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Processo n.º 1203/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos de processo de contraordenação vindos do Tribunal do Trabalho de Faro, em que é recorrente o Ministério Público, foi a ora recorrida, A., S.A., absolvida da prática de contraordenação p. e p. pelo artigo 521.º, n.º 3, do Código do Trabalho, em conjugação com a cláusula 40.ª, n.os 1 e 2, da decisão arbitral em processo de arbitragem obrigatória relativa à Associação Portuguesa das Indústrias Gráficas, de Comunicação Visual e Transformadoras do Papel e ao Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Celulose, Papel, Gráfica e Imprensa, publicada no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 40, de 29 de outubro de 2009, objeto de extensão no território do continente pela Portaria n.º 213/2010, de 15 de abril. Para tanto, a Mma. Juíza a quo recusou aplicar o disposto no artigo 2.º, n.º 2, da citada Portaria, por considerar que a respetiva norma viola o «estatuído nos arts. 13.º e 61.º da Constituição da República Portuguesa».
A sentença recorrida fundamentou o juízo de inconstitucionalidade nos seguintes termos:
« [Atento o disposto no artigo 2.º do Código do Trabalho, n]ão há dúvidas, […] que quer a decisão arbitral quer a Portaria de extensão aqui em causa são instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho sendo esta última não negocial.
No caso vertente, considerando que a arguida não era associada de nenhuma das organizações que intervieram no processo negocial que conduziu à decisão arbitral, apenas por força da Portaria de Extensão 213/2010 a mesma lhe passou a ser aplicada.
Põe a arguida em causa a possibilidade da Portaria de Extensão poder ter eficácia retroativa por tal, em seu entendimento, violar a Constituição da República Portuguesa.
Como é sabido no que tange à aplicação das leis no tempo vigora o princípio da não retroatividade das leis prevendo-se no art. 12º nº 1 do Código Civil que 'a lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular'.
Não decorre de tal princípio a impossibilidade da criação de leis retroativas, presumindo-se, neste caso, que ela pretende abranger exclusivamente, além dos factos e efeitos futuros, os efeitos pendentes, não se estendendo aos factos e efeitos passados, a não ser que o legislador manifeste de forma inequívoca essa sua vontade, afastando a aludida presunção.
No caso vertente o art. 2º nº 2 da Portaria 213/2010, 15/04 previu a sua aplicação retroativa, no que tange à tabela salarial, valores do subsídio de alimentação e do subsídio de turno, a partir de 1 de Dezembro de 2009.
Posto que o que está em causa é uma cláusula de natureza pecuniária, em princípio, parece decorrer daquela estatuição que nada impede a eficácia retroativa da mesma.
Mas será mesmo assim?
O art. 6º nº 1 al. f) do DL 519-C/79, 29/12 (revogado pela Lei 99/2003, 27/08 que aprovou o Código do Trabalho), diploma que regulamentava as relações coletivas de trabalhadores que se estabelecessem entre trabalhadores e entidades patronais através das respetivas associações ou entre associações sindicais e entidades patronais, previa que “os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho não podiam conferir eficácia retroativa a qualquer das suas cláusulas, salvo o disposto no art. 13º.'
Por seu turno, o referido art. 13º dispunha que as convenções coletivas podiam atribuir eficácia retroativa às tabelas salariais até à data em que se tenha esgotado o prazo de resposta à proposta de negociação ou, no caso de revisão de uma convenção anterior, até ao termo do prazo de doze meses após a data da sua entrega para depósito.
Permitia-se assim, à luz daquele diploma, que as partes contratantes de um instrumento de regulamentação coletiva, expressamente e após processo de negociação, decidissem conferir eficácia retroativa a cláusula de natureza pecuniária.
O Código de Trabalho aprovado pela Lei 99/2003, 27/08 revogando o diploma supra referido, estatuía no seu art. 533º que:
'1 - Os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho não podem:
a) Contrariar as normas legais imperativas;
b) Estabelecer regulamentação das atividades económicas, nomeadamente no tocante aos períodos de funcionamento das empresas, ao regime fiscal e à formação dos preços;
c) Conferir eficácia retroativa a qualquer das suas cláusulas, salvo tratando-se de cláusulas de natureza pecuniária de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho negocial.'(sublinhado nosso).
A republicação do dito diploma por força da aprovação da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro (mantida pela Lei 3/2012, 10/01) veio dar nova redação à norma supra referida prevendo-se agora no art. 478º que:
' 1 - O instrumento de regulamentação coletiva de trabalho não pode:
a) Contrariar norma legal imperativa;
b) Regulamentar atividades económicas, nomeadamente períodos de funcionamento, regime fiscal, formação dos preços e exercício da atividade de empresas de trabalho temporário, incluindo o contrato de utilização;
c) Conferir eficácia retroativa a qualquer cláusula que não seja de natureza pecuniária.'
Ora se a omissão de referência a instrumento de regulamentação coletiva de trabalho negocial, vista de forma literal, pode induzir a ideia de que qualquer instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, seja ele negocial ou não, pode agora conferir eficácia retroativa a cláusula de natureza pecuniária, a consideração do espírito da revisão laboral em causa e dos princípios constitucionais da iniciativa económica e da igualdade não permite tal interpretação quando estiverem em causa instrumentos não negociais.
Efetivamente conforme decorre da exposição de motivos do dito diploma refletem-se no mesmo 'as preocupações com a necessidade de assumir um compromisso social capaz de compatibilizar as exigências de competitividade das empresas com a valorização do diálogo social e de promover a reforma necessária à combinação entre a inevitável intervenção no domínio da legislação do trabalho e as alterações necessárias nos sistemas de proteção social e de emprego. (...) a revisão laboral enquadra-se numa estratégia de reforma mais ampla, que prevê a criação de outros instrumentos indispensáveis ao efetivo crescimento económico, à melhoria da competitividade empresarial, ao aumento da produtividade, à melhoria da empregabilidade dos cidadãos e da qualidade de emprego, uma estratégia norteada, também no sentido do combate às desigualdades e da promoção da partilha mais equitativa dos resultados do progresso económico.'
Ora compreende-se que instrumento negociado pelos contratantes - representantes de entidades patronais e trabalhadores - esteja autorizado a conferir eficácia retroativa a cláusulas de natureza pecuniária uma vez que se trata de acordos concluídos após processo de negociação dos envolvidos durante o qual os mesmos, após a devida ponderação, voluntariamente, cedem nos interesses que lhes respeitam encontrando, desse modo dialogante, um equilíbrio de valores e interesses que todos beneficia.
Mas tal processo de negociação e cedência voluntária não existe nos instrumentos de regulamentação coletiva não negociados como é o caso das Portarias de extensão que não resultam de um ato voluntário mas de uma imposição visando a extensão de determinado acordo coletivo a terceiros que nele não intervieram e que, por via dela, passam a estar vinculados aos comandos que dele resultam.
Se nenhum problema se vislumbra no que tange aos efeitos futuros de tais determinações (pois que se equiparam aos de uma lei) já o mesmo se não pode afirmar no que respeita aos efeitos da eventual retroatividade que a mesma Portaria possa impor quanto a questões pecuniárias.
É que se se deve procurar respeitar, quanto aos trabalhadores o princípio do tratamento mais favorável (na globalidade) procurando-se evitar uma afetação de direitos adquiridos, a justeza no tratamento das partes imposta pelo princípio da igualdade (que não proíbe em absoluto toda e qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as distinções materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional), não permite descurar o interesse organizatório das entidades patronais tendo em vista a efetiva concretização da iniciativa económica privada e, a final, o próprio direito ao trabalho.
Ora, é sabido, que as empresas são entidades organizadas que dependem de uma gestão económico-financeira criteriosa e ponderada e, no âmbito desta, a previsibilidade dos custos assume papel decisivo. Por tal facto, a imposição de compromissos salariais, fazendo-os retroagir meses (no caso vertente mais de cinco meses) põe em causa a dita organização e, consequentemente, a iniciativa económica tomando as empresas menos competitivas (nalguns casos pondo em causa a própria sobrevivência) além de reduzir as possibilidades de aumento da empregabilidade.
Temos, pois, para nós que a interpretação do disposto no art. 478º al. c) do C.P.T. no sentido de que aí se incluem os instrumentos de regulamentação coletiva não negociados não é permitida pelo espírito legislativo que lhe presidiu, constituindo violação dos princípios constitucionais da iniciativa privada e igualdade previstos nos art. 61º e 13º da Constituição da República Portuguesa, entendimento que se aplica na integra ao art. 2º nº 2 da portaria 213/2010, 15/04 o que motivará a recusa da sua aplicação.»
2. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade para este Tribunal ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (adiante referida como “LTC”), que foi admitido no tribunal a quo.
