos, a decisão condenatória da primeira instância foi proferida em 16 de abril de 2012. A redação então vigente da alínea e), do n.º 1, do artigo 400.º, do CPP (conferida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto), previa, na sua letra, a inadmissibilidade de recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que aplicassem pena não privativa da liberdade.
No âmbito desta redação, parte da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça começou a aplicar a interpretação, extraída das alíneas c), do n.º 1, do artigo 432.º, e e), do n.º 1, do artigo 400.º, do CPP, segundo a qual seriam irrecorríveis os acórdãos proferidos pelas relações, em recurso, que aplicassem pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tivesse aplicado pena não privativa da liberdade.
Esta interpretação normativa veio a ser objeto de juízo de inconstitucionalidade proferido pelo Plenário do Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 324/2013. Entendeu o Tribunal que tal norma «cria uma exceção à regra da recorribilidade das decisões proferidas em segunda instância além das previstas no n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redação de 2007. Coloca o intérprete no âmbito da analogia constitucionalmente proibida, sendo indiferente que a norma encontrada fora da moldura semântica do texto seja constitucionalmente admissível e político-criminalmente defensável, uma vez que a liberdade dos cidadãos está acima das exigências do poder punitivo nas situações legalmente imprevistas.»
A Lei n.º 20/2013, de 20 de fevereiro, veio integrar, na letra da alínea e), do n.º 1, do artigo 400.º, do CPP a irrecorribilidade de acórdãos proferidos pelas relações, em recurso, que condenem em pena privativa da liberdade inferior a 5 anos. O problema de constitucionalidade apreciado pelo Acórdão n.º 324/2013 mereceu, por conseguinte, a atenção do legislador, o qual optou pela consagração expressa, no texto de lei, da situação de impossibilidade de recurso que vinha já sendo aplicada pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e que, por violação das exigências decorrentes do princípio da legalidade em matéria criminal, veio a ser sancionada como analogia constitucionalmente proibida. A consagração expressa da inadmissibilidade de recurso de decisões da relação deste tipo afasta, para o futuro, a mobilização do juízo de inconstitucionalidade proferido no Acórdão n.º 324/2013. Com efeito, ficando tal juízo de inconstitucionalidade a dever-se apenas ao facto de o critério normativo aplicado se apresentar como resultando de um processo interpretativo-integrativo constitucionalmente proibido em matéria processual penal, a sua integração literal no texto do preceito contido no artigo 400.º, n.º 1, alínea e), afasta, naturalmente, um tal juízo sancionador, uma vez que o referido critério é agora aferível e extraível por interpretação direta (literal) da lei, sem necessidade de recurso a qualquer esquema interpretativo do tipo analógico.
12. A decisão ora recorrida determinou a aplicabilidade imediata, nos autos, do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, na redação de 2013, uma vez que aderiu ao entendimento expresso no Acórdão n.º 14/2013, do Supremo Tribunal de Justiça, o qual fixou jurisprudência no sentido de que, «da conjugação das normas do artigo 400.º, alíneas e) e f), e artigo 432.º, n.º 1, alínea c), ambos do CPP, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão». Entendeu este acórdão de fixação de jurisprudência que a interpretação dos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e), e f), e 432.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código de Processo Penal, da qual decorre a inadmissibilidade de recurso de acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão, resulta de uma «hermenêutica sistémica das disposições legais». Assim, a redação da Lei n.º 20/2013 conferida ao artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP constituiria, no entender daquele aresto – e outrossim da decisão ora recorrida -, mera norma interpretativa, uma vez que se limitou a prever expressamente uma situação de irrecorribilidade que decorria já do próprio sistema normativo, por via de uma interpretação sistemática dos preceitos legais relevantes. O Supremo Tribunal de Justiça apreciou, portanto, a questão de constitucionalidade em sentido divergente ao que decorreu do Acórdão n.º 324/2013.
