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Processo n.º 1138/13
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que são recorrentes A. e B., Ld.ª e é recorrido o Ministério Público, foram interpostos recursos para este Tribunal da decisão sumária de 18 de dezembro de 2012 e do acórdão de 23 de setembro de 2013 daquele Tribunal. Ambos os recursos foram interpostos ao abrigo das alíneas b), g) e i) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
2. Pela Decisão Sumária n.º 678/2013, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto dos recursos interpostos. Tal decisão tem, para o que agora releva, a seguinte fundamentação:
«2. Os recorrentes interpuseram igualmente recurso do acórdão de 23 de setembro de 2013, ao abrigo das alíneas b), g) e i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, para apreciação dos artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, «quando interpretados no sentido da rejeição do recurso por falta de conclusões, quando a fundamentação da decisão refere que o que se verificou foi a falta de concisão das conclusões, pese embora junta pelos arguidos a versão mais sintetizada das suas Conclusões de Recurso que lhes foi possível, atendendo a que as próprias Motivações já haviam sido narradas de forma sintética face à extensão dos fundamentos impugnatórios (as Conclusões apresentadas são em número de 68 e contêm 7.327 palavras, ao passo que as Motivações recursais são 177 e contêm 10.233 palavras), na certeza de que a lei não dá ao intérprete critérios matemáticos para preencher o conceito de resumo, positivado no n.º 1 do art. 412º do CPP, e considerando ainda que os recorrentes fizeram uma síntese no petitório final do recurso, que delimita com inteligibilidade o objeto do recurso».
Nas alíneas b), g) e i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o conceito de norma jurídica surge como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto do recurso interposto (cf., entre outros, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, aquele enunciado é manifestamente significativo de que os recorrentes pretendem, afinal, a apreciação da decisão judicial que concluiu pela falta de conclusões e que, consequentemente, rejeitou o recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães. Há por isso, que não conhecer do objeto do recurso interposto, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC)».
3. Da decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, com os fundamentos seguintes:
«5) No entanto, veio este Tribunal Constitucional a pronunciar-se no sentido de não tomar conhecimento do objeto dos recursos interpostos, sustentando tal decisão na convicção de que mais não pretendiam os Recorrentes do que a apreciação da própria decisão judicial que concluiu pela falta de conclusões, algo inadmissível dado de que apenas as normas - e não as decisões judiciais - podem constituir objeto de recurso de fiscalização de constitucionalidade.
6) É neste ponto que atingimos o cerne da discordância na génese da presente reclamação. Não merecendo reparo a fundamentação no que tange ao entendimento de que “nas alíneas b), g) e i) do n.º1 do artigo 70.º da LTC, o conceito de norma jurídica surge como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto do recurso interposto”, apraz contudo aos Recorrentes indagar em que moldes será possível suscitar eficazmente a verificação e subsequente declaração de inconstitucionalidade no âmbito de um processo, mais ainda quando se trata de um diferendo de índole interpretativa, sem que, a título meramente incidental (residual até), seja feita menção ao processo que lhe deu origem.
7) O direito ao recurso foi restringido pelo facto de as conclusões de recurso juntas não se subsumirem à interpretação que o Tribunal da Relação de Guimarães faz da definição de “resumo das razões do pedido”, aflorado em termos genéricos no art. 412.º, n.º1, do CPP, mas para o qual inexiste legalmente qualquer critério de referência quanto ao seu efetivo alcance.
8) Assim, viram os Recorrentes amputada a possibilidade de submeter a um tribunal de 2ª Instância a reapreciação da matéria objeto do recurso meramente pelo facto de, alegadamente, terem os Recorrentes formulado conclusões não suficientemente sintéticas face aos fundamentos impugnatórios apresentados.
9) Em suma, depreende-se da decisão recorrida do Tribunal da Relação de Guimarães, numa interpretação que desprovida de correspondência com a letra dos preceitos invocados, que a pretensa falta de concisão das conclusões deverá ser cominada nos mesmos moldes que a sua total omissão.