Subidos os autos, foram as partes notificadas para alegações.
3. Apenas o recorrente alegou, tendo concluído nos seguintes termos:
« VII – Conclusões
51. O Ministério Público interpôs recurso facultativo, nos presentes autos, do teor da sentença proferida pelo Tribunal de Trabalho de Faro, na qual a Mm.ª Juiz «a quo» decidiu que:
a)“recuso a aplicação do disposto no art. 2º nº 2 da Portaria de Extensão nº 213/2010 de 15/04 por violação do estatuído nos art. 13º e 61º da Constituição da República Portuguesa;
b) absolvo a arguida da prática das contraordenações com o consequente arquivamento dos autos (…)”.
52. O recurso do Ministério Público centrou-se, assim, na apreciação da constitucionalidade do n.º 2 do artigo 2.º da Portaria n.º 213/2010, de 15 de Abril.
53. Para alicerçar as discrepâncias constitucionais invocadas, a Mm.ª Juiz «a quo» interpretou o disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 478.º do Código do Trabalho, de forma restritiva, fazendo-o, no seu entender, em conformidade com a Constituição, e no sentido de que a norma aí contida apenas se poderia referir a instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho negociais.
54. Este pressuposto argumentativo não possui qualquer fundamento nem, sequer, suporte literal.
55. A fim de operacionalizar o invocado princípio da igualdade, e justificar a sua violação, ficcionou, a Mm.ª Juiz «a quo», uma inexistente paridade entre trabalhadores e empregadores, e daí retirou, sem esclarecer, que a igualdade seria violada pela atribuição, por parte de uma norma jurídica, de efeitos para o passado, no âmbito de uma relação jurídica tendencialmente persistente no tempo.
56. Todavia, no caso vertente, a aplicação, ainda que retroactiva, de uma norma de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, não viola a proibição do arbítrio, não viola a proibição da discriminação, e, por fim, não só não viola a obrigação de diferenciação, como obedece à imposição de compensação das desigualdades resultantes da usual diferença de estatutos socioeconómicos entre trabalhadores e empregadores.
57. Pelo contrário, a não aplicação retractiva da tabela salarial e dos valores dos subsídios de alimentação e de turno, como determinada pelo n.º 2 do artigo 2.º da Portaria n.º 213/2010, de 15 de Abril, é que constituiria uma violação do princípio da igualdade.
58. Verifica-se, pois, que a norma ínsita no do n.º 2 do artigo 2.º da Portaria n.º 213/2010, de 15 de Abril, não viola o princípio da igualdade plasmado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
59. No que toca ao princípio da iniciativa económica privada, com assento no n.º 1 do artigo 61.º da Constituição da República Portuguesa, cuja violação é invocada, podemos decompô-lo em duas vertentes, a saber, a da liberdade de iniciar uma atividade económica e a da liberdade de gestão e de atividade da empresa.
60. Ora, resulta evidente que a imposição da aplicação retractiva de uma tabela salarial e de subsídios de alimentação e de turno não só não inibe o início de qualquer atividade económica como, igualmente, não impede a conveniente gestão de qualquer empresa ou a prossecução da atividade empresarial.
61. O âmbito de proteção do direito ou liberdade de iniciativa económica privada não é, sequer, tocado pela norma cuja inconstitucionalidade se invoca, uma vez que esta regula matéria não sobreponível ao domínio normativo do direito fundamental, mostrando-se insuscetível de lesar o conteúdo garantido pelo princípio constitucional.
62. Verifica-se, também aqui, que a norma ínsita no do n.º 2 do artigo 2.º da Portaria n.º 213/2010, de 15 de Abril, não viola o direito de iniciativa económica privada, plasmado no n.º 1 do artigo 61.º da Constituição da República Portuguesa.
63. Apesar de constituir questão não suscitada pela Mm.ª Juiz «a quo», na douta sentença, ora impugnada, concluímos, igualmente, que a norma contida no n.º 2 do artigo 2.º da Portaria n.º 213/2010, de 15 de Abril, não viola o princípio da segurança jurídica ínsito na ideia de Estado de direito democrático, decorrente do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
64. Consequentemente, não viola, o n.º 2 do artigo 2.º da Portaria n.º 213/2010, de 15 de Abril, qualquer princípio ou regra constitucional.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
4. A questão de inconstitucionalidade objeto do presente recurso respeita à inadmissibilidade de atribuição de efeitos retroativos a cláusulas de natureza pecuniária de instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho (“IRCT”) e, atentos os termos em que é apreciada pela decisão recorrida, justifica algumas considerações preliminares.
A decisão recorrida, seguindo a lei, distingue entre IRCT negociais e IRCT não negociais e considera que, por força da Constituição, os segundos não podem conferir eficácia retroativa às mencionadas cláusulas. Todavia, ao invés de concluir pela inconstitucionalidade do disposto no artigo 478.º, n.º 1, alínea c), do Código do Trabalho, a Mma. Juíza a quo procede a uma interpretação restritiva daquele preceito legal – entendendo que o mesmo só é aplicável a IRCT negociais - e recusa aplicação apenas à norma do artigo 2.º, n.º 2, da Portaria n.º 213/2010, de 15 de abril, com base em razões de princípio, desconsiderando as especificidades da concreta disposição contida no citado artigo 2.º, n.º 2. Simplesmente, tratando-se de matéria atinente aos «limites do conteúdo de instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho» (cfr. a epígrafe do citado artigo 478.º), o limite negativo referente à retroatividade das cláusulas de IRCT redunda necessariamente numa proibição legal; e a violação de tal proibição deveria, por consequência, traduzir-se numa ilegalidade (cfr. os artigos 3.º, n.º 1, e 478.º, n.º 1, alínea a), do Código do Trabalho). Formalmente, porém, o objeto mediato do presente recurso integra apenas a norma desaplicada pela decisão recorrida.
De todo o modo, importa ter presente que se a inadmissibilidade de princípio de disposições de natureza pecuniária com efeitos retroativos contidos em IRCT não negociais é suficiente para um juízo positivo de inconstitucionalidade como o que foi emitido pela Mma. Juíza a quo, já para um eventual juízo negativo de inconstitucionalidade a simétrica admissibilidade de princípio é mera condição necessária. Assim, a eventual admissibilidade constitucional de disposições de natureza pecuniária com efeitos retroativos contidos em IRCT não negociais não dispensa uma dupla análise, primeiro no plano dos princípios – admissibilidade de efeitos retroativos in abstracto e que corresponde ao plano legal em que se situa a previsão do artigo 478.º, n.º 1, alínea c), do Código do Trabalho -; e depois no plano concreto da disposição do IRCT não negocial em causa – admissibilidade de efeitos retroativos in concreto.
Uma segunda observação releva do IRCT cujo âmbito de aplicação pessoal é alargado pela Portaria n.º 213/2010: uma decisão arbitral proferida em processo de arbitragem obrigatória (cfr. o artigo 1.º, n.º 1, da citada Portaria). Ou seja, in casu deparamos com um IRCT não negocial – uma portaria de extensão - que se reporta, alargando o respetivo âmbito de aplicação pessoal, a outro IRCT não negocial - uma decisão arbitral proferida em processo de arbitragem obrigatória (cfr. o artigo 2.º, n.º 4, do Código do Trabalho). No entanto, tendo em conta, por um lado, que a decisão arbitral produz os efeitos de uma convenção coletiva e que, tal como esta, também pode ser aplicada por portaria de extensão a empregadores e trabalhadores integrados no âmbito do setor de atividade e profissional definido em qualquer um daqueles instrumentos (assim, v. os artigo 505.º, n.º 3, 514.º, n.º 1, ambos do Código do Trabalho); e, por outro lado, que o objeto do recurso se circunscreve à norma da portaria de extensão desaplicada, não abrangendo as determinações do Código do Trabalho referentes às portarias de extensão em geral, não há que ponderar na análise do presente recurso as eventuais especificidades associadas à extensão por via administrativa de IRCT não negociais.
Finalmente, o IRCT objeto da portaria de extensão em análise não confere eficácia retroativa a qualquer uma das suas cláusulas. Deste modo, o alcance da norma desaplicada pela decisão recorrida é apenas o de aproximar, o mais possível, a situação dos destinatários da Portaria n.º 213/2010 à situação dos destinatários da decisão arbitral objeto de extensão. É o que resulta inequivocamente do seguinte excerto do preâmbulo daquele normativo:
« Não conferindo a decisão arbitral qualquer retroatividade, a extensão, com vista a aproximar os estatutos laborais dos trabalhadores e as condições de concorrência entre as empresas do sector de atividade abrangido, determina a produção de efeitos da tabela salarial, do subsídio de alimentação e do subsídio de turno a partir do dia 1 do mês seguinte ao da entrada em vigor daquela.
