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Processo n.º 1002/2013
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 605/2013:
«I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (de ora em diante, LTC), foi interposto recurso, em 29 de abril de 2013 (fls. 359 e 360) – que apenas subiu ao Tribunal Constitucional em 27 de setembro de 2013 (fls. 229 e 230), de acórdão proferido pela 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 13 de março de 2013 (fls. 117 a 127), para que seja apreciada a constitucionalidade da “não aplicação, pelo douto Tribunal da Relação de Lisboa, do artigo 107.º, n.º 5 do C.P.P. ex vi a do artigo 41.º do DL n.º 433/82, de 27 de outubro e, consequentemente, o artigo 145.º do C.P.C. ao prazo para interpor recurso de impugnação da contraordenação” (fls. 156).
2. Após interposição do recurso, o recorrente veio, por duas vezes, deduzir novos requerimentos dirigidos a este Tribunal:
i) Em 08 de outubro de 2013, entregue perante a Secretaria do Tribunal da Relação de Lisboa (fls. 233), que, por sua vez, foi recebido pela Secretaria do Tribunal Constitucional em 10 de outubro de 2013 (fls. 232), através do qual requer que seja fixado efeito suspensivo ao recurso;
ii) Em 14 de outubro de 2013, entregue perante a Secretaria do Tribunal Constitucional (fls. 236 a 243), através do qual invoca a prescrição do procedimento contraordenacional.
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. Atenta a apresentação de requerimentos que encerram questões acessórias à decisão sobre o recurso de constitucionalidade interposto, importa começar por apreciá-los. Quanto ao requerimento de fixação de efeito suspensivo, apenas se justifica frisar que o requerimento é legalmente inadmissível, visto que o n.º 3 do artigo 76º da LTC determina que a impugnação de decisão, proferida por tribunal recorrido, sobre o efeito do recurso interposto só pode ter lugar em sede de alegações. Por conseguinte, não é este o momento próprio para a sua apreciação.
Quanto à invocação de uma alegada prescrição do procedimento contraordenacional, importa notar que não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar essa causa de extinção da instância principal da qual resultam os presentes autos de recurso de constitucionalidade, na medida que este Tribunal apenas dispõe de poderes para controlar a constitucionalidade das normas jurídicas aplicadas pelas decisões recorridas (cfr. artigo 277º, n.º 1, da CRP). Por conseguinte, logo que definitivamente decidido o presente recurso – seguido da baixa dos autos, caberá então ao tribunal recorrido dela conhecer.
4. Passemos, então, a apreciar o recurso de constitucionalidade, propriamente dito.
Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo”, proferido a 25 de setembro de 2013 (fls. 227), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que sempre seria forçoso apreciar o preenchimento de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, n.º 2, da LTC. Sempre que o Relator constate que algum ou alguns não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
5. Tendo sido interposto um recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, é necessário que o recorrente tenha fixado, como objeto do mesmo, uma norma ou interpretação normativa que tenha sido alvo de aplicação efetiva (cfr. artigo 79º-C da LTC), por parte da decisão recorrida. Aliás, o recurso relativo à referida alínea b) pressupõe que tenha havido uma decisão de aplicação de norma reputada de inconstitucional por um dos interessados.
Ora, pela análise cuidada do requerimento de interposição de recurso, verifica-se que o recorrente antes pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a alegada não aplicação subsidiária de determinadas normas processuais penais que ele entende que deveriam ter sido aplicadas. Assim se comprova pelas seguintes transcrições:
«(…) o presente recurso (…) nomeadamente versará sobre a não aplicação, pelo douto Tribunal da Relação de Lisboa, do artigo 107.º n.º 5 do C.P.P. ex vi artigo 145.º do C.P.C. ao prazo para interpor recurso de impugnação da contraordenação.» (fls. 153)
«2. O douto Acórdão recorrido não aplicou as referidas normas (…).
3. A não aplicação do artigo 107.º n.º 5 do C.P.P. e, consequentemente, o artigo 145º do C.P.C. ao prazo para interpor recurso de impugnação da contraordenação, viola o princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13.º da C.R.P., bem como o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, prevista nos artigos 20.º e 268.º n.º 4 C.R.P.» (fls. 154)
- «não aplicação, pelo douto Tribunal da Relação de Lisboa, do artigo 107.º, n.º 5 do C.P.P. ex vi do artigo 41.º do DL n.º 433/82, de 27 de outubro e, consequentemente, o artigo 145.º do C.P.C. ao prazo para interpor recurso de impugnação da contraordenação” (fls. 156).
