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Processo n.º 776/08
 Plenário
 Relator: Conselheiro Mário Torres
 
                  
 
   Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional.
 
  
 
  
 
                         I – Relatório
 
                         1. O representante do Ministério Público junto do 
 Tribunal Constitucional requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de 
 Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, 
 aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela 
 Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), a apreciação e a declaração, com 
 força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 
 
 175.º, n.º 4, do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 114/94, de 3 
 de Maio, na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, 
 segundo a qual, paga voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na 
 fase de impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção 
 acessória de inibição de conduzir, discutir a existência da infracção.
 
                         Aduz o requerente que a referida interpretação normativa 
 foi, no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade, julgada 
 materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 5, e 
 
 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), através do Acórdão 
 n.º 45/2008 e das Decisões Sumárias n.ºs 295/2008 e 306/2008.
 
  
 
                         2. Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 
 
 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, o Primeiro-Ministro, em resposta, ofereceu o 
 merecimento dos autos.
 
  
 
                         3. Debatido o memorando apresentado pelo Presidente do 
 Tribunal, nos termos do artigo 63.º da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, 
 procedeu‑se à distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.
 
  
 
                         II – Fundamentação
 
                         4. Não se suscitam dúvidas quanto ao preenchimento dos 
 requisitos previstos nos artigos 281.º, n.º 3, da CRP e 82.º da LTC, tendo o 
 Tribunal Constitucional julgado inconstitucional a interpretação normativa em 
 causa nas três decisões identificadas pelo requerente – Acórdão n.º 45/2008 e 
 Decisões Sumárias n.ºs 295/2008 e 306/2008 –, juízo esse que, aliás, foi 
 igualmente formulado nas Decisões Sumárias n.ºs 208/2008, 243/2008, 320/2008, 
 
 333/2008, 351/2008, 384/2008, 389/2008, 508/2008 e 510/2008, sendo idêntico o 
 critério normativo julgado inconstitucional em todas elas, apesar de, nalguns 
 casos, serem diversos os preceitos legais a que tal critério foi reportado (a 
 Decisão Sumária n.º 208/2008 foi reportada aos artigos 172.º, n.º 5, e 175.º, 
 n.º 4, a Decisão Sumária n.º n.º 320/2008 apenas ao artigo 172.º, n.º 5, as três 
 
 últimas aos artigos 172.º, n.º 5, 173.º, n.º 1, e 175.º, n.º 4, e as restantes 
 exclusivamente ao artigo 175.º, n.º 4, todos do Código da Estrada).
 
  
 
                         5. Na sua redacção originária, o Código da Estrada 
 vigente, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, permitia o 
 pagamento voluntário das coimas previstas para as contra‑ordenações nele 
 definidas, pagamento que seria feito pelo mínimo da coima aplicável (artigo 
 
 154.º, n.º 1) e que “implica[va] a condenação do infractor na sanção acessória 
 correspondente, também pelo mínimo, sem prejuízo do disposto nos artigos 143.º, 
 
 144.º e 145.º” (artigo 154.º, n.º 2), que, respectivamente, possibilitavam a 
 dispensa da sanção acessória (tendo em conta as circunstâncias da mesma e o 
 facto de o condutor ser infractor primário ou não ter praticado qualquer 
 contra‑ordenação grave ou muito grave nos últimos três anos – artigo 143.º), a 
 sua atenuação especial (com redução para metade da sua duração mínima e máxima, 
 tendo em conta os mesmos factores – artigo 144.º) ou a suspensão da sua execução 
 
 (verificando‑se os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a 
 suspensão da execução das penas – artigo 145.º). O procedimento para aplicação 
 das sanções era regulado no artigo 155.º, que previa que, antes da 
 correspondente decisão, as pessoas interessadas fossem notificadas dos factos 
 constitutivos da infracção e das sanções aplicáveis (n.º 1), sendo, “quando 
 possível, o interessado […] notificado no acto de autuação, mediante a entrega 
 de um exemplar do auto de notícia, donde conste a possibilidade de pagamento 
 voluntário pelo mínimo e suas consequências quanto à sanção acessória, prazo e 
 local para pagamento voluntário e para apresentação de defesa” (n.º 2), devendo 
 os interessados, no prazo de 15 dias a contar da notificação, apresentar a sua 
 defesa por escrito ou proceder ao pagamento voluntário (n.º 3), dispondo o 
 subsequente n.º 4 que: “Os interessados que procedam ao pagamento voluntário da 
 coima não ficam impedidos de apresentar a sua defesa para efeitos do disposto 
 nos artigos 143.º, 144.º e 145.º”, ou seja, para efeitos de alcançar a dispensa 
 de aplicação da sanção acessória, a sua atenuação especial ou a suspensão da sua 
 execução.
 