A extensão da decisão arbitral tem, no plano social, o efeito de uniformizar as condições mínimas de trabalho dos trabalhadores e, no plano económico, o de aproximar as condições de concorrência entre empresas do mesmo sector.»
5. A originalidade e função das portarias de extensão enquanto fontes normativas superadoras do princípio da filiação - hoje consagrado no artigo 496.º do Código do Trabalho - são comummente reconhecidas:
« As CCT’s [- convenções coletivas (de trabalho) -] aplicam-se formalmente apenas – por um lado – aos trabalhadores filiados nos sindicatos subscritores e – por outro lado – (a menos que intervenham diretamente) aos empregadores inscritos nas associações patronais outorgantes. Em face das nossas baixas taxas de sindicalização e associação, este princípio de dupla filiação envolveria uma baixíssima taxa de cobertura dos trabalhadores por convenções coletivas (talvez 20%). Ora, torna-se conveniente que as condições de trabalho contidas nas CCT’s tenham aplicação geral dentro da mesma empresa e dos mesmos setores económico-profissionais e sirvam como padrão, proporcionando igualdade de estatutos laborais e também à partida os mesmos custos de concorrência no plano da mão-de-obra. Tal é conseguido, entre nós e em muitos países, por atos governamentais de extensão das condições prescritas nas CCT’s que possam abranger também os não filiados e assim assumir uma eficácia geral.
Assim, a PE (ou RE) estende o âmbito pessoal ou geográfico das convenções coletivas, que nessa medida ganham uma eficácia mais ampla e se tornam geralmente vinculativas, para além dos filiados nas associações outorgantes. Nos casos mais vulgares dos regulamentos de extensão (ditos internos [- segundo o artigo 575.º, n.º 1, do Código do Trabalho de 2003, aqueles que estendem convenções coletivas ou decisões arbitrais a empregadores do mesmo setor e a trabalhadores da mesma profissão ou profissão análoga, desde que exerçam a sua atividade na área geográfica e no âmbito setorial e profissional fixados naqueles instrumentos -] ) dá-se apenas eficácia geral às CCT’s, cujas condições de trabalho se possam aplicar a todos os empregadores e trabalhadores do âmbito considerado, mesmo não inscritos nas associações outorgantes. Trata-se da ultrapassagem do princípio da filiação e de uma extensão da legitimidade e eficácia convencionais, como acontece em muitos ordenamentos, o que nos parece ter cobertura constitucional no art. 56.º, n.º 4, da lei fundamental.» (assim, v. BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER, “Foro competente para apreciar a legalidade das portarias (ou regulamentos) de extensão” – Anotação ao Ac. do TCA de 20.6.2002, P. 11 254-A, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 65 (2007), p. 39 e ss., p. 45; v. também a bibliografia aí indicada na nota 9); no mesmo sentido, e com referência já ao Código do Trabalho de 2009, v. MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, Tratado de Direito do Trabalho, Parte I (Dogmática Geral), 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 261; idem, ibidem, Parte III (Situações Laborais Coletivas), p. 367 e ss. (p. 377: a portaria de extensão aplica-se inclusive a trabalhadores e empregadores filiados em associações sindicais e patronais que não tenham outorgado ou não sejam abrangidos pelo IRCT objeto de extensão); MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 16.ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 92; e PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho, 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, p. 1092 e ss.).
O pressuposto da extensão de um dado IRCT corresponde a uma ponderação de circunstâncias sociais e económicas justificativas do alargamento do respetivo âmbito de aplicação, «nomeadamente a identidade ou semelhança económica e social das situações no âmbito da extensão e no do instrumento a que se refere» (assim, v. o artigo 514.º, n.º 2, do Código do Trabalho). Nesse sentido, refere MONTEIRO FERNANDES que,
« Embora, em qualquer caso, a função da PE seja a de suprir a inexistência de cobertura convencional de certo universo laboral mediante o aproveitamento de uma regulamentação pactícia pré-existente, a verdade é que assume sempre particular relevo a efetivação da igualdade de tratamento no domínio objetivo e/ou subjetivo de aplicação da convenção ou decisão existente.» (cfr. Direito do Trabalho, cit., p. 92).
E, como recorda MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO,
« [O] traço específico da portaria de extensão […] reside no facto de ela prover à regulamentação coletiva em falta não através de um conjunto de normas criadas para esse efeito, mas através do aproveitamento de uma convenção coletiva de trabalho ou de uma deliberação arbitral já existentes.» (cfr. Tratado…, Parte III, cit., p. 368)
Daí poder concluir-se com BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER:
« As PE’s representam o suplemento de eficácia que dá completa uniformidade e generalidade de aplicação às CCT’s e valem como verdadeira norma. […A] necessidade de uniformização só é realmente conseguida em termos inatacáveis pelas PE’s. Quanto a nós, as PE’s mantêm um caráter integrativo e têm uma ligação necessária à autonomia coletiva, sendo nela que encontram o essencial da sua legitimidade normativa. Não são tanto normas governamentais cujo conteúdo é decalcado em preexistentes clausulados de CCT’s, mas mais decisões regulamentares do Governo que permitem dar plena eficácia geral e completude no âmbito pessoal às convenções coletivas e que correspondem a um complemento ao princípio da filiação constante da legislação do trabalho.» (cfr. “Foro competente…” cit., p. 46).
No mesmo sentido, MONTEIRO FERNANDES refere-se a um processo administrativo de extensão (p. 679) com uma autónoma função sistémica:
« O fundamento da extensão localiza-se na necessidade social de suprir a inevitável insuficiência do sistema de contratação coletiva, já que este se baseia na exclusiva legitimidade de certos sujeitos e no princípio da filiação. Atuando como meio de aproveitamento de conteúdos contratados, a portaria de extensão é, assim, um instrumento corretivo relativamente aos princípios estruturantes do sistema. Não se trata, pois, de uma “norma em branco”, dotada de vigência própria, cujo conteúdo seja preenchido pelo de uma convenção coletiva ou decisão arbitral, mas, estritamente, de um meio de modificação das condições de aplicação dessa convenção ou decisão, o que desde logo implica que são os termos de vigência deste último instrumento que determinam o ciclo de eficácia da portaria.» (cfr. Direito do Trabalho, cit., p. 681)
E tem sido este também o aspeto determinante para fundamentar a constitucionalidade deste tipo de IRCT. Assim nos Acórdãos deste Tribunal n.ºs 306/2003 e 282/2005 (disponíveis, assim como os demais adiante citados, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ ). No primeiro afirmou-se:
« Mesmo aceitando, como tem entendido este Tribunal Constitucional, que a portaria de extensão se apropria, fazendo seu, o conteúdo normativo da convenção, assim preenchendo as normas da portaria o conceito de norma para o efeito da sua submissão ao controlo de constitucionalidade a efetuar por este Tribunal (cf., entre outros, o Acórdão n.º 392/89), o certo é que tais regulamentos não integram qualquer produção normativa inovatória, ao contrário do que acontece com as portarias de regulamentação do trabalho (ou regulamentos de condições mínimas, na terminologia do Código [de 2003] ).
[…]
[Atento o carácter não inovatório dos regulamentos de extensão], em termos de normação substantiva, e o seu objetivo de assegurar, por relevantes razões sociais e económicas, uma uniformização mínima do tratamento dos trabalhadores da mesma profissão ou de profissão análoga e/ou do mesmo âmbito sectorial e profissional, e, sobretudo, considerando que ao prever a sua emissão o legislador está ainda a regular a eficácia, através do alargamento do seu âmbito pessoal, das normas constantes de convenções coletivas de trabalho, como lhe é consentido pelo n.º 4 do artigo 56.º da CRP, entende-se que a norma do artigo 4.º, n.º 2, do Código do Trabalho, na parte em que se refere a regulamentos de extensão, não padece de inconstitucionalidade.»
Por outro lado, importa igualmente não perder de vista a importância social e económica das portarias de extensão: a esmagadora maioria das convenções coletivas são objeto de extensão por via administrativa, registando-se uma taxa de sindicalização dos trabalhadores que não atinge os 30% e uma taxa de cobertura contratual coletiva – incluindo os efeitos da extensão - dos mesmos que se aproxima dos 80% (cfr. o Livro Verde sobre as Relações Laborais, 2006, pp. 85-86, disponível em http://www.gep.msess.gov.pt/edicoes/outras/livroverde).
6. O artigo 478.º do Código do Trabalho – em sede de princípios gerais aplicáveis a todos os tipos de IRCT - consagra limites atinentes ao conteúdo admissível destes instrumentos. Entre eles, releva, para a decisão do presente recurso, o consagrado na alínea c) do respetivo n.º 1: o IRCT não pode conferir eficácia retroativa a qualquer cláusula que não seja de natureza pecuniária.