Sucede que o Tribunal Constitucional, no exercício dos seus poderes de conhecimento de recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, não pode conhecer da constitucionalidade de normas jurídicas ou de interpretações normativas que não tenham sido efetivamente aplicadas pelos tribunais recorridos, conforme lhe é imposto pelo artigo 79º-C da LTC. O recorrente deveria ter concebido o objeto do recurso de modo a nele incluir a norma efetivamente aplicada pela decisão recorrida e não aquela que o mesmo entende que deveria tê-lo sido, não o tendo sido, a final.
Posto isto, mais não resta do que concluir pela impossibilidade de conhecimento do objeto do presente recurso.
III – Decisão
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, decide-se não conhecer do objeto do recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.»
2. Inconformado com a decisão proferida, o recorrente veio deduzir a seguinte reclamação:
«1. O requerimento de interposição de recurso para esse Venerando Tribunal Constitucional, apresentado na data de 29 de abril de 2013, com subida na data de 27 de setembro de 2013, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 75.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, visava a sindicância sobre a posição sustentada no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que aplicou uma norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelo ora Recorrente ao longo do processo (cfr. art. 70.º, n.º 1 alínea b)), nomeadamente versou sobre a não aplicação, pelo douto Tribunal da Relação de Lisboa, do artigo 107.° n.º 5 do C.P.P. ex vi do artigo 41.º do DL n.º 433/82, de 27 de outubro e, consequentemente, o artigo 145.° do C.P.C. ao prazo para interpor recurso de impugnação da contraordenação.
2. Conforme então se referiu, o douto Acórdão recorrido não aplicou as referidas normas por entender que -não tendo natureza judicial o prazo de impugnação judicial da decisão que aplicou uma coima, mencionado no n. ° 3 do artigo 59.º, do DL n.º 433/82, de 27 de outubro, não pode aplicar-se ao processo contraordenacional, no domínio da contagem desse prazo, o disposto no artigo 107.º, n.º 5, do CPP, e por sua vez, os artigos 144.º e 145.º, n.º 5 do CPC.'.
3. Ora, a não aplicação do artigo 107.° n.º 5 do C.P.P. e, consequentemente, o artigo 145.º do C.P.C. ao prazo para interpor recurso de impugnação da contraordenação, viola o princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13.° da C.R.P, bem como o principio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, prevista nos artigos 20.° e 268.° n.º 4 C.R.P ..
4. Conforme se referiu, se o direito processual subsidiário do regime contraordenacional é o Direito Processual Penal e este, por sua vez, remete na generalidade da matéria da contagem dos prazos para o Direito Processual Civil, carece o ora Recorrente de compreender como pode a ora decisão em crise considerar a inaplicabilidade do artigo 107.° n.º 5 do C.P.P ..
5. Pelo que a aplicação do artigo 145.° n.º 5 do C.P.C. e do 107.° n.º 5 do C.P.P. ao prazo previsto no 181.°, n.º 2 al. a) do Código da Estrada ao invés de pôr em causa a unidade e harmonia do ordenamento jurídico, antes o reforça, deixando de haver exceções ao regime geral.
6. E assim, considerando-se que o prazo para a impugnação judicial da decisão administrativa é de cariz administrativo, então, há que se ter em conta que o Processo Administrativo manda aplicar subsidiariamente as regras do Processo Civil.
7. E se assim é, na omissão da C.P.T.A. quanto à liquidação da multa para a prática do ato aplicar-se-ão as regras constantes no Código Processo Civil, pelo que, a apresentação da impugnação com o pagamento da multa nos termos do 145° C.P.C. sempre seria de admitir.
8. Mais, considerou o Recorrente, salvo melhor opinião, que o recurso da decisão administrativa sendo sindicável por uma entidade judicial não pode deixar de ser um ato judicial, pois no fundo trata-se de um ato intrinsecamente judicial.
9. Da mesma forma, se pronunciou o Douto Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão datado de 11/03/1998 que 'apresentada impugnação judicial de decisão administrativa no 3.º dia útil após o termo do prazo para o efeito, a secretaria, independentemente de despacho, deve proceder à notificação do interessado para pagamento da multa prevista no n.º 6 do artigo 145.º do C.P. C., aplicável por força do disposto nos artigos 41° n.º 1 do D.L. n. 433/82 de 27/10 e artigo 107.º n.º 5 do C.P.P.'.
10. Vedar a possibilidade de impugnação judicial da decisão administrativa é negar as garantias de defesa consagradas constitucionalmente, nomeadamente o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva que se consagra no artigo 20.° da Constituição da República Portuguesa.
11. Efetivamente, e embora o direito ao recurso conste expressamente do texto constitucional, o recurso continua a ser uma tradução das garantias de defesa consagradas no n.º 1 do artigo 32° da CRP, que claramente a decisão em crise violou.