                         Das alterações ao Código da Estrada introduzidas pelo 
 Decreto‑Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, resultou que, continuando a admitir‑se o 
 pagamento voluntário da coima, pelo mínimo (artigo 153.º, n.º 1), esse pagamento 
 
 “determina o arquivamento do processo, salvo se a contra‑ordenação for grave ou 
 muito grave, caso em que prossegue restrito à aplicação da inibição de 
 conduzir” (n.º 4 do artigo 153.º). O artigo 155.º passou a dispor que, “antes da 
 decisão sobre a aplicação das sanções, os interessados devem ser notificados: a) 
 Dos factos constitutivos da infracção; b) Das sanções aplicáveis; c) Do prazo 
 concedido para a apresentação de defesa e o local; d) Da possibilidade de 
 pagamento voluntário da coima pelo mínimo, bem como do prazo e do local para o 
 efeito, e das consequências do não pagamento” (n.º 1), podendo os interessados, 
 no prazo de 20 dias a contar da notificação, apresentar a sua defesa ou 
 proceder ao pagamento voluntário (n.º 2), dispondo o subsequente n.º 3 que: “Os 
 interessados que procedam ao pagamento voluntário da coima não ficam impedidos 
 de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção de 
 inibição de conduzir aplicável”.
 
                         O Decreto‑Lei n.º 265‑A/2001, de 28 de Setembro, 
 relativamente aos preceitos em causa, limitou‑se a transferir para o n.º 5, sem 
 alteração de redacção, o n.º 4 do artigo 153.º; a acrescentar, no n.º 1 do 
 artigo 155.º, a exigência da menção à “legislação infringida” (nova alínea b), 
 tendo transitado as anteriores alíneas b), c) e d) para as novas alíneas c), d) 
 e e)) na notificação que deve ser feita ao arguido “após o levantamento do 
 auto”; e, no n.º 3 do artigo 155.º, a substituir a expressão “interessados” por 
 
 “arguido” (“O arguido que proceda ao pagamento voluntário da coima não fica 
 impedido de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à 
 sanção de inibição de conduzir aplicável”).
 
                         Finalmente, o Decreto‑Lei n.º 44/2005, de 23 de 
 Fevereiro, transferiu para os artigos 172.º e 175.º a matéria anteriormente 
 regulada nos artigos 153.º e 155.º, dispondo agora o n.º 5 do artigo 172.º que 
 
 “o pagamento voluntário da coima nos termos dos números anteriores determina o 
 arquivamento do processo, salvo se à contra‑ordenação for aplicável sanção 
 acessória, caso em que prossegue restrito à aplicação da mesma” e o n.º 4 do 
 artigo 175.º que “o pagamento voluntário da coima não impede o arguido de 
 apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção acessória 
 aplicável”.
 
                         Apesar de as normas referidas (artigos 154.º e 155.º da 
 versão originária, artigos 153.º e 155.º das versões de 1998 e de 2001 e 
 artigos 172.º e 175.º da versão de 2005) estarem inseridas na regulamentação da 
 fase administrativa do procedimento contra‑ordenacional em causa e, portanto, a 
 
 “defesa” neles referida respeitar à defesa apresentada pelo arguido perante a 
 autoridade administrativa competente para proferir a decisão sancionatória, o 
 certo é que a restrição desta defesa, primeiro, para os “efeitos do disposto nos 
 artigos 143.º, 144.º e 145.º” (ou seja, para efeitos de alcançar a dispensa de 
 aplicação da sanção acessória, a sua atenuação especial ou a suspensão da sua 
 execução) e, desde 1998, “à gravidade da infracção e à sanção de inibição de 
 conduzir [ou sanção acessória] aplicável” tem sido jurisprudencialmente 
 entendida – como se demonstrou no Acórdão n.º 45/2008, com referência a diversas 
 decisões de Tribunais de Relação – como implicando também uma restrição da 
 defesa que o arguido pretenda deduzir perante os tribunais, no âmbito da 
 impugnação judicial da decisão administrativa sancionatória.
 
  
 
                         6. Diversamente do que ocorre nos processos de 
 fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade ou da legalidade 
 originados em pedidos formulados ao abrigo dos n.ºs 1 e 2 do artigo 281.º da 
 CRP, em que compete ao Tribunal Constitucional determinar, aplicando as regras 
 de interpretação jurídica tidas por relevantes, qual o correcto conteúdo da 
 norma questionada, não estando vinculado a adoptar a leitura perfilhada pelo 
 requerente, nos processos de “generalização” de juízos concretos de 
 inconstitucionalidade e de ilegalidade, referidos no n.º 3 daquele preceito 
 constitucional e no artigo 82.º da LTC, constitui um dado da questão a decidir, 
 insusceptível de alteração pelo Tribunal, a específica interpretação normativa 
 que foi objecto de anteriores juízos de inconstitucionalidade ou ilegalidade, 
 interpretação essa que, por seu turno, corresponde, em regra, à adoptada nas 
 decisões dos restantes tribunais objecto dos recursos de fiscalização concreta, 
 onde viriam a ser emitidos esses juízos, já que o Tribunal, por via de princípio 
 
 (ressalvados os casos de uso da faculdade excepcional prevista no artigo 80.º, 
 n.º 3, da LTC), se abstém de sindicar a correcção da interpretação do direito 
 ordinário efectuada pelas instâncias (cf. Acórdãos n.ºs 27/2006 e 63/2006).
 
                         Assim como, nos processos de fiscalização concreta onde 
 foram emitidos os juízos de inconstitucionalidade cuja “generalização” agora se 
 pretende, o Tribunal Constitucional não se pronunciou sobre qual a 
 interpretação do direito ordinário que considerava mais correcta, também agora 
 do que se trata é de decidir se padece, ou não, de inconstitucionalidade o 
 critério normativo identificado nas decisões das instâncias e que foi objecto 
 dos juízos de inconstitucionalidade nas três decisões invocadas, que, a esse 
 respeito, utilizaram sempre a mesma formulação: o critério normativo segundo o 
 qual, “paga voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na fase de 
 impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de 
 inibição de conduzir, discutir a existência da infracção”.
 