Deste modo, acolhendo a perspetiva de que a redação conferida pela Lei n.º 20/2013 ao citado preceito do CPP não era inovadora – mas simplesmente interpretativa -, o tribunal a quo determinou a aplicabilidade da mesma aos presentes autos.
Significa isto, por conseguinte, que a determinação da ratio decidendi da decisão recorrida – enquanto coincidindo com a redação introduzida em 2013 e já não com aquela que resultou da reforma operada em 2007 – acaba por não se revelar absolutamente decisiva para efeitos da determinação do objeto do presente recurso. Com efeito, a qualificação conferida pelo acórdão recorrido à alteração legislativa de 2013 – tratar-se de uma norma de natureza interpretativa – é matéria que se apresenta incindivelmente ligada com o problema de constitucionalidade subjacente nos presentes autos, e, portanto, com o próprio problema de constitucionalidade apreciado no âmbito do Acórdão n.º 324/2013, não obstante o mesmo ter respeitado diretamente ao artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto (e não à redação conferida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).
Assim, se se entender que a redação de 2007 comporta já, por via de um raciocínio de interpretação sistemática, o resultado da irrecorribilidade de decisões proferidas, em recurso, pelas relações que apliquem pena privativa da liberdade inferior a 5 anos; então não pode deixar de se atribuir caráter interpretativo à Lei n.º 20/2013, de 2 de fevereiro, o que determina a sua imediata aplicabilidade (nos termos do artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil, o que justifica a inclusão, pelo recorrente, deste preceito na formulação da segunda questão de constitucionalidade).
Se, ao invés, se entender que a redação de 2007 não comporta uma tal irrecorribilidade, sendo a mesma possível apenas mediante um raciocínio de integração de lacuna por via da analogia e, como tal, constitucionalmente proibido nos termos dos artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição, então a redação de 2013 é, na verdade, inovatória, e, portanto, não aplicável a casos em que a decisão da primeira instância foi proferida na pendência da redação anterior.
13. O que está em causa, portanto, é a mesma situação que foi já analisada no Acórdão n.º 324/2013, uma vez que a Lei n.º 20/2013 se apresenta aplicável – na ótica da decisão recorrida – apenas e na medida em que detém caráter interpretativo. Tal elemento, no entanto, traduz, na verdade, uma posição de princípio quanto ao problema que foi afrontado (no sentido da inconstitucionalidade) por aquele aresto, que é o de saber se, na redação resultante da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, cabia ou não a irrecorribilidade, para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdãos proferidos pelas relações, em recurso, que aplicassem pena privativa da liberdade inferior a 5 anos.
Realce-se que nada é dito na decisão recorrida a propósito do problema da aplicação sucessiva de regimes processualmente distintos – o que poderia justificar a mobilização do artigo 5.º, n.º 1, alínea a), do CPP, que o recorrente faz integrar na enunciação da terceira questão de constitucionalidade. Mas a aparente dissonância que aqui existe entre a ratio decidendi e o objeto do recurso – enquanto causa bastante para um não conhecimento do mesmo – traduz-se apenas no excesso do mesmo, tal como é identificado pelo recorrente, quanto à base legal de que o mesmo decorre. Com efeito, a «norma» que integra o objeto do presente recurso traduz-se, tal como decorre do próprio requerimento de recurso, num critério normativo que não coincide com a letra de qualquer preceito legal. Nestes termos, interessa, num primeiro momento, apurar se tal critério terá sido efetivamente aplicado pelo Tribunal a quo.
