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Processo n.º 966/08
 
 3ª Secção
 Relator: Conselheiro Vítor Gomes
 
 
 Acordam, na 3ª Secção, do Tribunal Constitucional
 
 
 I- Relatório
 
  
 
 1. O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao 
 abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro 
 
 (LTC) do despacho de 11 de Abril de 2008, do Tribunal Criminal de Lisboa, no 
 qual foi decidido o seguinte:
 
 «A) Recusa-se por inconstitucional, a interpretação dada aos artigos 119.º 
 alínea f) e 391.º-D do Código de Processo Penal e a sua subsequente aplicação, 
 no sentido de que a inviabilidade da realização do julgamento no prazo de 90 
 dias a contar da dedução da acusação constitui uma nulidade insanável, porquanto 
 tal conduz à alteração da forma de processo abreviado para a forma de processo 
 comum, e assim, de forma mediata, à alteração das regras prévias e expressas que 
 fixam a competência dos tribunais, neste caso, do Tribunal de Pequena Instância 
 Criminal e dos Juízos Criminais de Lisboa, em violação dos artigos 22.º, 23.º 
 
 100.º, 102.º, n.º 1 da Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro, artigo 119.º, alínea e) do 
 Código de Processo Penal, e artigo 32.º, n.º 9 da Constituição da República 
 Portuguesa.
 B) Em consequência, declara-se este tribunal incompetente para a realização do 
 julgamento e recusa-se o recebimento destes autos».
 
  
 
             Neste Tribunal, o Ministério Público alegou e concluiu que “[T]endo 
 em conta que a fundamentação que subjaz ao despacho recorrido se abriga na 
 violação de normas legais ordinárias, relativas à aplicação da lei no tempo 
 quanto aos requisitos da forma especial de processo, há que concluir, assim, não 
 se estar perante uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, pelo 
 que não deve tomar-se conhecimento do recurso”
 
  
 
             O recorrido A. (arguido) não contra-alegou.
 
  
 II- Fundamentos
 
             
 
 2. São as seguintes as ocorrências processuais com interesse para decisão das 
 questões que o presente recurso suscita:
 a) Em 11 de Julho de 2007, o Ministério Público acusou o arguido, no Tribunal de 
 Pequena Instância Criminal de Lisboa (TPICL), em processo abreviado, pela 
 prática de um crime de condução em estado de embriaguez.
 b) Em 4 de Janeiro de 2008, o Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa 
 
 (2.º Juízo), invocando as alterações do Código de Processo Penal decorrentes da 
 Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, em especial o disposto no artigo 391.º-D desse 
 Código, decidiu (fls. 27 e segs.) que “a audiência de julgamento não pôde ter o 
 seu início no prazo de 90 (noventa) dias contados sobre a dedução da acusação, 
 pelo que não poderá o processo ser tramitado na forma especial abreviada, 
 determinando que se julgue nulo o processado, salvaguardando os seus termos até 
 
 à acusação, nos termos do disposto nos artigos 391.º-D e 119.º, alínea f) do 
 Código de Processo Penal”.
 c) Na sequência desta decisão, após o Ministério Público consignar que a 
 acusação passava a ser entendida em processo comum, os autos foram remetidos ao 
 Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa. 
 
  d) Distribuído o processo ao 6.º Juízo Criminal, foi proferida a decisão 
 recorrida, com a seguinte fundamentação (despacho de 11 de Abril de 2008, fls. 
 
 44 e segs):
 
 «Questão Prévia: da inconstitucionalidade da interpretação dada à norma contida 
 no actual art. 391°-D do Código de Processo Penal, no sentido de que a 
 inviabilidade da realização do julgamento no prazo de 90 dias constitui uma 
 nulidade insanável.
 