                         E como resulta, designadamente, da fundamentação das 
 decisões das instâncias e das referências, nos respectivos relatórios, às 
 questões que os arguidos pretendiam discutir no âmbito das impugnações judiciais 
 das decisões administrativas aplicativas da sanção de inibição de conduzir, o 
 que, em concreto, se entendia pela “possibilidade de discutir a existência da 
 infracção” traduzia‑se, não apenas na faculdade de questionar a correcção da 
 qualificação jurídica dos factos, mas a própria verificação dos factos, 
 reivindicando os impugnantes o direito a, perante o tribunal, discutir quer a 
 efectiva verificação dos factos que teriam consubstanciado a contra‑ordenação, 
 quer a ocorrência de vícios de vontade que teriam inquinado a decisão de 
 proceder ao pagamento voluntário da coima. Recorde‑se, a título 
 exemplificativo, que, no recurso, interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do 
 artigo 70.º da LTC, onde foi proferido o Acórdão n.º 45/2008 (em caso em que na 
 impugnação judicial da decisão administrativa que aplicara a sanção acessória de 
 inibição de conduzir, na sequência do pagamento voluntário da coima por 
 contra‑ordenação consistente no não cumprimento do sinal de paragem obrigatória 
 num cruzamento, a recorrente sustentara ter parado ao sinal Stop, só reiniciando 
 a marcha após verificar que não circulava nenhum veículo na outra via, e só ter 
 pago voluntariamente a coima “porque pensou assim estar obrigada, mas não 
 reconheceu nem reconhece ter cometido a infracção por que foi condenada”), o 
 acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Coimbra, de 9 de Maio de 2007, 
 recusou, por inconstitucionalidade, a aplicação da norma questionada, entendida 
 como estabelecendo “uma presunção inilidível, que acarreta a derrogação do 
 direito de defesa ampla do arguido”, sustentando‑se nesse aresto que “o 
 indiciado infractor pode defender‑se, sem quaisquer restrições, alegando mesmo a 
 não verificação/prática da infracção, ainda que tenha ele mesmo (quiçá, outrem, 
 a fortiori) procedido ao pagamento voluntário da coima”. E no recurso, 
 interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, onde foi 
 proferida a Decisão Sumária n.º 306/2008, o acórdão recorrido, do Tribunal da 
 Relação de Lisboa, de 21 de Fevereiro de 2008, aplicou, por a não reputar 
 inconstitucional, a norma em causa, consignando que da sua correcta 
 interpretação “resulta que o arguido que paga voluntariamente a coima não pode 
 colocar depois em causa a prática dos factos, negando‑os”. Também no recurso, 
 este interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, onde foi 
 proferida a Decisão Sumária n.º 243/2008, o acórdão recorrido, do Tribunal da 
 Relação de Évora, de 26 de Fevereiro de 2008, aplicara a questionada norma no 
 sentido de ao recorrente (que pretendera, na impugnação judicial, “discutir a 
 verificação ou o cometimento da contra‑ordenação”), não ser “permitido (…) 
 pronunciar‑se sobre a veracidade dos factos”.
 
                         É, pois, com os apontados sentido e alcance quanto à 
 impossibilidade de discutir a existência da infracção que cumpre apreciar a 
 conformidade constitucional do critério normativo questionado.
 
  
 
                         7. Relativamente ao parâmetro constitucional a ter em 
 conta na apreciação da questão, o Acórdão n.º 45/2008 começou por salientar que 
 o n.º 10 do artigo 32.º da CRP, na sua directa estatuição, é irrelevante para o 
 presente caso, pois, como se sustentou nos Acórdãos n.ºs 659/2006 e 313/2007, 
 com a introdução dessa norma constitucional (efectuada, pela revisão 
 constitucional de 1989, quanto aos processos de contra‑ordenação, e alargada, 
 pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios) o que se pretendeu 
 foi assegurar, nesses tipos de processos, os direitos de audiência e de defesa 
 do arguido, direitos estes que, na versão originária da Constituição, apenas 
 estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no 
 
 âmbito da função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao actual artigo 
 
 269.º, n.º 3). Tal norma implica tão‑só ser inconstitucional a aplicação de 
 qualquer tipo de sanção, contra‑ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, 
 disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido 
 
 (direito de audição) e possa defender‑se das imputações que lhe são feitas 
 
 (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de 
 diligências tendentes a apurar a verdade (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, 
 Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o 
 limitado alcance da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido 
 rejeitada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido 
 de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e 
 demais processos sancionatórios”, de “todas as garantias do processo criminal” 
 
 (artigo 32.º‑B do Projecto de Revisão Constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o 
 correspondente debate no Diário da Assembleia da República, II Série‑RC, n.º 
 
 20, de 12 de Setembro de 1996, pp. 541‑544, e I Série, n.º 95, de 17 de Julho de 
 
 1997, pp. 3412 e 3466).
 