A decisão recorrida incorpora, quanto à fundamentação, as razões de decidir do despacho de rejeição de recurso proferido pelo relator. Esclarece que aplica aos autos a redação introduzida em 2013 e apresenta, como fundamento desta determinação, as seguintes razões: (1) a nova redação não é inovadora, o que confere à Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, nesta parte, o caráter de “lei interpretativa”; (2) o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 324/2013, embora contendo um juízo de inconstitucionalidade quanto à norma que, em face da redação conferida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, extraía a inadmissibilidade de recurso das decisões das relações, proferidas em recurso, que condenassem em pena de prisão inferior a cinco anos, não produz efeitos fora do processo em que foi proferido; (3) o Supremo Tribunal de Justiça uniformizou jurisprudência no sentido da inadmissibilidade de recurso para o mesmo Supremo de acórdãos das relações que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, apliquem ao arguido pena não superior a cinco anos de prisão, face à leitura conjugada dos artigos 400.º, alíneas e) e f), e 432.º, n.º 1, alínea c), ambos do CPP, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto.
Daqui decorre, por conseguinte, que a aplicabilidade aos presentes autos da redação de 2013 resulta do facto de a mesma ser computada como alteração legislativa de natureza interpretativa – não apresentando a mesma, por conseguinte, qualquer conexão relevante em matéria de sucessão, no tempo, de regimes processualmente distintos. Aliás, a tese da decisão recorrida é a de que, precisamente, tal sucessão não existe, uma vez que a redação de 2013 se limitou a reiterar solução normativa que vigorava já no sistema de recursos.
14. Daqui decorrem várias conclusões.
A primeira é a de que não pode relevar, como razão de não conhecimento do recurso, o facto de o recorrente integrar, como base legal das interpretações normativas que constituem o respetivo objeto, preceitos legais que não terão sido efetivamente aplicados pela decisão recorrida. São esses preceitos, por um lado, o artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil e, por outro, o artigo 5.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal. O segundo, com efeito, não foi efetivamente aplicado pelo tribunal a quo mas essa não aplicação está precisamente relacionada com a verdadeira ratio decidendi, mais precisamente com a parte relativa à qualificação que é feita pelo mesmo tribunal da intervenção legislativa de 2013.
Quanto ao artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil, embora não seja expressamente mencionado pela fundamentação da decisão recorrida, não pode deixar de entender-se que foi, efetivamente aplicado, pois que o mesmo fornece a base legal que permite ao tribunal recorrido enunciar o sentido normativo aplicado: em caso de lei interpretativa, a mesma é imediatamente aplicável.
Pelo exposto, resultam ultrapassados os obstáculos levantados pelo Ministério Público ao não conhecimento da terceira questão de constitucionalidade.
15. Mas impõe-se uma análise ainda mais fina, de modo a proceder à correta delimitação do objeto do recurso.
A diferença entre a segunda e a terceira questões de constitucionalidade suscitadas no requerimento de interposição do recurso reside apenas na integração, na primeira daquelas questões, da dimensão atinente à qualificação do regime introduzido pela redação dada em 2013 ao artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP como meramente “interpretativo”. No restante, as duas questões identificam-se totalmente: aplicabilidade imediata da redação conferida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, ao artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP. Tal aplicabilidade imediata traduzir-se-ia na aplicabilidade «aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, após a entrada em vigor da Lei n.º 20/2013, de 21.02, em processo-crime cuja decisão em 1.ª instância tenha sido proferida antes da entrada em vigor dessa lei e que não tenha sido confirmada pelo acórdão da Relação».
Este enunciado, assim simplesmente considerado, é suscetível de traduzir, contudo, controvérsia constitucionalmente relevante e que não se relaciona com o problema versado nos autos. Com efeito, a aplicabilidade imediata do regime de 2013 – ainda que se entenda que o seu conteúdo não é meramente interpretativo – pode suscitar problemas constitucionalmente relevantes ao nível da aplicação no tempo de regimes processualmente distintos. E por aqui se conclui, portanto, que a terceira questão de constitucionalidade não pode ser conhecida, uma vez que, não se reportando à ratio decidendi recorrida, apresenta um conteúdo que, embora conexo, é tão mais vasto que o Tribunal Constitucional se veria confrontado com a apreciação de uma hipótese que, embora de inegável relevância constitucional, não contende com o efetivo fundamento decisório.