 *
 Foi proferido despacho de acusação, no dia 10-01-2006, para julgamento em 
 processo abreviado, imputando ao arguido, por factos indiciariamente praticados 
 no dia 08-12-2005, a prática de um crime de furto (art. 203°, n°1 do Código 
 Penal).
 A acusação foi recebida por despacho de 13-07-2007, e foram designadas as datas 
 de 26-02-2008 e 28-02-2008, para a realização de julgamento.
 Contudo, o processo foi concluso ao Mm° Juiz titular do 2° Juízo, 1ª Secção do 
 Tribunal de Pequena Instância de Lisboa, no dia 14-01-2008.
 O Mm° Juiz titular, em despacho de 14-01-2008, considerou existir, devido às 
 alterações legislativas introduzidas no Código de Processo Penal, pela Lei 
 
 48/2007, de 29-08, e, em especial, pela introdução do art. 391°-D em tal 
 diploma, uma nulidade insanável, por emprego de forma de processo especial fora 
 dos casos previstos na lei (art. 119°, al. f) do Código de Processo Penal), 
 proveniente, em síntese, do facto da audiência de julgamento não realizar-se no 
 prazo de 90 dias, conforme actualmente previsto no mencionado normativo.
 
 *
 Cumpre apreciar e decidir.
 Deixamos desde já consignado que não se pode concordar com a posição assumida no 
 aliás douto despacho do Mm° Juiz Titular do Tribunal de Pequena Instância de 
 Lisboa, que declarou existir uma nulidade insanável por emprego de forma de 
 processo especial fora dos casos previstos na lei (art. 119°, al. f) do Código 
 de Processo Penal).
 Com efeito, a acusação deduzida nestes autos, respeitou na íntegra o disposto 
 nos arts. 391°-A e 39l°-B, do Código de Processo Penal, que, salvo melhor 
 opinião, fixam de forma definitiva, quando o uso do processo abreviado deve ter 
 lugar.
 Note-se, antes do mais, que na recente alteração legislativa em causa, não foi 
 alterado o disposto no art. 119°, al. do Código de Processo Penal, que prevê a 
 existência de nulidade insanável, em caso de emprego de forma de processo 
 especial fora dos casos expressamente previstos na lei.
 Por outro lado, é um facto que a actual lei, devido às alterações introduzidas 
 pela Lei 48/2007, introduziu um preceito novo, o art. 391°-D do Código de 
 Processo Penal, e é certo que tal dispositivo legal dispõe que, “A audiência de 
 julgamento em processo abreviado tem início no prazo de 90 dias a contar da 
 dedução da acusação.”
 Contudo, o desrespeito do prazo previsto em tal normativo inovador, apenas pode 
 consubstanciar uma irregularidade sujeita ao regime do art. 123° do Código de 
 Processo Penal, conforme, aliás, se expressa o Venerando Conselheiro Maia 
 Gonçalves no Código de Processo Penal anotado, na última edição.
 Com efeito, escreve aquele mui douto autor, “O início da audiência para além de 
 
 90 dias a contar da dedução da acusação constitui irregularidade, sujeita ao 
 regime do art. 123°.” (Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado, 
 Coimbra: Almedina, 2007, p. 824).
 Quanto a nós tal conclusão resulta à evidência, desde logo, com vista a 
 salvaguardar as regras da competência que são, diríamos nós sagradas em termos 
 jurídico-criminais, e por isso merecedoras da mais alta tutela, ou seja, 
 Constitucional, pelo preceituado no art. 32°, n°9 da Constituição da República 
 Portuguesa, onde se dispõe: “Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja 
 competência esteja fixada em lei anterior.”
 Desta norma Constitucional emana o princípio do juiz natural ou do juiz legal, 
 que é uma garantia do processo criminal.
 Neste âmbito, não pode ser assim descurado o facto de que na Comarca de Lisboa, 
 a competência para o julgamento dos processos abreviados está expressamente 
 atribuída ao Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa (art. 102°, n°1 da 
 LOFTJ).
 Com efeito, dispõe tal normativo, “1 - Compete aos juízos de pequena instância 
 criminal preparar e julgar as causas a que corresponda a forma de processo 
 sumário, abreviado e sumaríssimo.”
 Tal regra de competência, numa interpretação de acordo com a Constituição não 
 pode ser, de forma alguma violada.
 Recorde-se que a norma constitucional em referência (art. 32°, n°9 da CRP), tem 
 outros reflexos na legislação ordinária.
 Neste âmbito, destacam-se os arts. 22° e 23° da LOFTJ (Lei 3/99 de 13/0 1), onde 
 se prevê:
 