                         Mas, como se reconheceu nesse Acórdão n.º 659/2006, é 
 
 óbvio que não se limitam aos direitos de audição e defesa as garantias dos 
 arguidos em processos sancionatórios, mas é noutros preceitos constitucionais, 
 que não no n.º 10 do artigo 32.º, que eles encontram esteio. É o caso, desde 
 logo, do direito de impugnação perante os tribunais das decisões sancionatórias 
 em causa, direito que se funda, em geral, no artigo 20.º, n.º 1, e, 
 especificamente para as decisões administrativas, no artigo 268.º, n.º 4, da 
 CRP. E, entrados esses processos na “fase jurisdicional”, na sequência da 
 impugnação perante os tribunais dessas decisões, gozam os mesmos das genéricas 
 garantias constitucionais dos processos judiciais, quer directamente referidas 
 naquele artigo 20.º (direito a decisão em prazo razoável e garantia de processo 
 equitativo), quer dimanados do princípio do Estado de direito democrático 
 
 (artigo 2.º da CRP), sendo descabida a invocação, para esta fase, do disposto 
 no n.º 10 do artigo 32.º da CRP.
 
  
 
                         8. A questão que se coloca é, pois, a de saber se 
 respeita os requisitos constitucionais do acesso aos tribunais para tutela 
 efectiva de direitos e interesses legalmente reconhecidos, através de um 
 processo equitativo, no âmbito de um processo judicial de impugnação de uma 
 decisão administrativa de cariz sancionatório, o critério normativo segundo o 
 qual o pagamento voluntário da coima por contra‑ordenação rodoviária 
 impossibilita o arguido de discutir em tribunal a própria existência da 
 infracção.
 
                         A resposta – adiante‑se desde já – é negativa, quer se 
 considere que na base de tal entendimento se encontra o estabelecimento de uma 
 presunção inilidível (cf., infra, 8.2), quer a atribuição de valor probatório 
 absoluto à confissão do arguido que estaria implícita na sua opção pelo 
 pagamento voluntário da coima (cf., infra, 8.3), quer uma renúncia à impugnação 
 do acto ou à invocação de um específico fundamento de impugnação (cf., infra, 
 
 8.4).
 
  
 
                         8.1. Em anteriores decisões deste Tribunal é possível 
 encontrar contributos úteis para a apreciação do presente caso.
 
                         Assim, no Acórdão n.º 29/84 julgou‑se inconstitucional a 
 norma do artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro, “quanto ao seu § 2.º, quando 
 estatui que o pedido de liquidação importa a confissão dos factos referidos no 
 auto de notícia ou na participação”, pretendendo‑se com tal disposição “fazer 
 resultar do pedido de liquidação de responsabilidade pelo arguido a condenação 
 automática deste, fazendo equivaler esse pedido à aceitação de uma qualquer 
 condenação pela infracção constante do auto de notícia”.
 
                         Antes da conversão da generalidade das infracções 
 rodoviárias de transgressões (ou contravenções), ainda inseridas no âmbito 
 penal, em contra‑ordenações, diversos juízos de inconstitucionalidade (Acórdãos 
 n.ºs 28/83, 315/85, 135/86 e 187/96) conduziram, através de processo de 
 generalização, à prolação do Acórdão n.º 337/86, que declarou, com força 
 obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.ºs 
 
 1, 3 e 5, da CRP, da norma do artigo 61.º, n.º 4, do Código da Estrada então 
 vigente, na parte em que atribuía competência à Direcção‑Geral de Viação para 
 aplicar a medida de inibição da faculdade de conduzir ao condutor que, tendo 
 cometido uma transgressão estradal, paga voluntariamente a multa. E no Acórdão 
 n.º 442/94 foi julgada inconstitucional, por violação do princípio 
 constitucional da defesa que para os processos sancionatórios decorre do 
 princípio do Estado de Direito democrático e das garantias que o realizam, 
 consagradas no artigo 32.º, n.ºs 1, 3 e 5, da CRP, a norma do artigo 1.º, n.º 1, 
 alínea e), do Decreto‑Lei n.º 387‑E/87, de 29 de Dezembro, na interpretação 
 
 (acolhida na decisão então recorrida) segundo a qual, havendo pagamento 
 voluntário da multa pela transgressão prevista no artigo 1.º da Lei n.º 3/82, de 
 
 29 de Março (condução sob efeito do álcool), a medida de inibição de conduzir 
 pode ser decretada por despacho, sem prévia audiência de julgamento; 
 consignando‑se neste acórdão que a controvérsia acerca da natureza da medida de 
 inibição de conduzir (medida de segurança, pena acessória ou efeito da pena) 
 
 “não afasta a evidência de que ela representa a ablação de um espaço de 
 liberdade cívica que só pode ser determinada por acto de juiz e com prévia 
 audiência de julgamento”.
 
                         Já após a aludida introdução do ilícito de mera 
 ordenação no domínio das infracções rodoviárias, o Acórdão n.º 264/99 viria a 
 não julgar inconstitucional a norma do artigo 154.º, n.º 2, do actual Código da 
 Estrada (aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 114/94, de 3 de Maio), na versão anterior 
 
 à que lhe foi dada pelo Decreto‑Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, mas fê‑lo porque 
 entendeu que o pagamento voluntário da coima não tinha como efeito automático a 
 aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir, consignando‑se neste 
 acórdão que “este pagamento não impõe só por si a aplicação da sanção acessória, 
 dependendo das «circunstâncias da mesma» ser ou não aplicada em cada caso”. E, 
 no caso, o objecto do recurso fora limitado à constitucionalidade da 
 interpretação que o recorrente fazia resultar do dito artigo 154.º, n.º 2, 
 pretendendo “ver aí uma condenação automática [na sanção acessória] derivada do 
 pagamento voluntária da coima”, tendo sido excluída do conhecimento do 
 Tribunal, porque extemporaneamente suscitada apenas no requerimento de 
 interposição de recurso de constitucionalidade, a questão da constitucionalidade 
 do entendimento, extraído do mesmo preceito, de que “o pagamento voluntário (…) 
 implica confissão dos factos imputados ao arguido”.
 
