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Processo n.º 139/14
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. foi condenado no 1.º Juízo do Tribunal Criminal da Comarca de Oeiras nas seguintes penas parcelares:
– cinco anos de prisão pela autoria material de um crime de roubo agravado, previsto e punível pelo artigo 210.º n.ºs 1 e 2, alínea b), com referência aos artigos 204.º n.º 1, alínea a) e 202.º, alínea a), do Código Penal;
– dois anos e seis meses de prisão pela autoria material de um crime de extorsão agravada, na forma tentada, dos artigos 223.º n.ºs 1 e 3, alínea a), com referência aos artigos 22.º, 23.º n.º 1, 204.º n.º 2, alínea a), e 202.º, alínea b) do Código Penal;
– dois anos de prisão pela autoria material de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 4, alínea az), e 6.º da Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro.
Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de seis anos de prisão.
O arguido recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por unanimidade, confirmou aquela condenação.
O arguido recorreu desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça.
O Desembargador Relator proferiu despacho de não admissão do recurso.
O arguido reclamou desta decisão para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
O Vice-Presidente deste Tribunal proferiu decisão indeferindo a reclamação.
O arguido recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos:
“O presente recurso funda-se no disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, por inconstitucionalidade material do n.º 1 do art.º 400.º do Código de Processo Penal, ao não consagrar a exceção do recurso no caso de arguição de nulidade de acórdão.
Tal omissão inviabiliza assim ao arguido o uso da plenitude dos direitos de defesa e o uso do direito ao recurso, coartando esse mesmo direito ao não permitir que uma invocada nulidade seja apreciada por Tribunal diferente daquele que alegadamente a cometeu.
Nestes termos se existe uma dupla conforme em termos da apreciação da condenação sofrida, já não existe quanto à apreciação de uma invocada nulidade, onde o Recorrente não tem a possibilidade de a sua questão ser dirimida por tribunal diferente daquele que terá cometido o vício que se pretende ver apreciado, incorrendo assim o n.º 1 do art.º 400º do CPP na violação do disposto no n.º 1 do art.º 32º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que tal artigo poderá consagrar 2 pesos e duas medidas para situações muitas vezes semelhantes e impede que uma questão suscitada possa ser apreciada por tribunal diferente daquele onde se invoca o vicio.”
Foi proferida decisão sumária negando provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação:
“O Recorrente pretende que se aprecie a constitucionalidade do artigo 400.º, n.º 1, f), do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de determinar a irrecorribilidade de acórdão do Tribunal da Relação ao qual seja imputada uma nulidade.
A questão normativa que constitui objeto do presente recurso tem vindo a ser apreciada por este Tribunal, ainda que essa apreciação possa resultar da interpretação de diferentes trechos legais extraídos do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal.
Ainda na vigência de redação anterior à reforma de 2007, o Acórdão n.º 390/2004 (que se encontra disponível in www.tribunalconstitucional.pt.), teve oportunidade de, a propósito da alínea e), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, decidir no seguinte sentido:
«Sendo assim, não decorre forçosamente da garantia constitucional de um duplo grau de jurisdição que haja de ser sempre admissível o recurso para o tribunal superior nos casos em que o tribunal de recurso se pronuncie, pela primeira vez, sobre questões que influam na decisão da causa (ressalvando-se o recurso de constitucionalidade para o órgão jurisdicional específico não enquadrado na hierarquia dos tribunais) ou nos de, ao proferir a decisão, incorrer na violação de lei processual ou procedimental que seja sancionada com o estigma da nulidade.
Nada impõe que se leve a autonomização da questão da nulidade da decisão em relação à questão de fundo tão longe que seja constitucionalmente exigível a existência de um 2º grau de jurisdição especificamente para esta questão, considerando o regime de arguição e conhecimento das nulidades em processo penal por via de recurso, a possibilidade de arguir as nulidades perante o órgão que proferiu a decisão, quando aquele recurso não existir, e, como no presente caso, a existência de duas decisões concordantes em sentido condenatório (o Tribunal da Relação confirmou a decisão da 1ª instância nesse sentido).
É claro que o legislador poderia, na sua discricionariedade legislativa, admitir esse recurso, mesmo nas hipóteses em que o fundamento deste resida na arguição de nulidades processuais, assim ampliando o âmbito material do direito de recurso, mas a sua inadmissibilidade não será constitucionalmente intolerável.
Nesta perspetiva, poder-se-á dizer que, em caso de recurso relativo a decisão condenatória, seja com fundamento em nulidades processuais, seja com fundamento em erros de julgamento atinentes ao fundo da causa, o seu objeto apelante de um terceiro grau de jurisdição será sempre o acórdão condenatório em si próprio. É certo que, quando o fundamento do recurso se consubstancie em uma causa de nulidade do acórdão condenatório, não poderá afirmar-se ter sido exercida a garantia do duplo grau de jurisdição por uma forma definitiva. Mas uma tal situação apenas demanda, numa perspetiva de garantia constitucional do acesso aos tribunais que o recorrente convoca (art.º 20º da CRP), que esse mesmo grau de jurisdição se possa (deva) pronunciar de modo formalmente válido sobre o objeto do recurso. Nesta perspetiva ganha todo o sentido a possibilidade de o tribunal recorrido poder suprir as nulidades e de o tribunal ad quem apenas conhecer delas quando, sendo admissível o recurso, aquele o não tenha feito ou não as haja atendido (art.º 379º, n.º 2, e 414º, n.º 4, do CPP; cf., no domínio do processo civil, o art.º 668º, n.º 3 do Código de Processo Civil). Deste modo, a apreciação de nulidades de acórdão condenatório não postula a necessidade de existência de mais um grau de recurso. A reclamação perante o órgão jurisdicional que exerce o segundo grau de jurisdição configura-se, assim, como um instrumento jurídico adequado de garantir o acesso aos tribunais, na sua dimensão de direito a obter uma decisão formalmente válida, que é a dimensão que o recorrente aqui questiona.