Contrariamente ao que se afirma na decisão recorrida, não foi o Código do Trabalho em vigor – aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro – que, ao menos em termos literais, alterou a limitação anteriormente consagrada no artigo 533.º, n.º 1, alínea c), do Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, segundo o qual a ressalva da proibição de efeitos retroativos se circunscrevia aos IRCT negociais. Tal alteração resultou antes do artigo 1.º da Lei n.º 9/2006, de 20 de março, que veio dar nova redação à citada alínea c) do artigo 533.º, n.º 1. Polémica, desde o início – na discussão na generalidade da Proposta de Lei n.º 35/X que está na origem do diploma em apreço os Deputados Luís Pais Antunes e Pedro Mota Soares defenderam, além do mais, a inconstitucionalidade de tal alteração (cfr. o Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 65, de 9 de dezembro de 2005, pp. 3129 e 3131, respetivamente) -, o objetivo visado foi o de corresponder à preocupação expressa pelos representantes dos trabalhadores. Nesse sentido, pode ler-se no Parecer emitido pela União Geral dos Trabalhadores sobre a referida Proposta de Lei n.º 35/X (disponível em http://www.ugt.pt/parecer_31_10_2005.pdf ):
« A alteração à alínea c) do nº 1 deste artigo [- o artigo 533.º do Código do Trabalho de 2003 -] merece a nossa concordância ao retomar a redação da anterior legislação.
Com efeito, e na medida em que se introduz a possibilidade de atribuir eficácia retroativa também às cláusulas pecuniárias dos instrumentos de natureza não negocial, obsta-se ao efeito pernicioso de beneficiar os empregadores que se colocam fora dos processos negociais, uma vez que, com a redação atual, aqueles apenas são obrigados a partir da data de publicação do instrumento, o que constitui uma desmotivação à negociação coletiva e cria situações de concorrência desleal face aos empregadores empenhados na contratação.»
Portanto, o artigo 478.º, n.º 1, alínea c), do Código do Trabalho em vigor sucedeu ao artigo 533.º, n.º 1, alínea c), do Código do Trabalho de 2003, com a redação dada pela mencionada Lei n.º 9/2006, segundo a qual os IRCT de qualquer tipo – negociais e não negociais – não podiam «conferir eficácia retroativa a qualquer das suas cláusulas, salvo tratando-se de cláusulas de natureza pecuniária» (cfr. LUÍS GONÇALVES DA SILVA in PEDRO ROMANO MARTINEZ (coord.), Código do Trabalho Anotado, 9ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, notas II e V ao artigo 478.º, pp. 949-950). Que é este o alcance normativo do citado artigo 478.º, n.º 1, alínea c), não havendo espaço para uma interpretação restritiva como a preconizada na sentença recorrida, é pacífico na doutrina juslaboralista (cfr. LUÍS GONÇALVES DA SILVA, Código do Trabalho Anotado, cit., nota V ao artigo 478.º, p. 950, sem prejuízo de considerar a solução legal inconstitucional; MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, Tratado…, Parte III, cit., p. 281, sem prejuízo de criticar a solução legal; e MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, cit., p. 695).
A referida Lei n.º 9/2006 veio recuperar a solução anterior resultante da interpretação e aplicação do Decreto-Lei n.º 519-C1/79, de 29 de dezembro. Com efeito, antes da vigência do Código do Trabalho de 2003, na sua redação inicial, a prática administrativa, reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência, sem prejuízo das críticas de alguns, era a de admitir a possibilidade de as portarias de extensão produzirem efeitos retroativos (sobre este ponto, cfr., por todos, LUÍS GONÇALVES DA SILVA, “Pressupostos, Requisitos e Eficácia da Portaria de Extensão” in PEDRO ROMANO MARTINEZ (coord.), Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, vol. I, (I Curso de Pós-Graduação em Direito do Trabalho), Almedina, Coimbra, 2001, p. 669 e ss., p. 752 e nota 268).
7. A justificação geral e tradicional dada para excecionar as cláusulas pecuniárias de convenções coletivas do princípio geral da não retroatividade dos IRCT é o objetivo de obviar a que a demora das negociações conduza à perda de valor do salário real durante tal período (cfr. MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, Tratado…, Parte III cit., p. 280; e PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho, cit., p. 1045). Mas não se exclui que a retroatividade de tais cláusulas também desempenhe uma função de «tendencial recuperação do desgaste sofrido pelos salários reais por efeito do (inelutável) não acompanhamento da subida do custo de vida pelos níveis de retribuição precedentes, quer ao longo da convenção antecessora […]. A retroatividade [pode surgir], pois, como um sucedâneo (aliás meramente aproximativo) da indexação dos salários pelo custo de vida» (assim, v. MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, cit., p. 694).
Contudo, estas razões para a retroatividade das cláusulas pecuniárias de IRCT negociais não são totalmente transponíveis para os instrumentos administrativos que determinam o alargamento do seu âmbito de aplicação a sujeitos que não intervieram na negociação coletiva. E o fundamento é óbvio: diferentemente dos outorgantes da convenção coletiva objeto de extensão, os destinatários da portaria vão ser confrontados com uma redefinição de aspetos das suas relações localizados no passado sem nela terem consentido. Daí as críticas de alguma doutrina (v., em especial, LUÍS GONÇALVES DA SILVA, “Pressupostos, Requisitos e Eficácia da Portaria de Extensão” cit., p. 752 e ss.; e MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, Tratado…, Parte III cit., pp. 280 e 281) que também ecoam no seguinte passo da sentença recorrida:
« [C]ompreende-se que instrumento negociado pelos contratantes - representantes de entidades patronais e trabalhadores - esteja autorizado a conferir eficácia retroativa a cláusulas de natureza pecuniária uma vez que se trata de acordos concluídos após processo de negociação dos envolvidos durante o qual os mesmos, após a devida ponderação, voluntariamente, cedem nos interesses que lhes respeitam encontrando, desse modo dialogante, um equilíbrio de valores e interesses que todos beneficia.
Mas tal processo de negociação e cedência voluntária não existe nos instrumentos de regulamentação coletiva não negociados como é o caso das Portarias de extensão que não resultam de um ato voluntário mas de uma imposição visando a extensão de determinado acordo coletivo a terceiros que nele não intervieram e que, por via dela, passam a estar vinculados aos comandos que dele resultam.»
Mais: a compatibilização da retroatividade das portarias de extensão – em especial a que decorre da aplicação de cláusulas pecuniárias com efeitos retroativos contidas no IRCT estendido – com a liberdade de iniciativa económica é objeto de profundas preocupações, mesmo da parte de quem não considera a solução legal inconstitucional.
Nesse sentido depõem, além da crítica doutrinária já mencionada, as referências nas sucessivas atualizações do Memorando de Entendimento sobre Condicionalidades de Política Económica, em sede de “fixação de salários e competitividade”, à necessidade de ponderação autónoma das «implicações da extensão das convenções para a posição competitiva das empresas». Com efeito, na sequência dos compromissos assumidos na quinta atualização neste domínio (cfr. ponto 4.5), foi aprovada a Resolução do Conselho de Ministros n.º 90/2012, publicada em 31 de outubro de 2012, que, além de definir «critérios mínimos necessários e cumulativos a observar no procedimento para a emissão de portarias de extensão», resolve no respetivo n.º 3 limitar a eficácia retroativa da extensão das cláusulas de natureza pecuniária constantes de convenção coletiva ao primeiro dia do mês da publicação da portaria de extensão no Diário da República.
8. Mas a sentença recorrida vai mais longe e, com base em ponderações similares, julga inconstitucional a eficácia retroativa consagrada no artigo 2.º, n.º 2, da Portaria n.º 213/2010, de 15 de abril, relativamente à tabela salarial e aos valores do subsídio de alimentação e do subsídio de turno – não obstante a entrada em vigor da Portaria em apreço em 20 de abril de 2010, os efeitos da extensão quanto a estas três matérias reportam-se a 1 de dezembro de 2009 (o primeiro dia do mês seguinte ao da entrada em vigor da decisão arbitral estendida). Para tanto, invoca o princípio da igualdade entre empregadores e trabalhadores, quanto à tutela dos direitos adquiridos, e a liberdade de iniciativa económica dos primeiros (cfr. os artigos 13.º e 61.º, n.º 1, da Constituição).
9. Como este Tribunal tem repetidamente afirmado, o princípio da igualdade abrange fundamentalmente três dimensões ou vertentes (cfr. o Acórdão n.º 412/2002):
« [A] proibição do arbítrio, a proibição de discriminação e a obrigação de diferenciação, significando a primeira, a imposição da igualdade de tratamento para situações iguais e a interdição de tratamento igual para situações manifestamente desiguais (tratar igual o que é igual; tratar diferentemente o que é diferente); a segunda, a ilegitimidade de qualquer diferenciação de tratamento baseada em critérios subjetivos (v.g., ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social) e, a última surge como forma de compensar as desigualdades de oportunidades.»
Ora, a extensão de um IRCT não estabelece qualquer distinção relevante entre empregadores e trabalhadores no plano do princípio da igualdade: as soluções consagradas em cada IRCT resultam da dinâmica própria inerente ao exercício do direito de contratação coletiva assumindo ab initio a diferença entre empregador e trabalhador. De resto, é justamente o diferente poder negocial entre estes dois sujeitos em cada contrato individual de trabalho que justifica a negociação coletiva, enquanto modo de compensação de tal desequilíbrio de poderes negociais. Mas as soluções negociadas e contratadas no plano coletivo, em si mesmas consideradas, não podem ser consideradas discriminatórias dos trabalhadores ou dos empregadores, já que as mesmas radicam, em larga medida, na contraposição dos interesses de ambos. Os trabalhadores e os empregadores abrangidos por um dado IRCT não são, neste sentido, iguais mas sim diferentes; e, por isso, justifica-se que as soluções do IRCT aplicáveis a cada um deles não sejam as mesmas. Ou seja, as diferenças têm nesse caso – como, de resto, sempre que existe uma diferença de interesses relevante entre as partes de um instrumento regulatório - um fundamento material manifesto. E o que o princípio da igualdade proíbe como arbitrárias são as diferenciações de tratamento «que se baseie[m] num critério que não possa ser relevante, considerando o efeito útil visado» (cfr. o Acórdão n.º 275/2002). Aliás, a proceder o argumento da violação da igualdade invocado nestes termos pela decisão recorrida – ou seja, contrapondo a posição dos trabalhadores à dos empregadores - o mesmo não radicaria na estatuição regulamentar da retroatividade dos efeitos das cláusulas pecuniárias da decisão arbitral, mas na própria cláusula da decisão arbitral estendida.
Por outro lado, o que pode ter sentido comparar, para aferir de uma eventual violação do princípio da igualdade, é a situação dos empregadores que operem no mesmo setor de atividade económica e que não são abrangidos pelo IRCT considerado com a dos empregadores abrangidos por tal IRCT; e, bem assim, a situação do universo dos trabalhadores das profissões e categorias profissionais previstas no IRCT considerado mas por ele não abrangidos com a dos trabalhadores abrangidos pelo mesmo IRCT. E, de resto, é justamente essa a finalidade precípua da Portaria n.º 213/2010 e da estatuição da retroatividade dos efeitos das cláusulas pecuniárias nela prevista: a extensão destina-se «a aproximar os estatutos laborais e as condições de concorrência entre as empresas do setor de atividade abrangido, [pelo que se] determina a produção de efeitos da tabela salarial, do subsídio de alimentação e do subsídio de turno a partir do dia 1 do mês seguinte ao da entrada em vigor [da decisão arbitral]» (cfr. o preâmbulo). Como referido, é precisamente nesta padronização ou generalização de estatutos definidos no plano da contratação coletiva que se traduz a função corretiva e sistémica das portarias de extensão (cfr. supra o n.º 5).
Pelo exposto, a estatuição de efeitos retroativos contida no artigo 2.º, n.º 2, da Portaria n.º 213/2010, de 15 de abril, não se pode considerar como uma medida arbitrária e, portanto, tal preceito não viola o princípio da igualdade.
10. No que se refere à alegada violação da liberdade de iniciativa económica privada, cumpre começar por recordar que tal direito de liberdade «se exerce nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral» (cfr. o artigo 61.º, n.º 1, da Constituição). Como se escreveu no Acórdão n.º 76/85, seguindo a doutrina:
« [A] liberdade de iniciativa privada tem um duplo sentido. Consiste, por um lado, na liberdade de iniciar uma atividade económica (direito à empresa, liberdade de criação de empresa) e, por outro lado, na liberdade de gestão e atividade da empresa (liberdade de empresa, liberdade de empresário). Ambas estas vertentes do direito de iniciativa económica privada podem ser objeto de limites mais ou menos extensos. Com efeito, esse direito só pode exercer-se ‘nos quadros definidos pela Constituição e pela lei’ (n.º 1, in fine), não sendo portanto um direito absoluto, nem tendo sequer os seus limites constitucionalmente garantidos, salvo no que respeita a um mínimo de conteúdo útil constitucionalmente relevante, que a lei não pode aniquilar, de acordo, aliás, com a garantia de existência de um sector económico privado».
Por outro lado, valem em relação a tal liberdade as considerações feitas, entre muitos outros, no Acórdão n.º 75/2013:
« Tem sido reiteradamente afirmado que a mera inserção do artigo 61º no Título relativo a “direitos, sociais e económicos” não o priva de uma certa dimensão de “direito à não intervenção estadual”, que é típica dos “direitos, liberdades e garantias” (cfr. Acórdãos n.º 187/01 e n.º 304/10). Não se trata, portanto, de um mero “direito à atuação estadual”, mas antes de um direito que, em certa medida, exige que o Estado (e os demais poderes públicos) se abstenha(m) de o colocar em causa, mediante intervenções desrazoáveis ou injustificadas. Tal direito fundamental compreende, em si mesmo, uma “vertente decisório/impulsiva”, que resulta na faculdade de formação da vontade de prosseguir determinada atividade económica e de lhe dar início, e uma “vertente organizativa”, que pressupõe a liberdade de determinar o modo de organização e de funcionamento da referida atividade económica (cfr. Acórdãos n.º 358/2005 e n.º 304/2010).
Porém, a verificação de que o “direito à livre iniciativa privada” partilha de algumas características dos “direitos, liberdades e garantias” não significa que todo o respetivo conteúdo normativo possa beneficiar da integralidade daquele específico regime constitucional. Para tanto, imperioso se torna que seja possível extrair do conteúdo daquele direito um “conteúdo essencial” que corresponda à “dimensão negativa” dos “direitos de liberdade”. Dito de outro modo, só a parcela do “direito à livre iniciativa privada” que corresponda a um dever de abstenção do Estado face àquela livre conformação do indivíduo (ou da pessoa coletiva) é que beneficia do regime específico dos “direitos, liberdades e garantias”, ficando assim sujeito à reserva legislativa parlamentar fixada pela alínea b) do n.º 1 do artigo 165º, da CRP.»
Sobre o papel do legislador neste domínio, disse-se no Acórdão n.º 328/94:
« [O] direito de liberdade de iniciativa económica privada, como facilmente deflui do aludido preceito constitucional [- o artigo 61.º, n.º 1 -], não é um direito absoluto (ele exerce-se, nas palavras do Diploma Básico, nos quadros da Constituição e da lei, devendo ter em conta o interesse geral). Não o sendo – e nem sequer tendo limites expressamente garantidos pela Constituição (muito embora lhe tenha, necessariamente, de ser reconhecido um conteúdo mínimo, sob pena de ficar esvaziada a sua consagração constitucional) – fácil é concluir que a liberdade de conformação do legislador, neste campo, não deixa de ter uma ampla margem de manobra».
E o Acórdão n.º 289/2004 retirou a consequência devida deste entendimento:
« Mais limitado será, todavia, o domínio no qual este direito fundamental beneficia de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias e, portanto, da sua específica proteção. Este domínio mais restrito diz respeito apenas aos «quadros gerais e aos aspetos garantísticos» da liberdade de iniciativa económica (cfr. Acórdão n.º 329/99 […] ), que digam respeito à liberdade de iniciar empresa e de a gerir sem interferência externa.
É, pois, apenas quanto a este núcleo da liberdade de iniciativa económica privada que, por aplicação do regime dos direitos, liberdades e garantias, e por revestir a natureza de direito de natureza análoga, existe uma reserva de lei parlamentar.»
Como reconhecido no Acórdão n.º 392/89 – em que também estava em causa a apreciação da constitucionalidade de normas de uma portaria de extensão –, estes princípios são igualmente válidos em face da necessidade de compatibilização da liberdade de iniciativa económica com os direitos dos trabalhadores constitucionalmente consagrados:
«O direito à iniciativa económica privada vem a traduzir-se num direito à livre criação de empresas e no direito, bem assim, de as gerir com autonomia, ou seja, sem interferências externas.
Isto não significa, como é óbvio, que o direito à iniciativa económica privada seja um direito “absoluto”, cujo conteúdo esteja determinado “naturalmente”.
Para além de ter de conviver com outros direitos e de, logo por aí, haver de sofrer limitações, a iniciativa económica privada tem uma função social a cumprir: há-de ser “instrumento de progresso coletivo”. E, depois, há-de exercer-se, embora livremente, “nos quadros definidos pela Constituição e pela lei”.