Resta, por conseguinte, o problema enunciado na segunda questão de constitucionalidade. Mas, mesmo aqui, impõe-se a formulação de algumas considerações delimitadoras. Com efeito, o recorrente integra no objeto do recurso os aspetos relacionados com as datas em que foram proferidas as decisões de primeira e de segunda instância e as respetivas conexões com a vigência da redação conferida em 2013 ao artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP. Embora tais elementos sejam verificáveis por consulta dos autos, não podem, contudo, ser integrados no objeto do recurso. Com efeito, e embora os mesmos relevem precisamente para efeitos do problema – já mencionado – da sucessão no tempo de regimes distintos em matéria de recursos, o certo é que a decisão recorrida não atribuiu qualquer relevo decisório ao regime vigente à data da prolação das decisões de 1.ª e 2.ª instância. Percebe-se que tal relevo é indiretamente aferido quando se aquilata da «natureza interpretativa» da redação de 2013. No entanto, fazer integrar esses elementos no objeto do recurso, sem os mesmos terem sido expressamente assumidos como decisivos, pela decisão recorrida, para efeitos de determinação do regime legal aplicável, teria como efeito uma pronúncia, deste Tribunal Constitucional, sobre tal matéria, a qual, face à natureza da fiscalização concreta – que se enxerta em sede de recurso – extravasa o respetivo objeto.
16. Assim, cumpre delimitar e precisar o objeto do recurso, tal como formulado pelo recorrente, nos seguintes termos: a interpretação normativa do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, segundo a qual, aquele artigo, com a redação dada por esta Lei, constitui norma interpretativa do mesmo artigo com a redação anterior - ou seja, a que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto - sendo, por isso, de aplicação imediata a estatuição da irrecorribilidade de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena de prisão não superior a cinco anos.
Do mérito do recurso
17. A aplicabilidade imediata da modificação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, ao artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP assentou exclusivamente na consideração de que tal diploma detém, nestas fronteiras, a natureza de modificação legislativa de caráter interpretativo. Assim, e como dispõe o artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil, “a lei interpretativa integra-se na lei interpretada”. O recorrido sustenta que esta qualificação se integra no âmbito da competência para interpretar e aplicar o direito ordinário, a qual, como se sabe, é exclusiva dos tribunais comuns.
Cumpre em todo o caso recordar que do ponto de vista jurídico-constitucional está em causa apenas a observância das exigências estritas do princípio da legalidade criminal.
Como mencionado, pelo seu Acórdão n.º 324/2013, o Plenário do Tribunal Constitucional, na sequência de recurso interposto com fundamento no artigo 79.º-D, da LTC, julgou inconstitucional a interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c), do n.º 1, do artigo 432.º, e da alínea e), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição). Entendeu o Tribunal que tal interpretação normativa «cria uma exceção à regra da recorribilidade das decisões proferidas em segunda instância além das previstas no n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redação de 2007. Coloca o intérprete no âmbito da analogia constitucionalmente proibida, sendo indiferente que a norma encontrada fora da moldura semântica do texto seja constitucionalmente admissível e político-criminalmente defensável, uma vez que a liberdade dos cidadãos está acima das exigências do poder punitivo nas situações legalmente imprevistas.» Saliente-se, ainda, que o citado Acórdão n.º 324/2013 é posterior à Lei n.º 20/2013, tendo-a tomado em consideração – sem, todavia, lhe atribuir natureza interpretativa (cfr. o ponto 2 da respetiva fundamentação).
É certo que posteriormente foi proferido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 14/2013, pelo qual se fixou jurisprudência no sentido de não ser admissível recurso para o Supremo de acórdão da relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em primeira instância, aplique ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão, face ao disposto nos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e), e f), e 432.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código de Processo Penal. É também neste Acórdão do Supremo que se sufraga o entendimento relativo à natureza interpretativa da Lei n.º 20/2013 (cfr. a respetiva secção I, epigrafada “A natureza interpretativa da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro”).