 (…)
 A consequência mediata da declaração de nulidade insanável do processado, por 
 emprego de processo especial fora dos casos expressamente previstos na lei, é a 
 alteração do tribunal competente para proceder ao julgamento da causa, porquanto 
 passando o processo a seguir a forma comum, na comarca de Lisboa (e todas as 
 outras comarcas onde se encontram instalados tribunais de pequena instância 
 criminal), o tribunal competente para o julgamento passa a ser um Juízo Criminal 
 
 (art. 100° da LOFTJ).
 Assim sendo, seguindo um entendimento onde a declaração de nulidade do 
 processado anterior conduz a uma alteração da forma do processo e, em 
 consequência, a uma alteração de competência do tribunal, neste caso, para o 
 julgamento do processo abreviado, fixada expressamente no já aludido art. 102°, 
 n°1 da Lei 3/99 de 13/01, afigura-se que tal despacho provoca um desaforamento 
 que não está especialmente previsto na lei, em violação expressa do art. 23° da 
 LOTFJ e do próprio princípio do juiz natural ou legal, constitucionalmente 
 consagrado no art. 32°, n°9 da CRP.
 O princípio do juiz natural ou legal, conforme nos recordam J.J. Gomes Canotilho 
 e Vital Moreira, in CRP anotada, Vol. I 4ª edição revista, Coimbra Editora: 
 
 2007, p. 525, comporta várias dimensões fundamentais, a saber: 
 
  
 
 “... (a) exigência de, determinabilidade o que implica que o juiz (ou juízes) 
 chamado(s) a proferir decisões num caso concreto estejam previamente 
 individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível 
 inequívoca; (b) princípio da fixação de competência, o que obriga à observância 
 das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos 
 preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do 
 juiz da causa; (c) observância das determinações de procedimento referentes à 
 divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a 
 fixação de um plano de distribuição de processos ...”
 
  
 Resulta pois da exposta doutrina, que a lei que fixa a competência deve estar 
 individualizada através de uma lei geral, de uma forma o mais possível 
 inequívoca, devendo tais regras ser respeitadas quer de forma mediata quer de 
 forma imediata, com tutela mesmo ao nível do plano de distribuição dos 
 processos.
 Ora, a interpretação que o despacho em causa realiza do disposto nos arts. 
 
 391°-D e 119° al. f) do Código de Processo Penal, põe em causa, conforme resulta 
 da presente exposição, de forma mediata mas evidente, as regras da competência 
 expressamente consagradas no art. 102°, n°1 da LOFTJ.
 Sufragando a interpretação do despacho em causa, a forma do processo e, de forma 
 mediata, a competência para o julgamento dos processos, fica, além do mais, 
 dependente das contingências particulares da vida humana, pois será a agenda do 
 juiz, o tempo na distribuição e conclusão do processo pela Secção de processos, 
 eventuais atrasos dos CTT, baixas por doença dos titulares do respectivo 
 tribunal, licenças de maternidade ou paternidade, que determinarão ou não a 
 possibilidade da realização do julgamento no prazo de 90 dias a contar da 
 dedução da acusação, conforme actualmente previsto no art. 391°-D do Código de 
 Processo Penal, e assim o emprego da forma especial do processo e a competência 
 do Tribunal de Pequena Instância Criminal para o julgamento.
 Ora, deste modo a competência do tribunal fica sujeito a uma evidente 
 indeterminabilidade e a regra da competência pré-fixada na lei a uma notória 
 subjectividade, em clara violação do art. 32°, n°9 da CRP.
 Neste âmbito, recorde-se o que os doutos constitucionalistas citados referem a 
 este respeito, “A escolha do tribunal competente deve resultar de critérios 
 objectivos predeterminados e não de critérios subjectivos.” (ibidem). A Lei é 
 geral e abstracta, e tais pressupostos, em matéria de competência fazem-se 
 sentir no mais elevado dos planos jurídicos, o Constitucional.
 Devido à importância da generalidade e abstracção na fixação das regras da 
 competência, donde emana o já invocado princípio do juiz natural ou legal, o 
 Código de Processo Penal não podia deixar de enquadrar violações a tais regras 
 nos mais intensos vícios processuais, ou seja, nos que consubstanciam nulidades 
 insanáveis, em concreto previsto no art. 119° al. e) do Código de Processo 
 Penal.
 Nem se diga, contra a interpretação que aqui se expõe, que a alteração da forma 
 do processo e, em consequência, da competência dos tribunais, vem reforçar os 
 direitos dos arguidos inicialmente submetidos ao julgamento em processo 
 abreviado, porquanto, actualmente, devido às alterações introduzidas pela Lei 
 