  
 
                         8.2. O entendimento da norma ora questionada como 
 estabelecendo uma presunção inilidível não pode deixar de ter‑se como 
 constitucionalmente insolvente. Não se questiona a possibilidade de o 
 legislador, mesmo em matéria sancionatória (inclusive penal) estabelecer 
 presunções e, portanto, seria lícito fazer presumir do pagamento voluntário da 
 coima a ocorrência da infracção. Mas o que é intolerável é a inilidibilidade 
 dessa presunção, ao proibir‑se que o arguido faça prova, perante o tribunal, da 
 sua não verificação. No sentido da admissibilidade de presunções, desde que 
 ilidíveis, cf. os Acórdãos n.ºs 63/85, 447/87, 135/92 e 922/86 (sobre a 
 responsabilidade criminal dos directores de periódicos) e 252/92 (sobre 
 presunção de origem estrangeira de determinadas mercadorias).
 
                         Na situação em apreço, não surge como razoável impor 
 como contrapartida à “vantagem” que o arguido terá obtido, ao decidir proceder 
 ao pagamento voluntário da coima, consistente em ter de desembolsar o montante 
 mínimo aplicável, o inconveniente de não poder discutir a efectiva verificação 
 dos factos, surgindo como suficientemente penalizador a posição de desvantagem 
 de que ele naturalmente partirá, perante o tribunal, que normalmente associará 
 
 àquele pagamento o reconhecimento da prática da infracção, sendo, por isso, o 
 impugnante particularmente onerado com especiais exigências probatórias que 
 conduzam à ilisão dessa “presunção”.
 
                         Não se ignorando que serão menos intensas as 
 preocupações garantísticas em processos contra‑ordenacionais em comparação com o 
 processo criminal (cf. Acórdãos n.ºs 269/87 e 313/2007), aquelas não podem, 
 contudo, ser de tal modo desvalorizadas que ponham em cheque a própria 
 efectividade da tutela jurisdicional e as exigências de um processo equitativo.
 
  
 
                         8.3. Mesmo que não se transponham para o processo 
 contra‑ordenacional as apertadas regras de que o artigo 344.º do Código de 
 Processo Penal rodeia a relevância da confissão do arguido em processo criminal, 
 não pode, porém, deixar de considerar‑se que não pode valer como confissão da 
 prática da infracção – em termos de postergar em definitivo qualquer hipótese de 
 retractação – o pagamento voluntário da coima, designadamente feito no próprio 
 acto da autuação, por arguido normalmente desprovido da possibilidade de 
 aconselhamento jurídico e que poderá não se ter apercebido das consequências 
 dessa opção. Como já no Acórdão n.º 337/86 se admitiu, no domínio de anterior 
 legislação, “o arguido pode ter liquidado a multa apenas para evitar o incómodo 
 de ir a tribunal discutir a prática da própria contravenção, mas sem sequer se 
 ter lembrado de que poderia vir a ficar privado, por algum tempo, do direito de 
 conduzir (…), ou sem que, ao menos, essa consequência se lhe apresentasse como 
 provável (…)”. Eventualidade de desconhecimento esta que, no regime legal ora em 
 apreço, ganha plausibilidade, pois, enquanto na redacção originária do Código da 
 Estrada de 1994 se impunha que na notificação da autuação fosse entregue ao 
 arguido um exemplar do auto de notícia “donde conste a possibilidade de 
 pagamento voluntário pelo mínimo e suas consequências quanto à sanção acessória” 
 
 (artigo 155.º, n.º 2), a partir das alterações introduzidas pelo Decreto‑Lei 
 n.º 2/98, de 3 de Janeiro, o interessado passou a ser notificado “da 
 possibilidade do pagamento voluntário da coima pelo mínimo (…), e das 
 consequências do não pagamento” (artigo 155.º, alínea d)); isto é: o 
 interessado deixou de ter de ser informado das consequências do pagamento 
 voluntário, designadamente da probablilidade (e, em diversos casos, mesmo 
 inevitabilidade) da aplicação da sanção acessória de inibição de condução e da 
 impossibilidade de discutir, quer na fase administrativa, quer na fase judicial 
 do procedimento contra‑ordenacional, a existência da infracção.
 
                         São, obviamente, ininvocáveis argumentos, extraídos da 
 regulamentação do processo sumaríssimo penal, no sentido da admissibilidade 
 constitucional de se atribuir relevância à manifestação de concordância do 
 arguido com as sanções propostas pelo Ministério Público, com dispensa de 
 realização de audiência de julgamento e de produção de prova, já que, nesses 
 casos: (i) ao arguido é sempre assegurada assistência por advogado constituído 
 ou defensor nomeado; (ii) a notificação ao arguido do requerimento do Ministério 
 Público (com indicação das sanções concretamente propostas e da quantia exacta a 
 atribuir a título de reparação) ou da alternativa estabelecida pelo juiz é 
 feita por contacto pessoal e deve conter obrigatoriamente a informação do 
 direito de o arguido se opor à sanção e da forma e prazo para o fazer, além do 
 esclarecimento dos efeitos da oposição e da não oposição (artigos 394.º a 396.º 
 do CPP).
 
                         Também neste contexto, o entendimento em causa não pode 
 deixar de ser considerado como determinando um encurtamento intolerável das 
 garantias exigidas pelo princípio da tutela jurisdicional efectiva e do processo 
 equitativo.
 
  
 
                         8.4. Finalmente, não se afigura possível evitar a 
 censura constitucional do critério normativo em causa, vendo no pagamento 
 voluntário da coima uma “renúncia” ao direito à impugnação judicial do acto de 
 aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir ou a “renúncia” à 
 invocação de um dos fundamentos possíveis de impugnação do acto.
 
                         Sublinhe‑se que o que está em causa não é a 
 impossibilidade de, uma vez paga voluntariamente a coima, questionar o dever 
 deste pagamento, sob qualquer perspectiva, mas antes a imposição, já no âmbito 
 da impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória 
 de inibição de conduzir na sequência do pagamento voluntário da coima, da 
 proibição de discutir a existência da infracção, o que se traduz, no mínimo, na 
 negação da possibilidade de o interessado arguir um dos possíveis vícios desse 
 acto administrativo: o erro sobre os pressupostos de facto.               
 
                         Ora, como a jurisprudência deste Tribunal (cf., entre 
 outros, os Acórdãos n.ºs 429/89 e 8/99) e a mais relevante doutrina têm 
 reiteradamente afirmado, “o artigo 269.º, n.º 2 [actual artigo 268.º, n.º 4], da 
 Constituição, pode e deve ser interpretado como estabelecendo uma garantia 
 completa de recurso, quer dizer, uma garantia que assegura aos particulares a 
 possibilidade de impugnarem judicialmente todos os actos singulares e concretos 
 da Administração Pública que produzam efeitos jurídicos externos e sejam 
 susceptíveis, portanto, de lesar os seus direitos”, pelo que “quaisquer normas 
 legais que excluam esta possibilidade de impugnação relativamente a certos actos 
 ou a certas categorias de actos administrativos ou que restrinjam os possíveis 
 fundamentos de tal impugnação apenas a alguns dos vícios susceptíveis de gerar a 
 antijuridicidade desses actos, têm de ser havidas como inconstitucionais, e, por 
 via de consequência, como inteiramente irrelevantes” (José Manuel Cardoso da 
 Costa, “A tutela dos direitos fundamentais”, Boletim do Ministério da Justiça – 
 Documentação e Direito Comparado, n.º 5, 1981, p. 209). Ou, na formulação de J. 
 J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa 
 Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, p. 938): “A garantia constitucional do 
 recurso impede a isenção contenciosa de certos actos, ou partes de actos, ou a 
 exclusão do conhecimento de certos vícios, de modo a conferir direito à 
 impugnação contenciosa de todos os actos em todos os aspectos juridicamente 
 vinculados”.
 
                         O critério normativo questionado, nesta última 
 perspectiva, não poderia deixar de ser encarado como representando a proibição 
 de impugnar o acto administrativo aplicativo da inibição de conduzir com 
 fundamento num dos seus possíveis vícios geradores de ilegalidade: o erro sobre 
 os pressupostos de facto. Também por esta via se impõe a emissão de declaração 
 de inconstitucionalidade do critério normativo questionado.
 
  
 
                         III – Decisão
 
                         Em face do exposto acordam em declarar, com força 
 obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º, n.ºs 
 
 1 e 5, e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, da norma 
 constante do artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada, aprovado pelo 
 Decreto‑Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º 
 
 44/2005, de 23 de Fevereiro, interpretada no sentido de que, paga 
 voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na fase de impugnação 
 judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição 
 de conduzir, discutir a existência da infracção.
 Lisboa, 18 de Março de 2009.
 Mário José de Araújo Torres
 Joaquim de Sousa Ribeiro
 Maria Lúcia Amaral
 José Manuel Borges Soeiro
 João Cura Mariano
 Benjamim Silva Rodrigues
 Carlos Fernandes Cadilha
 Ana Maria Guerra Martins
 Vítor Gomes (Com declaração anexa)
 Carlos Pamplona de Oliveira - Com declaração
 Gil Galvão (Vencido, no essencial, pelas razões constantes  da declaração de
 voto da Exma. Conselheira Maria João Antunes, para a qual remeto)
 Maria João Antunes (Vencida, nos termos da declaração junta)
 Rui Manuel Moura Ramos
 
  
 
  
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
  
 
             Entendo que não viola a garantia de tutela jurisdicional contra 
 actos administrativos lesivos (artigo 268.º, n.º 4, da CRP) ou a garantia de 
 tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º, n.º 1, da CRP) a consagração 
 normativa da possibilidade de renúncia antecipada a discutir o pressuposto de 
 facto pré-determinado do acto sancionatório em processo de contra-ordenação 
 