10) Coloca-se, destarte, a seguinte questão: de que forma prefigura a hipótese formulada, i.e., a da inconstitucionalidade da interpretação do art. 412.º n.º1 e do art.417.º n.º3 do CPP, por violação do direito ao recurso previsto no art. 32.º da CRP, uma via alternativa para que diretamente (e mesmo indiretamente) se logre obter uma apreciação sobre o mérito da concreta decisão da Relação de Guimarães de não admitir o recurso? Nenhuma, pois a questão material que subjaz à patente inconstitucionalidade supra exposta é perfeitamente lateral;
11) Poder-se-ia discutir desde mais a bagatelar criminalidade à mais hedionda das condutas; o quid que aqui se almeja discutir - i.e., a da inconstitucionalidade da interpretação do art. 412.º n.º1 e do art.417.º n.º3 do CPP, por violação do direito ao recurso previsto no art. 32.º da CRP - é perfeitamente autonomizável do processo criminal que culminou com o Acórdão da Relação de Guimarães, pese embora - evidentemente - nele possa vir a ter um efeito reflexo. Como salienta FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, “o TC só pode e deve emitir uma pronúncia sobre uma questão de constitucionalidade quando ela puder repercutir-se utilmente no julgamento da causa e não já quando essa decisão apenas se revista de utilidade para prevenir os decidir, no caso de eles virem a eclodir. Dito de outra forma: o TC só deve conhecer de uma questão de constitucionalidade normativa, se a resolução de tal questão se refletir no julgamento do tema substantivo sujeito à apreciação da decisão recorrida, implicando uma alteração do deliberado quanto a esse tema”
12) O que se pretende sindicar é tão-somente a interpretação das normas processuais penais em si à luz da Constituição, e não propriamente a decisão da Relação de Guimarães que a convocou; aquela, ao arrepio de um qualquer critério interpretativo em direito admissível, impediu direta e injustificadamente o exercício de um dos mais basilares e constitucionalmente consagrados direitos que a qualquer arguido assiste.
13) A vingar a tese da decisão sumária deste TC ora reclamada, então a fiscalização concreta da constitucionalidade suscitada no decurso de um processo judicial conduziria sempre a um non liquet por parte deste Mais Alto Tribunal!
14) Face ao exposto, creem os Recorrentes que a decisão sumária que constitui o objeto da presente reclamação laborou, s.m.o, num erro de raciocínio ao perspetivar o presente recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade com a finalidade de apreciação de uma decisão judicial.
15) Tampouco se invoque que pretendem os Recorrentes uma subversão do sistema ao ponto de o recurso à via de escrutínio constitucional das normas violadas consubstanciar impropriamente um recurso de amparo ou uma queixa constitucional; como se escalpelizou supra, não é nem poderia ser o caso.
16) O que se almeja é, simplesmente, a submissão ao crivo da malha constitucional da uma interpretação do artigo 412.º, n.º1, articulado com o 417.º,n.º3 do CPP que desconsidera a letra e o espírito da lei e que, por inerência, comprima injustificadamente a garantia constitucional do direito ao recurso em processo penal.
17) Saliente-se outrossim que a quaestio decidenda carreada para este Tribunal Constitucional não é inédita, conforme atesta parte da decisão sumária proferida no processo n.º318/99, 1.ª Secção (relator Cons. Vítor Nunes de Almeida), posteriormente confirmada pelo acórdão n.º43/00 da Conferência, de 26 de Janeiro, no seguimento de reclamação promovida pelo Ministério Público, que julgou “inconstitucional a norma constante dos artigos 412º, nº 1, e 420º, nº 1, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação levar à rejeição imediata do recurso sem que previamente seja feito o convite ao recorrente para aperfeiçoar a deficiência, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição.”.
18) Acresce que a Decisão Sumária e o subsequente Acórdão proferido em 23-09-2013 pela Veneranda Relação de Guimarães divergiu diametralmente da interpretação que dos comandos normativos dos art. 412º n.º 1 e art. 417º n.º 3 do CPP foi feita pelo Tribunal Constitucional nos Acórdão n.º 193/97, Acórdão de 26/1/2000 (Proc. n.º 13/97, 2ª Secção) e Acórdão datado de 22/10/2003 (Proc. n.º 232/01, 2ª Secção).
19) Por isso o Recurso interposto para este TC também o foi ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro (“g) Que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional;”).
20) Dos citados arestos se extrai, em primeira linha, que não só assiste materialmente fundamento aos Recorrentes para interpor o presente recurso, como também se reforça a própria convicção de que o que está aqui verdadeiramente em discussão é uma verificação de constitucionalidade de normas e não de sindicabilidade de decisões judiciais da jurisdição comum.
21) Parafraseando novamente FERNANDO AMÂNCIO CORREIA, por referência ao aresto deste Tribunal Constitucional n.º63/2002, de 6 de Fevereiro mais não fazem os Recorrentes do que invocar a desconformidade com a lei fundamental de uma determinada interpretação normativa conferida a certo preceito, invocação essa compaginável com as demais formas de levantamento de questões de constitucionalidade».
4. Notificado da reclamação, o Ministério Público veio dizer o seguinte:
«3º
Essa mesma Decisão Sumária também não conheceu do recurso interposto do acórdão proferido em conferência na Relação de Guimarães, em 23 de Setembro de 2013.