Significa isto que os operadores económicos privados podem reivindicar um espaço para o exercício da sua atividade, não podendo a lei suprimi-lo ou reduzi-lo em termos de remeter o sector de atividade económica privada para uma posição insignificante, nem podendo, bem assim, impor-lhe condicionamentos ou restrições que tornem o seu exercício particularmente oneroso.
Respeitados esses limites, o legislador pode perfeitamente modelar o exercício da atividade económica privada. E mais: tem de impor-lhe condicionamentos e restrições várias: antes de mais, para dar resposta às exigências constitucionais em matéria de direitos dos trabalhadores.
Assim, a atividade económica privada tem, desde logo, de sofrer limitações decorrentes dos seguintes preceitos da Lei Fundamental: do artigo 53.º, que proíbe “os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos”; do artigo 54.º, que garante aos trabalhadores o direito de criarem comissões de trabalhadores (n.º 1) e comissões coordenadoras (n.º 3), visando a “intervenção democrática na vida da empresa”; do artigo 55.°, que reconhece às comissões de trabalhadores, além do mais, o direito de “exercer o controlo de gestão nas empresas” [alínea b)]; do artigo 56.°, que garante aos trabalhadores o direito de exercerem “a atividade sindical na empresa” [alínea d) do n.° 1]; do artigo 57.°, que, como se viu, reconhece às associações sindicais o direito de exercerem a contratação coletiva, nos termos da lei (n.° 3) e prescreve que a “legitimidade para a celebração das convenções coletivas de trabalho”, e bem assim as regras respeitantes “à eficácia das respetivas normas” são estabelecidas por lei (n.° 4); e do artigo 58.°, que reconhece aos trabalhadores o direito à greve (n.° 1) e proíbe o lockout (n° 3).»
11. Na sentença recorrida a Mma Juíza a quo entendeu que a retroatividade estatuída no artigo 2.º, n.º 2, da Portaria n.º 213/2010 viola a liberdade de iniciativa económica privada com base no seguinte entendimento:
« [É] sabido que as empresas são entidades organizadas que dependem de uma gestão económico-financeira criteriosa e ponderada e, no âmbito desta, a previsibilidade dos custos assume papel decisivo. Por tal facto, a imposição de compromissos salariais, fazendo-os retroagir meses (no caso vertente mais de cinco meses) põe em causa a dita organização e, consequentemente, a iniciativa económica tornando as empresas menos competitivas (nalguns casos pondo em causa a própria sobrevivência) além de reduzir as possibilidades de aumento da empregabilidade.»
Uma tal posição não é inédita – foi, aliás, defendida nos trabalhos preparatórios da Lei n.º 9/2006, de 20 de março (cfr. supra o n.º 6) – e tem o apoio de alguma doutrina, em que se destaca, desde há muito, LUÍS GONÇALVES DA SILVA, que, referindo-se ao artigo 478.º, n.º 1, alínea c), do Código do Trabalho, defende:
« Consideramos – como já antes tínhamos defendido face à LRCT [- o Decreto-Lei n.º519-C1/79, de 29 de dezembro -] o atual regime legal claramente violador da Lei Fundamental, desde logo, da liberdade de iniciativa económica. De facto, a retroatividade dos instrumentos não negociais impossibilita que os empresários computem, com a antecipação necessária, os custos atinentes às cláusulas pecuniárias, o que coloca em crise a confiança que é essencial para uma efetiva iniciativa privada – que tem, como se sabe, arrimo na Lei Fundamental (artigo 61.º, n.º 1) –, além de fazer perigar o sistema de economia de mercado tal como o princípio da proteção à confiança, verdadeiro alicerce do Estado de Direito.
Por outro lado, note-se que há violação de um direito adquirido. Com efeito, o empregador já realizou as prestações de natureza pecuniária a um determinado valor, pelo que obriga-lo a um acréscimo pecuniário é, sem dúvida, violar um direito adquirido, cujo respeito é considerado um princípio geral de Direito com dignidade constitucional.
Diversamente, esta colisão constitucional não se verifica no caso dos instrumentos de natureza negocial. A exceção ao princípio geral da não retroatividade dos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho negocial, no âmbito das cláusulas pecuniárias justifica-se nomeadamente, face ao fim de evitar que o prolongar das negociações tenha como consequência a perda do valor real da retribuição durante esse período; por outro lado, são os próprios destinatários da regulação que assim estabelecem - autorregulação – não havendo, deste modo valores de liberdade de iniciativa económica, de segurança ou de direitos adquiridos afetados.» (cfr. Código do Trabalho Anotado, cit., nota V ao artigo 478.º, p. 950).
Embora estas duas posições se reportem a objetos normativos distintos, respetivamente o artigo 2.º, n.º 2, da Portaria n.º 213/2010 e o artigo 478.º, n.º 1, alínea c), do Código do Trabalho, a verdade é que partilham do mesmo ponto de vista quanto à inadmissibilidade de princípio da retroatividade de IRCT não negociais. Com efeito, para ambas, a retroatividade de tais instrumentos é considerada constitucionalmente ilegítima in abstracto. Daí a necessidade de a sentença recorrida se louvar numa interpretação restritiva (e alegadamente conforme à Constituição) daquele preceito legal.
Contudo, e como já referido (cfr. supra o n.º 4), caso a apreciação a fazer neste plano conduza a um juízo negativo de inconstitucionalidade, a decisão do presente recurso exigirá, para além dessa, uma apreciação da concreta estatuição de efeitos retroativos constante do preceito regulamentar, ou seja, a valoração da retroatividade in concreto.
Por outro lado, justifica-se analisar a compatibilidade constitucional da retroatividade não apenas em qualquer um daqueles dois planos à luz do parâmetro da liberdade de iniciativa económica, como também – e como defendido pelo Ministério Público nas suas alegações – em confronto com o parâmetro da segurança jurídica, atentas as referências – também na sentença recorrida - ao tópico dos “direitos adquiridos”.
12. Começando pela apreciação da admissibilidade constitucional in abstracto da atribuição por via de portaria de extensão de efeitos retroativos a disposições de natureza pecuniária, cumpre ter presente a função específica desempenhada por aquele tipo de IRCT: «a efetivação da igualdade de tratamento no domínio objetivo e/ou subjetivo de aplicação da convenção ou decisão existente», a qual é alcançada mediante a ampliação do âmbito pessoal de aplicação – superando os limites decorrentes do princípio da filiação - de um dado regime preexistente; daí a sua caracterização como «meio de modificação das condições de aplicação dessa convenção ou decisão, o que, desde logo, implica que são os termos de vigência deste último instrumento que determinam o ciclo de eficácia da portaria» (cfr. MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, cit., pp. 92 e 681).
Ou seja, relativamente a situações económica e socialmente semelhantes às que se encontram disciplinadas por convenção coletiva ou decisão arbitral, a portaria de extensão é admissível aí onde inexista um IRCT negocial e, uma vez aprovada, pode ser afastada por um IRCT negocial posterior (cfr. os artigos 484.º, 514.º, n.º 2, e 515.º, todos do Código do Trabalho). Por isso, e também na medida em que alarga o número de empregadores e trabalhadores sujeitos à disciplina constante de convenções coletivas, a portaria de extensão também pode ser perspetivada como um modo de promoção da contratação coletiva (cfr. o artigo 485.º do Código do Trabalho). Como observa MONTEIRO FERNANDES,
« Na prática, a extensão é frequentemente determinada logo que entra em vigor uma convenção, tendo em vista a cobertura de trabalhadores não sindicalizados ou membros de sindicatos minoritários que a não subscreveram. […]
De qualquer modo, os pressupostos da extensão tornam evidente que se trata de um processo estritamente supletivo ou residual perante a negociação coletiva, não podendo sobrepor-se-lhe quando esta exista ou seja viável» (cfr. Direito do Trabalho, cit., p. 680).
Decorre do exposto, uma vocação das portarias de extensão para replicarem o conteúdo dos IRCT a que respeitam, incluindo no que se refere a eventuais cláusulas pecuniárias com efeitos retroativos, pois só desse modo se consegue a intencionada igualização de tratamento entre os trabalhadores abrangidos pelo IRCT estendido e os que por ele não são abrangidos mas exercem a mesma atividade e, outrossim, a prevenção de indesejáveis distorções entre empresas que concorrem entre si. A tal vocação acresce a razão de conveniência invocada pelos representantes dos trabalhadores por ocasião da discussão da proposta de lei que esteve na origem da Lei n.º 9/2006, de 20 de março: eliminar o incentivo a que os empregadores se coloquem fora dos processos de negociação coletiva para beneficiarem de uma vinculação à convenção coletiva o mais tardia possível, nomeadamente a partir do início de vigência da portaria de extensão (cfr. supra o n.º 6). Por outro lado, a retroatividade em apreço ainda se pode considerar coberta pela habilitação constitucional do legislador ordinário de regular a eficácia das normas das convenções coletivas, tal como entendida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr. os Acórdãos n.os 306/2003 e 282/2005).
Deste modo, pode concluir-se com meridiana clareza que a possibilidade de se aprovarem portarias de extensão – as quais podem inclusivamente conferir eficácia retroativa a disposições de natureza pecuniária, tal como previsto no artigo 478.º, n.º 1, alínea c), do Código do Trabalho - corresponde ainda a «uma forma de modelar o exercício da atividade económica privada» destinada a «dar resposta às exigências constitucionais em matéria de direitos dos trabalhadores» (cfr. o Acórdão n.º 392/89), não interferindo com os aspetos garantísticos da liberdade de iniciativa económica, nomeadamente no tocante à liberdade de gerir a empresa sem interferências externas. Precisamente porque tal liberdade é delimitada negativamente pela necessidade de salvaguardar os direitos dos trabalhadores e de garantir uma «equilibrada concorrência entre as empresas» (cfr. o artigo 81.º, alínea f), da Constituição), o respetivo âmbito de proteção – correspondente ao núcleo da liberdade de iniciativa económica privada que, por revestir a natureza de direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, goza do mesmo regime que estes últimos (cfr. os artigos 17.º e 18.º da Constituição) – nem sequer chega a ser tocado pelo regime em apreço. E, consequentemente, também não é inconstitucional, designadamente por violação da liberdade de iniciativa privada, a questionada admissibilidade de as portarias de extensão conferirem eficácia retroativa a determinações de natureza pecuniária constantes dos IRCT a estender.
13. A ponderação do mesmo tipo de interesses acaba por ser relevante no que se refere à segurança jurídica, considerada nesta perspetiva abstrata: o citado preceito legal também não viola o princípio da segurança jurídica nem a respetiva vertente subjetiva, isto é o princípio da proteção da confiança.
O princípio da segurança jurídica decorre do princípio mais vasto do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição. Com efeito, o Estado de Direito é, também, um Estado de segurança (cfr. o Acórdão n.º 108/2012). Como já tem sido afirmado, a garantia de segurança jurídica inerente ao Estado de Direito corresponde, numa vertente subjetiva, a uma ideia de proteção da confiança dos particulares relativamente à continuidade da ordem jurídica e trata-se assim de um princípio que exprime a realização imperativa de uma especial exigência de previsibilidade, protegendo sujeitos cujas posições jurídicas sejam objetivamente lesadas por determinados quadros injustificados de instabilidade (BLANCO DE MORAIS, “Segurança Jurídica e Justiça Constitucional” in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XLI, n.º 2, 2000, p. 625). Nas palavras de REIS NOVAIS,
« [A] proteção da confiança dos cidadãos relativamente à ação dos órgãos do Estado é um elemento essencial, não apenas da segurança da ordem jurídica, mas também da própria estruturação do relacionamento entre Estado e cidadãos em Estado de direito. Sem a possibilidade, juridicamente garantida, de poder calcular e prever os possíveis desenvolvimentos da atuação dos poderes públicos suscetíveis de se repercutirem na sua esfera jurídica, o indivíduo converter-se-ia, em última análise com violação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, em mero objeto do acontecer estatal.
Essa proteção da confiança dos particulares relativamente à continuidade da ordem jurídica é, se quisermos, o lado subjetivo da garantia mais geral da segurança jurídica inerente ao Estado de Direito» (cfr. Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2004, pp. 261-262).
Como decidido no Acórdão n.º 355/2013:
«[F]ora dos casos de retroatividade proibida expressamente previstos na Constituição, o juízo-ponderação de que o Tribunal Constitucional vem lançando mão para apreciar as restantes situações potencialmente lesivas do princípio da segurança jurídica assenta no pressuposto de que o princípio do Estado de Direito contido no artigo 2.º da CRP implica “um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”. Neste sentido, “a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança (...), terá de ser entendida como não consentida pela lei básica” (cfr. Acórdão n.º 556/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Tudo está em saber, portanto, em que circunstâncias a afetação da confiança dos cidadãos deve ser considerada “inadmissível, arbitrária e demasiado onerosa”, sendo sobejamente conhecidos os critérios que a jurisprudência constitucional estabilizou a este propósito (cfr., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 287/90, 303/90 e 399/10, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não pudessem contar (i); e quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes, o que remete para uma ponderação a efetuar nos termos do princípio da proibição do excesso (ii).
Por outras palavras, a conclusão pela inadmissibilidade de uma medida legislativa à luz do princípio da proteção da confiança dependerá, em primeiro lugar, de um juízo sobre a legitimidade das expectativas dos cidadãos visados, que deverão ser fundadas em boas razões, e cuja consistência carece, de acordo com a jurisprudência constitucional, da exteriorização de uma conduta estadual concludente e apta a gerar expectativas de continuidade, por um lado, e da materialização ou tradução em atos (“planos de vida”) da confiança psicológica dos particulares, por outro.
Comprovada essa legitimidade, segue-se, em segundo lugar, um juízo quanto à prevalência do interesse público subjacente à medida sobre o interesse individual (a expectativa legítima) sacrificado pela mesma (cfr. Acórdão n.º 556/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Mesmo quando as alterações legislativas evidenciem aquela prevalência, é ainda necessário apurar se a afetação da confiança assim implicada não é desrazoável ou excessiva, ou seja, “se o fim do legislador podia ser alcançado por via menos agressiva da confiança e dos interesses dos particulares – por exemplo, através da previsão de disposições transitórias ou indemnizatórias” (Jorge Reis Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2011, p. 269).».
A existência de uma habilitação legal como a que consta do artigo 478.º, n.º 1, alínea c), do Código do Trabalho – e que é aplicável às portarias de extensão – não é de per si expressamente proibida pela Constituição. Simultaneamente, a mesma habilitação legal afasta uma total imprevisibilidade por parte dos destinatários dos IRCT quanto à possibilidade de virem a ser conferidos efeitos retroativos às respetivas disposições de natureza pecuniária. Em segundo lugar, cumpre ter bem presente a aludida vocação das portarias de extensão e a razão de ser precípua da solução de conferir efeitos retroativos a disposições contidas em IRCT: compensar as perdas de rendimento acumuladas ao longo do tempo de vigência da relação laboral (cfr. supra o n.º 7). Com efeito, «a atribuição de efeitos retroativos, particularmente às cláusulas salariais, obedece assim ao propósito de minorar as perdas acumuladas no passado, através do recuo do momento a que a nova retribuição possa reportar-se» (assim, v. MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, cit., p. 694). Finalmente, o procedimento de emanação das portarias de extensão acautela minimamente a posição dos seus destinatários.
Com efeito, a portaria de extensão pressupõe uma convenção ou decisão arbitral em vigor no âmbito do setor de atividade e profissional referido naquele instrumento, a qual se encontra publicado no Boletim do Trabalho e Emprego (cfr. os artigos 514.º e 519.º, n.º 1, do Código do Trabalho). O procedimento de extensão inicia-se com a publicação de um projeto de portaria no Boletim do Trabalho e Emprego (cfr. o artigo 516.º, n.º 2, do Código do Trabalho). Qualquer pessoa singular ou coletiva – e não apenas as associações sindicais ou os empregadores – que possa ser, ainda que indiretamente, afetada pela extensão pode deduzir oposição fundamentada, por escrito, nos quinze dias seguintes à publicação do projeto (cfr. o artigo 516.º, n.º 3, do Código do Trabalho). Uma vez aprovada, a portaria de extensão é publicada no Boletim do Trabalho e Emprego e no Diário da República (cfr. o artigo 519.º, n.os 1 e 2, do Código do Trabalho).
Em suma, a mutação da ordem jurídica consubstanciada numa portaria de extensão, mesmo que esta confira eficácia retroativa às suas disposições de natureza pecuniária, não corresponde a um facto normativo com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não pudessem contar; e a finalidade precípua de igualização do estatuto dos trabalhadores não abrangidos por uma convenção coletiva ou decisão arbitral com o estatuto daqueles que por elas sejam abrangidos, incluindo se for o caso a questão da atualização da sua situação salarial, constitui um interesse constitucionalmente relevante que, em última análise, radica na opção constitucional de deferir ao legislador a competência para estabelecer as regras respeitantes à eficácia das normas de convenções coletivas (cfr. o artigo 56.º, n.º 4, da Constituição).
14. Na apreciação da retroatividade estatuída pelo artigo 2.º, n.º 2, da Portaria n.º 213/2010, de 15 de abril, importa começar por fixar as circunstâncias em que tal Portaria foi emitida:
- A decisão arbitral objeto de extensão surge na sequência da frustração de negociações diretas entre sindicatos representativos dos trabalhadores das indústrias de celulose, papel, gráfica e imprensa e a Associação Portuguesa das Indústrias Gráficas, de Comunicação Visual e Transformadoras do Papel tendentes à substituição de um contrato coletivo de trabalho celebrado em 1977 e pôs termo a um processo de arbitragem obrigatória iniciado em dezembro de 2008, a requerimento do Sindicato Representativos dos Trabalhadores das Indústrias de Celulose, Papel, Gráfica e Imprensa (cfr. o n.º 1 e a cláusula 2.ª da decisão arbitral estendida, publicada no Boletim do Trabalho e Emprego, de 29 de outubro de 2009);
- O aviso do projeto de portaria de extensão que está na origem da Portaria n.º 213/2010 e a respetiva justificação foi publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, de 22 de janeiro de 2010, e dele já constava o artigo 2.º, n.º 2 («A tabela salarial e o valor do subsídio de alimentação [- previstos na decisão arbitral a estender -] produzem efeitos a partir de 1 de dezembro de 2009»);
- Na «nota justificativa» constante do citado aviso constava igualmente a fundamentação da atribuição de efeitos retroativos nos seguintes termos:
« Não conferindo a decisão arbitral qualquer retroatividade, a extensão com vista a aproximar os estatutos laborais dos trabalhadores e as condições de concorrência entre as empresas do setor de atividade abrangido, determina a produção de efeitos da tabela salarial e do valor do subsídio de alimentação a partir do dia 1 do mês seguinte ao da entrada em vigor daquela» (itálicos aditados).
Por outro lado, e como dá conta o preâmbulo da Portaria n.º 213/2010, houve efetiva participação dos interessados no procedimento de extensão. Assim, e no que ora releva, o Sindicato Representativos dos Trabalhadores das Indústrias de Celulose, Papel, Gráfica e Imprensa «alegou que a retroatividade prevista no projeto de portaria deveria incluir o subsídio de turno, de modo a colocar as empresas em situação de igualdade ou o mais aproximado possível» (itálico aditado). Esta pretensão veio a ser satisfeita, «considerando que o propósito da retroatividade, expressamente enunciado na nota justificativa publicada com o projeto de portaria, é a aproximação dos estatutos laborais dos trabalhadores e das condições de concorrência entre as empresas». Acresce que, segundo o respetivo autor, «a extensão da decisão arbitral tem, no plano social, o efeito de uniformizar as condições mínimas de trabalho dos trabalhadores e, no plano económico, o de aproximar as condições de concorrência entre empresas do mesmo setor».
Um outro dado relevante é a preocupação denotada com a atenuação dos efeitos económicos da retroatividade em causa nas empresas dos empregadores afetados e que se traduziu na definição do seguinte regime transitório – artigo 2.º, n.º 3, da Portaria n.º 213/2010:
« Os encargos resultantes da retroatividade podem ser satisfeitos em prestações mensais de igual valor, com início no mês seguinte ao da entrada em vigor da presente portaria, correspondendo cada prestação a dois meses de retroatividade ou fração e até ao limite de três.»
15. No que se refere à compatibilidade do regime do artigo 2.º, n.º 2, da Portaria n.º 213/2010 com a liberdade de iniciativa económica, valem as considerações já feitas a propósito do regime legal que admite a atribuição de efeitos retroativos a disposições de natureza pecuniária constantes de portarias de extensão: o âmbito de proteção de tal liberdade – correspondente a um núcleo da liberdade de iniciativa económica privada que, por revestir a natureza de direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, goza do mesmo regime que estes últimos (cfr. os artigos 17.º e 18.º da Constituição) – tendo em conta a necessidade de a coordenar com os direitos dos trabalhadores e com a garantia de uma «equilibrada concorrência entre as empresas» (cfr. o artigo 81.º, alínea f), da Constituição), nem sequer chega a ser tocado pelo regime em apreço (cfr. supra o n.º 12).
16. Relativamente à segurança jurídica, cumpre ter presente, além do circunstancialismo em que foi aprovada a Portaria n.º 213/2010, designadamente a publicidade própria do procedimento de extensão, que tanto a previsão de um regime legal como o que consta do artigo 478.º, n.º 1, alínea c), do Código do Trabalho, como a experiência comum em matéria de contratação coletiva afastam a imprevisibilidade de as portarias de extensão conterem disposições de natureza pecuniária com efeitos retroativos. Com efeito, atenta a natureza jurídica de tais portaria e a prática, consistente, dos últimos decénios, é habitual e comum que, após a publicação de uma convenção coletiva ou de uma decisão arbitral, ocorra, alguns meses depois, a publicação do IRCT não negocial visando estender as normas dessa convenção coletiva ou da decisão arbitral aos trabalhadores não sindicalizados na associação sindical e aos empregadores não filiados na associação de empregadores vinculadas por este instrumentos, com carácter retroativo. Deste modo, e concretizando, dir-se-á que eventuais expetativas dos empregadores, nomeadamente as da A., S.A., ora recorrida, quanto a uma não alteração da disciplina das relações coletivas, incluindo com efeitos retroativos em matéria de disposições de natureza pecuniária, não são legítimas, justificadas nem fundadas em boas razões; e que o Estado também não gerou qualquer expetativa quanto à não alteração retroativa da ordem jurídica nesse domínio, uma vez que, conforme referido, tem sido constante o comportamento no sentido da emissão de portarias de extensão retroativas, em situações como a presente.
A retroatividade das disposições de natureza pecuniária contidas em portarias de extensão, por outro lado, é complementar à vocação natural deste tipo de IRCT de aproximar, na medida possível, o estatuto laboral dos trabalhadores não abrangidos pelo IRCT estendido e, bem assim, de aproximar a situação económica dos seus empregadores – interesses públicos relevantes em matéria de relações coletivas de trabalho e de disciplina da liberdade de iniciativa económica privada (cfr. supra os n.os 5 e 12).
Assim, e revertendo à jurisprudência do Acórdão n.º 355/2013, no que se refere ao artigo 2.º, n.º 2, da Portaria n.º 213/2010, verifica-se: (i) que não ocorre uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários daquela Portaria não pudessem contar; (ii) que, em qualquer caso, tal mutação é ditada pela necessidade de salvaguardar interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes; e (iii) que a salvaguarda desses interesses não impõe sacrifícios desproporcionados aos empregadores destinatários da citada Portaria.
No tocante a este último aspeto, que remete para uma ponderação a efetuar nos termos do princípio da proibição do excesso, cumpre salientar que, conforme expressamente referido no preâmbulo da Portaria n.º 213/2010, a retroatividade prevista – efeitos reportados ao primeiro do mês seguinte ao da entrada em vigor do IRCT estendido - não ultrapassa o grau adequado e necessário à intencionada aproximação de regimes de estatutos laborais dos trabalhadores e das condições de concorrência dos seus empregadores e que esta aproximação é conatural ao próprio instituto da portaria de extensão. Além disso, o aviso do projeto de portaria de extensão – publicado pouco tempo depois da decisão arbitral a estender – já anunciava a intenção de atribuir efeitos retroativos relativamente a algumas das disposições pecuniária contidas na decisão arbitral e relativamente a tal intenção não foi deduzida qualquer oposição por parte dos afetados; bem pelo contrário, a única pronúncia sobre a matéria foi no sentido de alargar a eficácia retroativa a um subsídio – o subsídio de turno – não contemplado no artigo 2.º, n.º 2, do projeto de portaria. Por último, o autor da Portaria n.º 213/2010 não ignorou os possíveis impactes financeiros imediatos da retroatividade, procurando mitigá-los mediante um regime transitório (escalonamento dos pagamentos a realizar, segundo os termos previstos no respetivo artigo 2.º, n.º 3).
Considerando a metódica aplicativa do princípio da confiança – assente na definição rigorosa de requisitos cumulativos a que deve obedecer a situação de confiança, num balanceamento ou ponderação entre os interesses particulares desfavoravelmente afetados pela alteração do quadro normativo que os regula e o interesse público que justifica essa alteração, e outrossim na contenção das soluções impugnadas dentro de limites de razoabilidade e de justa medida (cfr. a síntese de tal metódica feita no Acórdão n.º 128/2009) – é seguro concluir que a norma do artigo 2.º, n.º 2, da Portaria n.º 213/2010, desaplicada pela sentença recorrida, não viola nem a segurança jurídica nem o princípio da tutela da confiança, visto que nenhum dos requisitos necessários à verificação de tal violação se mostra preenchido.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a)Não julgar inconstitucional a norma do artigo 2.º, n.º 2, da Portaria n.º 213/2010, de 15 de abril; e, em consequência,
b) Conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de harmonia com o precedente juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 26 de março de 2014. – Pedro Machete – Ana Guerra Martins - Fernando Vaz Ventura – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.
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[1] Retificado pelo Acórdão nº 313/2014, de 1 de abril