 48/2007 de 29/08, esta forma de processo deixou de prever o debate instrutório, 
 anteriormente previsto para esta forma do processo no art. 391°-C, n°2 do Código 
 de Processo Penal, sendo certo que com a passagem à forma do processo comum, o 
 arguido volta a ter direito à Instrução.
 Tal argumento, desde logo enferma de um vício de lógica, porquanto, no caso 
 concreto, tendo sido o arguido notificado do despacho de acusação, deduzido sob 
 a forma abreviada, foi-o ao abrigo da lei antiga, ou seja, quando tinha o 
 direito de requerer debate instrutório, não tendo o arguido usado de tal 
 faculdade.
 Entendemos pois, que o despacho em causa, além de violar as normas da LOFTJ e a 
 norma da CRP já cima citados, viola ainda o princípio da aplicação da lei 
 processual no tempo, que dispõe que a lei processual penal não deve ser aplicada 
 aos processos iniciados anteriormente à sua vigência, quando da sua 
 aplicabilidade imediata possa resultar quebra da harmonia e unidade dos vários 
 actos do processo, sendo certo que ao abrigo da anterior lei não resultava 
 qualquer agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do 
 arguido, nomeadamente a limitação dos seus direitos de defesa (art. 5º, n°2 al. 
 a) e b) do Código de Processo Penal).
 Em suma, o despacho proferido pelo Mm° Juiz, salvo melhor entendimento, mais não 
 faz do que pronunciar-se através da declaração da nulidade do emprego do 
 processo abreviado, de forma mediata e inconstitucional, sobre as regras da 
 competência dos tribunais comuns, anteriormente fixadas pelo legislador, 
 violando diversas normas da legislação ordinária que mais não visam do que dar 
 corpo ao princípio constitucional do juiz legal, consagrado no art. 32°, n°9 da 
 Constituição.
 Neste contexto, a interpretação dada à norma contida no actual art. 391°-D do 
 Código de Processo Penal, no sentido de que a inviabilidade da realização do 
 julgamento no prazo de 90 dias constitui uma nulidade insanável, que conduz, por 
 sua vez, à alteração da competência dos tribunais, neste caso, do Tribunal de 
 Pequena Instância Criminal e dos Juízos Criminais de Lisboa, é, salvo melhor 
 entendimento, inconstitucional, por violar o disposto no art. 32°, n°9 da 
 Constituição.
 Assim sendo, aceitar a aplicação das normas contidas nos arts. 119° al. f) e 
 