12. Face ao arrazoado contido no requerimento de interposição do recurso e agora aqui reproduzido, claramente se infere a contrario que a sindicância pretendida visava a declaração da inconstitucionalidade do normativo contido no n. ° 3 do artigo 59.°, do DL n.º 433/82, de 27 de outubro, na interpretação de que ao prazo nele cominado, mormente na sua contagem, não é aplicável o disposto no artigo 107.°, n.º 5, do CPP, e por sua vez, os artigos 144.° e 145.°, n.º 5 do CPG..» (fls. 253 a 256)
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio responder nos seguintes termos, que ora se resumem:
«1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 605/2013, não se conheceu do objeto do recurso interposto por A. para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.
2º
É com o requerimento de interposição do recurso que se fixa o seu objeto.
3º
Ora, nesse requerimento, como se pode ver pela parte transcrita na douta Decisão Sumária - que é, aliás, aquela em que de forma mais pertinente se tenta definir o objeto do recurso – o recorrente entende que a inconstitucionalidade reside em não aplicar, ao caso, subsidiariamente, os “artigos 107, n.º 5, do CPP, ex vi artigo 145.º do CPC”.
4º
Não se identifica qual a norma ou interpretação que se reputa de inconstitucional.
5º
Essa omissão implicaria que, caso o Tribunal Constitucional apreciasse a questão da constitucionalidade, o juízo que formulasse não incidiria sobre qualquer norma, o que é inadmissível, uma vez que a competência do Tribunal Constitucional no controlo da constitucionalidade tem, exclusivamente, natureza normativa.
6.º
Poderíamos ainda acrescentar que na motivação do recurso interposto para a Relação – o momento próprio para suscitar a questão –, esta foi colocada sensivelmente nos mesmos termos daqueles que constam do requerimento de interposição do recurso.
7.º
Na reclamação da Decisão Sumária o recorrente vem identificar a questão da seguinte forma:
“Termos em que deve o presente recurso ser admitido, submetendo-se à douta apreciação do Tribunal Constitucional, a questão sub judice – declaração da inconstitucionalidade do normativo contido no n.º 3 do artigo 59.º, do DL n.º 433/82, de 27 de outubro, na interpretação de que ao prazo nele cominado, mormente na sua contagem, não é aplicável o disposto no artigo 107.º, n.º 5, do CPP, e por sua vez, os artigos 144.º e 145.º, n.º 5 do CPC, seguindo-se os seus ulteriores termos até final”.
8.º
Ora, mesmo que a questão estivesse agora devidamente formulada, este já não seria o momento processual próprio para o fazer.
9.º
Por outro lado, constata-se que a norma do artigo 59.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 433/82 – que fixa um prazo de 20 dias para interposição do recurso – nem sequer foi aplicada.
10.º
Efetivamente quanto ao prazo para impugnação da decisão administrativa, foi expressamente aplicado o artigo 181.º, n.º 3, alínea a), do Código da Estrada, que estabelece o prazo de 15 dias uteis.
11.º
A norma do Decreto-Lei n.º 433/82 convocável para o caso, seria, eventualmente, a do artigo 41.º, n.º 1, que determina a aplicação subsidiária dos “preceitos reguladores do processo criminal”.
12.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.» (fls. 258 a 260)
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Ao longo da reclamação deduzida, o reclamante insiste na mesma e exata linha argumentativa que já constava do requerimento de interposição de recurso, inclusive insistindo que pretendia ver apreciada, pelo Tribunal Constitucional, a falta de aplicação, pela decisão recorrida, de várias normas jurídicas que aquele entende deveriam ter sido aplicadas. Conforme já foi esclarecido pela decisão reclamada, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC não constitui o meio processual adequado para fazer face a decisões de não aplicação de normas jurídicas, com fundamento na sua não aplicabilidade ao caso concreto. Assim é porque, ao abrigo daquela norma, este Tribunal só pode sindicar a constitucionalidade de normas jurídicas que tenham sido efetivamente aplicadas pelos tribunais recorridos (cfr. artigos 277º, n.º 1, da CRP, e 79º-C da LTC), não podendo controlar o próprio “ato jurisdicional” que decidiu não aplicar determinados preceitos legais, sem que essa decisão de desaplicação se tivesse fundado na sua inconstitucionalidade.
Em boa verdade, só agora, em sede de reclamação (cfr. § 12, a fls. 256), veio o reclamante identificar uma concreta interpretação normativa que poderia ter constituído o objeto do recurso que deu causa aos presentes autos. Sucede, porém, que a sede própria para a fixação do objeto do recurso é o requerimento da sua interposição, não podendo o recorrente vir, em sede de reclamação, alterar o objeto do mesmo.
Mantém-se, portanto, integralmente a decisão reclamada.
III - DECISÃO
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 9 de janeiro de 2014. – Ana Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.