 (Para esta questão de constitucionalidade não é decisivo que a indiscutibilidade 
 seja concebida como resultante da presunção, confissão, aceitação ou renúncia). 
 O que a jurisprudência do Tribunal tem considerado contrário à plenitude da 
 garantia de impugnação de actos administrativos lesivos são limitações do âmbito 
 da discussão jurisdicional da legalidade do acto administrativo, estabelecidas 
 de modo geral e abstracto em função de factores estranhos à vontade do 
 interessado. Não se retira dessa jurisprudência a proibição da renúncia à 
 discussão de elementos já conhecidos ou cognoscíveis do acto em formação, 
 mediante um acto de vontade expresso ou tácito.  Designadamente, afigura-se 
 compatível com essa garantia que, num procedimento complexo de aquisição ou 
 formação progressiva da decisão administrativa, em que seja possível autonomizar 
 um momento procedimental susceptível de fixar o pressuposto de facto do acto 
 final, se ligue a determinada conduta do interessado o efeito de estabilizar 
 esse elemento do acto. Sobretudo quando também o interessado disso retira 
 consequências vantajosas num outro aspecto da relação jurídica (aqui) 
 sancionatória.
 
             Ora, em regra, quem paga voluntariamente uma coima é porque aceita 
 os factos que lhe são imputados no auto de notícia ou, suposto tratar-se de um 
 decisor racional, porque opta por sacrificar a probabilidade de que a infracção 
 não venha a provar-se à vantagem certa do pagamento da coima pelo mínimo. A 
 inibição de conduzir tem a natureza de sanção acessória e é aplicada com base 
 nesses mesmos factos, no âmbito do mesmo procedimento que culminaria numa 
 decisão que abrangeria necessariamente os dois aspectos, a sanção principal (a 
 coima) e a sanção acessória ( a inibição da faculdade de conduzir), não fora o 
 interessado ter aceite a primeira. Nada tem de arbitrário ou desrazoável que a 
 aceitação da factualidade para efeito da sanção principal mediante o pagamento 
 voluntário, bloqueador do poder administrativo de graduação da coima entre os 
 limites legalmente estabelecidos, valha para a sanção acessória que depende da 
 prova da mesma infracção. 
 
             E não vislumbro razão para ser mais exigente perante actos de 
 disposição de poderes processuais ou espaços de consenso no processo de 
 contra-ordenação do que no processo penal, onde se admite a renúncia à discussão 
 dos factos, mediante confissão livre, integral e sem reservas (artigo 344.º do 
 CPP) e, em processo sumaríssimo, quando não se trate de aplicar pena ou medida 
 de segurança privativas da liberdade como aqui também não se trata, se vai ao 
 ponto de permitir a própria aceitação da pena proposta pela acusação (artigo 
 
 397.º do CPP). 
 
             Força é, porém, que tal efeito normativo seja ligado a um acto de 
 vontade, livre e esclarecido. Ora, como o acórdão demonstra, o Código da Estrada 
 não exige actualmente às entidades policiais ou administrativas a advertência do 
 interessado para as consequências do pagamento voluntário da coima e, por outro 
 lado, a norma vem interpretada no sentido de nem sequer permitir a demonstração 
 de vícios de vontade na aceitação da infracção que se extrai do pagamento 
 voluntário da coima. Só por estas razões acompanhei o juízo de 
 inconstitucionalidade.
 
    Vítor Gomes
 
  
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
  
 Acompanho a decisão relativamente à norma retirada do n.º 4 do artigo 175º do 
 Código da Estrada (na versão do Decreto-Lei n.º 44/2005 de 23 de Fevereiro), com 
 o sentido de que, na impugnação da decisão administrativa em que é aplicada 
 sanção acessória de inibição de  conduzir, ao arguido que pagou voluntariamente 
 a coima não é consentido impugnar os factos que lhe foram imputados, 
 constitutivos da infracção geradora da medida acessória de inibição de conduzir. 
 Assim interpretada a norma é, em meu entender, inconstitucional por violação do 
 princípio da liberdade de julgamento ínsito na garantia de tutela jurisdicional 
 efectiva prevista no n.º 1 do artigo 20º da Constituição.
 Entendo, todavia, que a Constituição não proíbe que o legislador possa 
 expressamente retirar do pagamento voluntário da coima uma presunção de renúncia 
 ao direito à impugnação judicial da contra-ordenação e da medida acessória 
 correspondente, assim como entendo que não proíbe que o legislador condicione a 
 apreciação judicial da impugnação das medidas de aplicação da coima e da sanção 
 acessória ao prévio pagamento de uma quantia equivalente ao montante da coima.
 
  
 
  
 Carlos Pamplona de Oliveira
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
  
 
 1. Votei no sentido da não inconstitucionalidade da norma apreciada neste 
 processo por entender que a Constituição da República Portuguesa não proíbe o 
 legislador de fazer corresponder ao pagamento voluntário da coima a existência 
 da infracção.
 Para este juízo é decisivo tratar-se de pagamento voluntário e de pagamento de 
 uma coima. A infracção dá-se por verificada – e só essa consequência está em 
 causa – por efeito de uma manifestação de vontade do arguido, em matéria 
 sancionatória de tipo contra-ordenacional. A conformidade constitucional de 
 soluções processuais consensuais no âmbito das infracções de pequena gravidade 
 foi já sustentada no Acórdão n.º 164 da Comissão Constitucional, a propósito do 
 artigo 61.º, n.º 4, do Código da Estrada, então vigente (publicado em apêndice 
 ao Diário da República, de 31 de Dezembro de 1979):
 
  
 
 «3 – Que significa exactamente a afirmação, naquele preceito contida, de que o 
 pagamento voluntário da multa feito depois de instaurado o processo equivale à 
 condenação? (…).
 a) Significando ela tão-só – é esse, na verdade, o seu conteúdo mínimo possível 
 
 – que o pagamento voluntário da multa feito depois de instaurado o processo 
 equivale à confissão da prática da transgressão e, portanto, à fixação 
 definitiva dos factos relevantes para a condenação, deveríamos concluir que a 
 lei portuguesa se teria a este respeito aproximado do conhecido modelo 
 anglo-americano da sentença agnitória ou da guilty plea, com a consequente 
 necessidade de condenação do arguido por efeito de uma sua manifestação de 
 vontade (cf. Eduardo Correia, «Les Preuves en Droit Pénal Portugais», Revista de 
 Direito e de Estudos Sociais, xiv, 1967, pp. 13 e seguintes; Figueiredo Dias, 
 Direito Processual Penal, i, 1974, p. 208; e, em pormenor, J. Herrmann, Die 
 Reform der deutschen Hauptverhandlung nach dem Vorbild des anglo -amerikanischen 
 Strafverfahrens, 1971, pp. 161 e seguintes). Modelo que, sendo desconhecido em 
 geral dos restantes sistemas processuais (nomeadamente no que se refere à 
 célebre plea barbaining), não deixa, todavia, de ter extensos pontos de contacto 
 com a regulamentação de certas formas de processo continentais, em particular 
 das mais rápidas e menos solenes, como seria o caso do Strafbefehls – e 
 Strafverfügungsverfahren na Alemanha (cf J. Herrrnann, cit., p. 164, e, 
 criticamen4e, P. Hünerfeld, «A Pequena Criminalidade e o Processo Penal», 
 Revista de Direito e Economia, xv, 1978, pp. 43 e seguintes) ou o do processo de 
 transgressão entre nós.
 Fosse este o entendimento a dar ao período questionado do artigo 61.°, n.° 4, do 
 Código da Estrada e não haveria razão bastante para concluir pela sua 
 inconstitucionalidade. Decerto que o processo agnitório é fenómeno estranho ao 
 
 (e contrastante com o) nosso sistema processual, na medida em que frontalmente 
 contraria os princípios da verdade material, da investigação oficial, da 
 indisponibilidade do objecto processual e da livre apreciação da prova, e em que 
 vai ao arrepio do valor não definitivo da confissão, consagrado para o processo 
 penal pelo artigo 174.° do respectivo código [Código de Processo Penal de 1929]. 
 A verdade, porém, é que nenhum dos aludidos princípios tem entre nós assento e 
 dignidade constitucional, pelo que – por mais aberrante e criticável que fosse 
 no plano político-legislativo – não haveria em definitivo razão para negar 
 legitimidade, à luz da Constituição, a uma norma consagradora do sistema da 
 guilty plea em certo ou certos processos, máxime em processos rápidos e simples, 
 como é o caso do processo de transgressão».
 
  
 
 2. Este entendimento em nada colide com os juízos de inconstitucionalidade 
 constantes dos Acórdãos n.ºs 337/86 e 442/94, fundados na “necessidade de 
 intervenção do juiz para aplicação da medida de inibição da faculdade de 
 conduzir”. As normas apreciadas em tais decisões fazem corresponder ao pagamento 
 voluntário da sanção principal (multa) uma consequência que já não é suportável 
 na manifestação de vontade do arguido. Que já não é suportável na imagem do 
 homem-arguido como ser dotado de uma livre determinação e de uma 
 auto-responsabilidade (cf. Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no 
 novo Código de Processo Penal”, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, 
 p. 29). Com efeito, do pagamento voluntário de uma multa por infracção estradal 
 
 “não pode derivar-se a dispensabilidade da audiência de julgamento para a 
 aplicação da medida de inibição da faculdade de conduzir” (Acórdão nº 442/94). E 
 tão pouco colide com o entendimento que se extrai do Acórdão nº 264/99. Nesta 
 decisão, o Tribunal decidiu não conhecer a norma que então se extraía do artigo 
 
 154º, nº 2, do Código da Estrada, na interpretação de que o pagamento voluntário 
 da coima implicava a confissão dos factos imputados ao arguido.
 O acórdão da Comissão Constitucional já referido é, de resto, bem significativo 
 do que acaba de ser dito. Pronuncia-se pela conformidade constitucional do 
 
 último período do primeiro parágrafo do artigo 61.º, n.º 4, do Código da Estrada 
 
 – o pagamento voluntário da multa feito depois de instaurado o processo equivale 
 
 à condenação –, interpretado no sentido de o pagamento voluntário da multa 
 equivaler à confissão da prática da transgressão e, portanto, à fixação 
 definitiva dos factos relevantes para a condenação; mas já considera 
 inconstitucional a mesma disposição legal, interpretada no sentido de permitir a 
 aplicação da inibição da faculdade de conduzir como efeito automático do 
 pagamento e, assim, independentemente de audiência de julgamento e da 
 possibilidade efectiva de constituição de defensor e de presença e audiência do 
 arguido.
 
  
 
    Maria João Antunes