 391°-D do Código de Processo Penal, na interpretação que lhes foi dada no 
 despacho em causa, e aceitando assim, em consequência, a competência para o 
 julgamento dos presentes autos, constitui, quanto a nós, uma 
 inconstitucionalidade, que nos é vedada pelo mais elevado dever do juiz de 
 respeito à Constituição da República Portuguesa.
 Terá de ser pelo estabelecido nos arts. 391°-A e 391-B, que se considera fixada 
 a possibilidade do uso do processo especial abreviado e, em consequência, terá 
 de ser pela verificação dos pressupostos aí previstos que se considera fixada a 
 competência do Tribunal de Pequena Instância Criminal e Juízos Criminais de 
 Lisboa, em respeito pelas normas de competência previstas nos arts. 100°, 102°, 
 n°1, 22° e 23° da LOFTJ.
 Recorde-se, para terminar, que aqueles dispositivos do Código de Processo Penal 
 dispõem: 
 
 (…)
 A forma do processo e, consequentemente, a competência do Tribunal de Pequena 
 Instância Criminal e Juízos Criminais de Lisboa fixa-se pois de acordo com estes 
 dispositivos e não de acordo com o preceituado no art. 391°-D do mesmo diploma».
 
  
 
             d) Desta decisão foi interposto o presente recurso (requerimento de 
 
 30 de Abril de 2008), por a mesma “julgar inconstitucional a aplicação da norma 
 constante do artigo 391.º‑D em conjugação com disposto no artigo119.º -  f) do 
 Código de Processo Penal (na interpretação dada no despacho de fls. 57 a 63)” 
 
 [despacho do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa].
 
             e) Em 6 de Maio de 2008, foi interposto (e motivado) recurso do 
 mesmo despacho para o Tribunal da Relação, declarando desistir do recurso 
 interposto para o Tribunal Constitucional
 
             f) Por despacho de 16 de Junho de 2008, foi decidido: (a) admitir o 
 recurso para o Tribunal Constitucional; (b) não aceitar a desistência desse 
 recurso de constitucionalidade, por se tratar de recurso obrigatório; (c) não 
 admitir o recurso ordinário interposto, considerando o disposto no artigo 75.º 
 da LTC, sem prejuízo de eventual recurso a interpor após a descida dos autos do 
 Tribunal Constitucional.
 
             g) O Ministério Público reclamou deste despacho para o Presidente do 
 Tribunal da Relação de Lisboa;
 
             h) A reclamação foi indeferida considerando que “uma vez que a 
 instância de recurso para o Tribunal Constitucional se mantém pendente e válida, 
 
 é extemporâneo o recurso interposto para esta Relação”.
 
  
 
 4. Sustenta o Ministério Público, nas alegações, que o fundamento essencial para 
 a decisão tomada e por esta invocado expressamente é o entendimento do tribunal 
 a quo de disposições infra-constitucionais respeitantes à competência dos 
 tribunais, aos requisitos do processo abreviado e à qualificação da eventual 
 inobservância do prazo de julgamento e à aplicação da lei processual penal no 
 tempo quanto às novas normas relativas à forma de processo abreviado. Crucial é 
 a divergência de interpretação de normas de direito ordinário relativas a essas 
 questões entre os dois tribunais que declinaram a competência. Para o juiz do 
 TPICL, já não sendo possível cumprir o prazo (inovadoramente) estabelecido pelo 
 artigo 391.º-D do CPP, não poderia continuar a seguir-se a forma de processo 
 abreviado. Segundo o despacho recorrido esse entendimento seria errado, 
 mantendo-se a forma de processo abreviado e a consequente competência funcional 
 do TPICL, quer porque a lei nova não se aplica aos processos em que a 
 competência desse tribunal se fixara com base na acusação validamente deduzida 
 anteriormente nessa forma processual, quer porque a inobservância do prazo 
 estabelecido pelo citado artigo 391.º-D não implica nulidade processual. 
 Sendo assim, não estaríamos, segundo o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, perante 
 uma verdadeira “questão de inconstitucionalidade normativa” mas, na prática, 
 perante um conflito negativo de competência, pelo que não deveria conhecer-se do 
 presente recurso.
 
  
 
             5. Esta interpretação do despacho recorrido não é inteiramente 
 exacta. 
 Nesse despacho é discernível uma questão de constitucionalidade, embora “não […] 
 linear e [revestindo-se] de alguma complexidade” como o tribunal a quo 
 
 (re)afirma no despacho de fls. 64. Consiste ela no entendimento de que viola o 
 disposto no n.º 9 do artigo 39.º da Constituição (princípio do juiz natural) a 
 hipotética norma extraída dos artigos 119.º, alínea f) e 391.º-D do Código de 
 Processo Penal quando conjugadamente interpretados no sentido de que a 
 inviabilidade do julgamento no prazo de 90 dias a contar da dedução da acusação 
 constitui uma nulidade insanável, implicando a alteração da forma de processo 
 abreviado para processo comum e a consequente deslocação da competência do 
 
 âmbito do Tribunal de Pequena Instância Criminal para o Tribunal Criminal, nas 
 comarcas onde exista tal distribuição funcional de competências, como sucede em 
 Lisboa. Aliás, o despacho recorrido dá a essa questão a devida ênfase, 
 destacando no próprio dispositivo a resposta que para ela propugna. O mais que 
 poderá dizer-se é que, para que a base legal da norma desaplicada fique 
 completa, falta explicitar os preceitos que contém as regras de organização 
 judiciária de que resulta a subtracção da causa ao juiz inicialmente competente 
 em função da alteração da forma de processo.
 
  
 
             6. Todavia, o Ministério Público não deixa de ter razão quando pugna 
 pelo não conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade, a fim de que 
 o dissídio sobre a competência seja resolvido pelos meios ordinários.
 
  
 
             Com efeito, apesar do particular empenho do tribunal a quo em 
 sublinhar o juízo de inconstitucionalidade que lança sobre a interpretação e 
 aplicação feita no despacho do TPICL, é também inegável a adopção pelo despacho 
 recorrido daquela pluralidade de fundamentos que o Ministério Público salienta. 
 No plano da interpretação do direito ordinário, o despacho recorrido faz uma 
 opção clara e um sustentada defesa do entendimento de que a inobservância do 
 prazo de 90 dias a que se refere o artigo 391.º-D constitui uma mera 
 irregularidade que não impede o prosseguimento do caso na forma de processo 
 abreviado. E, igualmente de modo claro e sustentado, repudia a aplicabilidade da 
 lei nova nas circunstâncias do caso. Mais, a decisão recorrida expressa o 
 entendimento de que o despacho do primitivo juiz do processo, que está na origem 
 da sua remessa aos juízos criminais, errou quer na aplicação imediata da lei 
 processual nova, quer na interpretação das normas de orgânica judiciária perante 
 alterações do direito posteriores à fixação da competência, quer na 
 interpretação das novas normas processuais relativas ao uso da forma de processo 
 abreviado. E, na lógica do despacho recorrido, qualquer destes fundamentos, cuja 
 análise o tribunal a quo entende compreender-se no âmbito dos seus poderes no 
 momento da determinação da própria competência, é susceptível de alicerçar a 
 declinação dessa competência. 
 Posto isto, constatada a existência de fundamentos alternativos da decisão, isto 
 
 é, de pluralidade de fundamentos, um ou vários dos quais estranhos ao objecto do 
 recurso de constitucionalidade e por si só suficientes para assegurar o sentido 
 da decisão recorrida ainda que esta viesse a ser revogada na parte respeitante à 
 questão da (in)constitucionalidade, não deve conhecer-se do objecto do recurso. 
 O eventual provimento do recurso de constitucionalidade eliminaria um dos 
 fundamentos da decisão, mas não seria de molde a repercutir-se no sentido desta 
 que sempre subsistiria com base na interpretação do direito ordinário que a 
 decisão professa.
 
  
 
             7. A tanto não obsta a circunstância de se tratar de recurso 
 obrigatório, interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º e do n.º 
 
 3 do artigo 72.º da LTC.
 Reconhece-se que, na sua grande maioria, as decisões de não conhecimento do 
 recurso de constitucionalidade por existência de fundamentos alternativos na 
 decisão recorrida surgem em recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 
 
 1 do artigo 70.º da LTC, nos quais, por força da regra da prévia exaustão dos 
 recursos ordinários, a decisão recorrida para o Tribunal Constitucional coincide 
 com a decisão final da causa na ordem jurisdicional respectiva, e, por isso, o 
 eventual provimento do recurso de constitucionalidade se apresenta como 
 insusceptível de afectar, mais do que o sentido da decisão recorrida, o próprio 
 desfecho da causa. Mas também assim tem vindo a ser maioritariamente decidido 
 em recursos interpostos, como o presente, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do 
 artigo 70.º da LTC (Em sentidos divergentes, acórdão n.º 113/2006 e acórdão n.º 
 
 256/2004, ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, Cfr. também, a 
 jurisprudência citada por Victor Calvete, “Interesse e Relevância da Questão de 
 Constitucionalidade e Utilidade do Recurso de Constitucionalidade - Quatro Faces 
 de uma mesma Moeda”, Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da 
 Costa, 404). 
 
             Com efeito, se a sentença vier a ser confirmada quanto ao fundamento 
 que consiste na interpretação e aplicação do direito ordinário que na decisão se 
 propugna, nunca a apreciação da questão de constitucionalidade se revestirá de 
 interesse para a decisão da causa (Aliás, o mesmo parece suceder se a decisão 
 for revogada mas com fundamento na preclusão da questão relativa à forma do 
 processo por não ter sido impugnada pelos sujeitos processuais a decisão do TPIC 
 
 – cfr. acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/9/2008, 6/10/2008, 
 
 23/10/2008 e 15/1/2009, em processos 6376/2008-9, 6653/2008-5, 6354/2008-9 e 
 
 10999/2008-5, respectivamente). E se, nesse aspecto, a decisão vier a ser 
 revogada terá, então, de ser enfrentada a questão de constitucionalidade das 
 normas aplicadas e bem pode suceder que o tribunal superior não confirme o juízo 
 de inconstitucionalidade. 
 Assim, o conhecimento imediato da questão de constitucionalidade suscitada não 
 se reveste da utilidade inerente à função instrumental do recurso de 
 fiscalização concreta de constitucionalidade: a susceptibilidade de repercussão 
 no sentido da decisão da questão em que se enxerta, no momento de proceder à 
 reforma da decisão recorrida de acordo com o julgamento sobre a questão de 
 constitucionalidade.
 
  
 Aliás, em casos deste género pode mesmo sustentar-se que, apesar da afirmação de 
 inconstitucionalidade da interpretação adversa, enquanto se mantiver o 
 fundamento alternativo adoptado na sentença, não existe efectiva desaplicação da 
 norma em causa. Da norma, como o tribunal a quo a interpreta e aplica, não 
 resulta a verificação do efeito jurídico que se quer evitar (o alegado 
 desaforamento do processo) por não respeitar a Constituição. O sentido 
 inconstitucional é atribuído a uma outra interpretação que se tem por errada e a 
 que o tribunal não se sente vinculado, sequer por mecanismos de preclusão 
 processual, pelo que esse juízo não se apresenta como condição sine qua non da 
 decisão, no plano intrínseco desta. Assim, a vontade do legislador precipitada 
 na norma não pode dizer-se objectivamente afastada pelo juiz por desconformidade 
 
 à Constituição, pelo que o entendimento de que não deve conhecer-se do recurso 
 também não conflitua com as razões que levaram a Constituição (artigo 280.º, n.º 
 
 3, da CRP) e a lei (artigo 72.º, n.º 3, da LTC) a configurar o recurso como 
 obrigatório para o Ministério Público. 
 
  
 III. Decisão
 
  
 
             Pelo exposto, acordam em não conhecer do objecto do presente 
 recurso.      
 
             Sem custas.
 Lisboa, 25/3/2009
 Vítor Gomes
 Carlos Fernandes Cadilha
 Ana Maria Guerra Martins
 Maria Lúcia Amaral
 Gil Galvão