Contudo, este aresto – respeitando, como referido, a um dos casos de aplicação pela primeira instância de pena não privativa da liberdade - limitou-se a apreciar a aludida questão da irrecorribilidade dos acórdãos da relação em face dos elementos que haviam sido já analisados e ponderados anteriormente pelo Tribunal Constitucional, e levado este último a considerar, em face de tais elementos, que o resultado interpretativo traduzido na impossibilidade de recurso de decisões da relação naquelas circunstâncias, constituía uma analogia constitucionalmente proibida (cfr. neste mesmo sentido, as Decisões Sumárias n.ºs 45/2014 e 253/2014 proferidas neste Tribunal Constitucional).
18. Também é exato que o citado Acórdão do Tribunal Constitucional foi proferido em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, e, consequentemente, a sua vinculatividade se restringiu formalmente aos respetivos autos – aspeto devidamente salientado pela decisão ora recorrida. Todavia, não pode desconhecer-se – sobretudo nessa mesma sede – que a LTC prevê um mecanismo destinado a assegurar a sindicabilidade, junto do Tribunal Constitucional, de decisões de outros tribunais que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional pelo primeiro. Trata-se do recurso previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º, da LTC, o qual é, de resto, obrigatório para o Ministério Público (cfr. o artigo 72.º, n.º 3, da LTC). Esta via impugnatória garante a possibilidade de sindicar decisões dos outros tribunais que contrariem a jurisprudência do Tribunal Constitucional, assegurando desse modo a uniformização da jurisprudência em matéria constitucional. Se por via da decisão de tais recursos de constitucionalidade não resulta a eficácia erga omnes dos juízos positivos de inconstitucionalidade emitidos no âmbito da fiscalização concreta, a verdade é que a mesma confere aos aludidos juízos um potencial de irradiação justificativo do reconhecimento de uma autoridade especial às decisões do Tribunal Constitucional em que os mesmos juízos se contenham, em particular quando se trate de decisões proferidas pelo seu Plenário.
19. Nesse aresto entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que da interpretação dos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), e 432.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código de Processo Penal, resulta ser inadmissível o recurso de acórdão da relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância – ou seja, uma decisão da 1.ª instância que aplicou pena não privativa da liberdade - aplique ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão. O Supremo Tribunal de Justiça apreciou, portanto, a questão de constitucionalidade colocada por tal interpretação normativa em sentido divergente ao afirmado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 324/2013, sem que tal apreciação, todavia, se fundamentasse em argumentos ou elementos novos ou se traduzisse em ponderações diferentes das anteriormente realizadas pelo Plenário deste Tribunal (cfr., de novo, as Decisões Sumárias n.ºs 45/2014 e 253/2014).
Deste modo, mantêm atualidade os fundamentos que, no Acórdão n.º 324/2013 conduziram ao juízo de inconstitucionalidade da interpretação normativa da alínea c), do n.º 1, do artigo 432.º, e da alínea e), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição). Esses mesmos fundamentos levam a concluir pela inconstitucionalidade da interpretação normativa que, com base na respetiva qualificação como norma meramente interpretativa, determina a aplicabilidade imediata da redação conferida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, ao artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Julgar inconstitucional a interpretação normativa do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, segundo a qual, aquele artigo, com a redação dada por esta Lei, constitui norma interpretativa do mesmo artigo com a redação anterior - ou seja, a que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto - sendo, por isso, de aplicação imediata a estatuição da irrecorribilidade de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena de prisão não superior a cinco anos, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa);
E, em consequência,
Conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de harmonia com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 7 de maio de 2014. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins (vencida, nos termos da declaração aposta ao acórdão nº 324/13, na qual se remeteu para a declaração do Exmº Senhor Conselheiro Vítor Gomes) – Joaquim de Sousa Ribeiro.