4º
É com o requerimento de interposição do recurso que se fixa o seu objeto.
5º
Ora, vendo a questão de inconstitucionalidade que ali vem enunciada, parece-nos claro que, como se conclui na douta Decisão Sumária, a mesma não tem natureza normativa, antes se questiona a decisão.
6.º
Saliente-se que, o Tribunal Constitucional para apreciar a questão, tal como vem enunciada, teria necessariamente de averiguar, em concreto, o procedimento seguido e, se pelo seu conteúdo, as conclusões apresentadas no seguimento do convite eram ou não substancialmente diferentes das primeiras e se obedeciam aos requisitos que constam do artigo 412.º, n.º 1, do CPP.
7.º
Ora, como no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade o Tribunal Constitucional exerce um controlo exclusivamente normativo, aquelas averiguações não cabem na competência deste Tribunal.
8.º
Nos presentes autos, como as conclusões da motivação do recurso para a Relação não obedeciam aos requisitos, foram os recorrentes notificados nos termos do artigo 417.º, n.º 3, do CPP, ou seja, para “apresentarem as conclusões formuladas, sob pena de rejeição do recurso” (fls. 394).
9.º
Respondendo ao convite, apresentaram novas conclusões.
10.º
Porém, a Relação, quer na decisão sumária previamente proferida, quer no acórdão que indeferiu a reclamação dessa decisão sumária – ora recorrido – entendeu que as “novas” conclusões eram praticamente iguais às anteriormente apresentadas, dizendo-se, seguidamente:
“O problema – repete-se – das pelos Recorrentes denominadas “Conclusões” não é a “falta de concisão” ou a “prolixidade” (como pretendem) mas o seu teor praticamente idêntico à Motivação, constituindo mera repetição desta.”
11.º
Como se vê, no caos dos autos, foi dada oportunidade aos recorrentes de aperfeiçoarem as conclusões.
12.º
Esta circunstância afasta a aplicação ao caso da jurisprudência do Tribunal Constitucional, designadamente o decidido pelo Acórdão n.º 193/97, indicado pelos recorrentes.
13.º
Quanto ao Acórdão n.º 488/2003, “o datado de 22 de Outubro de 2003, Proc.º n.º 232/01, 2.ª Secção”, como o recorrente o identifica, o mesmo não julgou inconstitucional as normas dos n.ºs 1, 2, 3 e 4 do artigo 690.º do Código de Processo Civil, ou seja, foi proferido um juízo de não inconstitucionalidade sobre normas estranhas a este processo.
14.º
Por tudo o exposto, deve indeferir-se a reclamação».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Foi proferida decisão de não conhecimento, por se ter entendido que os recorrentes não requereram a apreciação de uma norma, quando só normas podem constituir o objeto de recurso que seja interposto ao abrigo das alíneas b), g) e i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Os reclamantes em nada contrariam o entendimento de que não requereram a apreciação de uma norma quando indicaram os artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, «quando interpretados no sentido da rejeição do recurso por falta de conclusões, quando a fundamentação da decisão refere que o que se verificou foi a falta de concisão das conclusões, pese embora junta pelos arguidos a versão mais sintetizada das suas Conclusões de Recurso que lhes foi possível, atendendo a que as próprias Motivações já haviam sido narradas de forma sintética face à extensão dos fundamentos impugnatórios (as Conclusões apresentadas são em número de 68 e contêm 7.327 palavras, ao passo que as Motivações recursais são 177 e contêm 10.233 palavras), na certeza de que a lei não dá ao intérprete critérios matemáticos para preencher o conceito de resumo, positivado no n.º 1 do art. 412º do CPP, e considerando ainda que os recorrentes fizeram uma síntese no petitório final do recurso, que delimita com inteligibilidade o objeto do recurso». De resto, não identificam sequer na presente reclamação a norma cuja apreciação pretendiam, uma vez que alegam somente que o que se almeja é, simplesmente, a submissão ao crivo da malha constitucional de uma interpretação do artigo 412.º, n.º 1, articulado com o 417.º, n.º 3, do CPP que desconsidera a letra e o espírito da lei e que, por inerência, comprime injustificadamente a garantia constitucional do direito ao recurso em processo penal.
Por outro lado, é evidente o quanto aquele enunciado se distancia das normas apreciadas nos Acórdãos n.ºs 43/2000 e 193/97 – o que acarretaria sempre o não conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC –, confundindo-se irremediavelmente com as particularidades do caso.
É de confirmar, por conseguinte, a decisão reclamada.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 9 de janeiro de 2014. – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral.