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Processo n.º 180/14
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A Santa Casa da Misericórdia de Fafe interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo Norte do despacho saneador e da sentença do juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, em ação de impugnação de ato administrativo de contencioso pré-contratual, intentada pela A., Lda., relativa ao concurso público para a execução de uma empreitada designada por “Construção de um Lar de Idosos — 40 Camas — Lar …”.
Por Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 19 de abril de 2013, foi decidido não tomar conhecimento do recurso, entendendo-se aí que, tendo sido a decisão recorrida proferida por juiz singular, enquanto relator, dela caberia reclamação para a conferência e não recurso.
A Santa Casa da Misericórdia de Fafe arguiu a nulidade deste acórdão, a qual foi julgada improcedente por novo acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 28 de junho de 2013.
A Santa Casa da Misericórdia de Fafe veio interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, o qual negou provimento à revista, por acórdão proferido em 18 de dezembro de 2013.
A Autora recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, nos seguintes termos:
“1.º O recurso é interposto ao abrigo do disposto no art. 280.º, n.º 1, al. b) da CRP e da al. b) do n.º 1 do art. 70.º da LTC.
2.º A recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da norma constante do art. 27.º, nº 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), interpretada no sentido de que da decisão do juiz, proferida em ação administrativa especial de valor superior à alçada, em que, nos termos do disposto no art. 40.º, n.º 3 do ETAF, o tribunal deve funcionar em formação de três juízes, cabe reclamação para a conferência, e não recurso, ainda que não tenham sido invocadas as circunstâncias previstas no art. 27.º, n.º 1, al. i) do CPTA.
3.º A norma do art. 27.º, n.º 2 do CPTA, interpretada no sentido referido, viola o princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, consagrado no art. 20.º, n.º 1, e acolhido no art. 2.º, ambos da CRP, pois limita o direito ao recurso, e o princípio constitucional da fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente, consagrado no art. 205.º, n.º 1 da CRP, decorrente do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no art. 2.º da CRP.
4.º A recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade da referida norma no recurso de apelação para o Supremo Tribunal Administrativo, que deu entrada no Tribunal Central Administrativo Norte, em 7 de Mai. 2013, e que deu origem à prolação do acórdão que contém a decisão ora recorrida, desconsiderando a arguição da referida inconstitucionalidade.
5º Acresce que da decisão recorrida não cabe recurso ordinário.”
Foi proferida decisão sumária que julgou improcedente o recurso com a seguinte fundamentação:
“A Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional fiscalize a constitucionalidade da norma constante do art. 27.º, nº 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), interpretada no sentido de que da decisão do juiz, proferida em ação administrativa especial de valor superior à alçada, em que, nos termos do disposto no art. 40.º, n.º 3 do ETAF, o tribunal deve funcionar em formação de três juízes, cabe reclamação para a conferência, e não recurso, ainda que não tenham sido invocadas as circunstâncias previstas no art. 27.º, n.º 1, al. i) do CPTA.
O Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 846/13, desta 2.ª Secção, já decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, interpretado com o sentido de que das sentenças proferidas no âmbito de ações administrativas especiais de valor superior à alçada, julgadas pelo Tribunal singular ao abrigo da referida alínea i), do n.º 1, do artigo 27.º, não cabe recurso ordinário para o Tribunal Central Administrativo, mas apenas reclamação para a conferência.
A fundamentação desse acórdão é integralmente transponível para o presente recurso em que a norma a fiscalizar apenas acrescenta que na sentença que se pretende impugnar não foram invocadas as circunstâncias previstas no artigo 27.º, n.º 1, al. i), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Este elemento é irrelevante para o juízo de constitucionalidade, pelo que deve ser proferida decisão sumária, nos termos do artigo 78.º-A, da LTC, julgando improcedente o recurso remetendo-se para a fundamentação do Acórdão n.º 846/13.”
A Recorrente reclamou desta decisão, expondo os seguintes argumentos:
1.º A douta decisão sumária de que se reclama transpôs a fundamentação do Acórdão n.º 846/l3, da 2.ª Secção do Tribunal Constitucional para o recurso dos presentes autos.
2.º O objeto do recurso julgado no Acórdão n.º 846/13 foi” a interpretação do artigo 27.º, n.º l, alínea i), e n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, no sentido de que das sentenças proferidas no âmbito de ações administrativas especiais de valor superior à alçada, julgadas pelo Tribunal singular ao abrigo da referida alínea i), do n.º l, do artigo 27.º, não cabe recurso ordinário para o Tribunal Central Administrativo, mas apenas reclamação para a conferência” (sublinhado da Reclamante).
3.º O objeto do recurso dos presentes autos é a “norma constante do art. 27.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), interpretada no sentido de que da decisão do juiz, proferida em ação administrativa especial de valor superior à alçada, em que, nos termos do disposto no art. 40.º, n.º 3 do ETAF, o tribunal deve funcionar em formação de três juízes, cabe reclamação para a conferência e não recurso, ainda que não tenham sido invocadas as circunstâncias previstas no art. 27.º. n.º l, al. i) do CPTA” (sublinhado da Reclamante).
4.º Na douta decisão sumária de que se reclama, a sublinhada diferença entre os objetos dos recursos foi considerada irrelevante para o juízo de constitucionalidade.
5.º Com todo o respeito, esse elemento não é irrelevante, mas sim um elemento fulcral do recurso.
6.º É precisamente o facto de não ter sido feita qualquer referência à “simplicidade” da questão a decidir, nos termos do art. 27.º, n.º l, al. i) do CPTA, que cria a “surpresa”, por falta de culpa, que põe em causa o princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no art. 20.º da CRP, na medida em que a parte vencida não sabe, nem tem maneira de saber, se foi proferida decisão ao abrigo da referida norma do art. 27.º, n.º l, al. i) do CPTA e, consequentemente, de saber que deve reclamar, nos termos do art. 27.º, n.º 2 do CPTA, e não recorrer, ficando, assim, prejudicado o seu direito ao recurso, tanto mais que a diferença de prazo para a reclamação e para o recurso – de 5 para 15 dias, atendendo ao disposto nos arts. 102.º, n.º 3, al. c) e l47.º, n.º l, ambos do CPTA – impossibilita a convolação do recurso em reclamação.
7.º Decisão/sentença, sem qualquer ato a considerar a simplicidade da questão toma-se, assim, uma verdadeira ratoeira, pois perante uma decisão como a que foi proferida na 1ª instância, qualquer cidadão que com a mesma não se conformasse, por mais sagaz, prudente, avisado e cuidadoso que fosse, não poderia imaginar que dessa decisão só coubesse reclamação, e não recurso. Tanto mais que, durante cerca de uma década, após a entrada em vigor do novo contencioso administrativo (2004), sempre foi prática reiterada a admissão do recurso da decisão de mérito, ainda que proferida por juiz singular.
8.º A decisão sobre a simplicidade da questão, nos termos previstos no art. 27.º, n.º 1, al. i) do CPTA, não é uma decisão de mero expediente. Como tal, não pode ser proferida de forma implícita, ou sem fundamentação, sob pena de violação do princípio da fundamentação das decisões judiciais, consagrado no art. 205.º, n.º l da CRP.
9.º Assim, e também por esse motivo, a diferença entre o objeto do recurso julgado Acórdão n.º 836/13 e o presente recurso é relevante e fundamental, pois a inexistência de qualquer despacho, ou referência na sentença, que considere a “simplicidade” da questão, põe em causa o referido princípio constitucional da fundamentação das decisões judiciais, parâmetro de constitucionalidade que não se aplica ao objeto do recurso julgado pelo Acórdão n.º 846/l3.
10.º O facto de a decisão proferida pelo juiz singular, sem que previamente, ou na própria sentença, se invoquem as circunstâncias previstas no art. 27.º, n.º l, al. i) do CPTA, não é irrelevante, pois tal invocação será o fundamento para o juiz singular ter competência para proferir a decisão, sob pena de nulidade.
11.º Assim, o juízo de constitucionalidade da norma do art. 27.º, n.º 2 do CPTA, interpretada no sentido de que na sua previsão se incluem as decisões do juiz singular, proferidas em ação administrativa especial de valor superior à alçada, em que, nos termos do disposto no art 40.º, n.º 3 do ETAF, o tribunal deve funcionar em formação de três juízes, proferidas ao abrigo do disposto no art. 27.º, n.º l, al. i) do CPTA é substancial e fundamentalmente diferente do juízo de constitucionalidade da mesma norma, interpretada no sentido de que na sua previsão se incluem as decisões do juiz singular, proferidas em ação administrativa especial de valor superior à alçada, em que, nos termos do disposto no art. 40.º, n.º 3 do ETAF, o tribunal deve funcionar em formação de três juízes, em que NÃO tenham sido invocadas as circunstâncias previstas no art. 27.º, n.º l, al. i) do CPTA.”
Não foi apresentada resposta.
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Fundamentação
A reclamante discorda que a diferença existente entre a norma cuja fiscalização de constitucionalidade pretende ver apreciada e aquela que foi objeto de julgamento no Acórdão n.º 846/13, seja irrelevante para efeitos de transposição da fundamentação daquele aresto para a presente questão de constitucionalidade.
Contudo, o facto da norma sub iudicio acrescentar o dado que a sentença que se pretende impugnar não invoca a verificação das circunstâncias previstas no artigo 27.º, n.º 1, al. i), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, é realmente inócuo para a apreciação da constitucionalidade daquela norma, uma vez que a circunstância da parte vencida não pode interpor recurso da decisão singular do relator, mas poder dela reclamar para a conferência, o que lhe assegura uma segunda apreciação da questão por uma formação do mesmo tribunal com uma composição alargada, não lhe elimina o direito de posteriormente interpor recurso para um tribunal superior desta segunda apreciação.
Conforme também se referiu no Acórdão n.º 846/13, quanto à alegação de que a interpretação normativa sindicada viola os princípios da segurança jurídica e da confiança, inerentes a um Estado de direito democrático, depreende-se da posição assumida pela Recorrente que esta discorda que o n.º 2, do artigo 27.º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, possa ser interpretado no sentido da reclamação aí prevista abranger as decisões sumárias referidas na alínea i), do n.º 1, do mesmo preceito, introduzindo essa interpretação um fator de surpresa que resulta na perda do direito de impugnar a decisão sumária proferida, pois, a rejeição do recurso dela interposto já não permite a sua reclamação atempada.
Mas esta dimensão que contempla a perda definitiva do direito ao recurso e para a qual contribui, na opinião da Recorrente, a sentença que se pretende impugnar, não invocar a verificação das circunstâncias previstas no artigo 27.º, n.º 1, al. i), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, não foi questionada no recurso interposto para o Tribunal Constitucional, não podendo a mesma ser conhecida.
Por estas razões revela-se correta a decisão sumária proferida, devendo ser indeferida a reclamação apresentada.
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Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada pela Santa Casa da Misericórdia de Fafe.
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Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 7 de maio de 2014. – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.