Aliás, admitindo-se a constitucionalidade das normas que preveem a existência apenas de um duplo grau de jurisdição, mesmo quando está em causa a “bondade” do julgamento efetuado, maiores razões existem para não se terem por desconformes com a Lei Fundamental aquelas disposições que limitam o recurso ao mesmo segundo grau de jurisdição em caso de existência de nulidades da decisão, que advêm essencialmente da violação de regras processuais ou procedimentais, quando está aí garantido o direito de reclamação para apreciação dessas nulidades para o órgão jurisdicional que exerceu o último grau de jurisdição.»
E, ainda mais recentemente – já a propósito da redação atual da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal –, o Tribunal Constitucional reiterou idêntico entendimento, através do Acórdão n.º 659/2011, da 2ª Secção, que viria a ser, mais tarde, corroborado pelos Acórdãos n.º 194/2012 e 399/13 (ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Através do referido Acórdão n.º 659/2011, esclareceu-se que:
«Também no caso dos autos, tendo sido assegurado aos arguidos um duplo grau de jurisdição (uma vez que tiveram a possibilidade de, face à mesma imputação penal, defender-se perante dois tribunais: o tribunal de 1.ª instância e o tribunal da Relação), a questão que se coloca é a de saber se, tendo sido arguidas nulidades do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, é inconstitucional limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, por aplicação da regra da dupla conforme, prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal.
(…)
Importa, antes de mais, ter em consideração o regime de arguição e conhecimento das nulidades em processo penal, que garante, mesmo em caso de irrecorribilidade, a possibilidade de serem arguidas nulidades da decisão perante o tribunal que a proferiu (como, aliás, aconteceu no presente caso), tendo este poderes para suprir as eventuais nulidades cuja existência reconheça (cfr. artigos 379.º, n.º 2, e 414.º, n.º 4, do Código de Processo Penal).
Ora, sendo certo, conforme se disse, que o artigo 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental, não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição em relação a quaisquer decisões penais condenatórias, resta verificar se, nos casos em que o Tribunal da Relação profere acórdão em que mantém a decisão condenatória da 1.ª instância e é arguida a nulidade de tal acórdão, se mostra cumprida a garantia constitucional do direito ao recurso, quando exige que o processo penal faculte à pessoa condenada pela prática de um crime a possibilidade de requerer uma reapreciação do objeto do processo por outro tribunal, em regra situado num plano hierarquicamente superior.
Com uma reapreciação jurisdicional, independentemente do seu resultado, revela-se satisfeito esse direito de defesa do arguido, pelo que a decisão do tribunal de recurso já não está abrangida pela exigência de um novo controle jurisdicional. E o facto de, na sequência dessa reapreciação, terem sido arguidas nulidades do acórdão do Tribunal da Relação não constitui motivo para se considerar que estamos perante uma primeira decisão sobre o thema decidendum, relativamente à qual é necessário garantir também o direito ao recurso.
Com efeito, a circunstância de os recorrentes terem arguido nulidades do acórdão do Tribunal da Relação não modifica o objeto do processo uma vez que, tal como a decisão da 1.ª instância, o acórdão do Tribunal da Relação que sobre ela recai limita-se a verificar se o arguido pode ser responsabilizado pela prática do crime que estava acusado e, na hipótese afirmativa, a definir a pena que deve ser aplicada, o que se traduz num reexame da causa.
O Acórdão do Tribunal da Relação constitui, assim, já uma segunda pronúncia sobre o objeto do processo, pelo que não há que assegurar a possibilidade de aceder a mais uma instância de controle, a qual resultaria num duplo recurso, com um terceiro grau de jurisdição.
Por outro lado, existindo sempre a possibilidade de arguir as referidas nulidades perante o tribunal que proferiu a decisão, mesmo quando esta seja irrecorrível, a apreciação de nulidades do acórdão condenatório não implica a necessidade de existência de mais um grau de recurso, tanto mais em situações, como a dos autos, em que existem duas decisões concordantes em sentido condenatório (uma vez que o Tribunal da Relação confirmou a decisão da 1ª instância nesse sentido).
Acresce que, se fosse entendido que a arguição da nulidade de um acórdão proferido em recurso implicaria, sempre e em qualquer caso, com fundamento no direito ao recurso em processo penal, a abertura de nova via de recurso, ter-se-ia de admitir também o recurso do acórdão proferido na terceira instância, com fundamento na sua nulidade, e assim sucessivamente, numa absurda espiral de recursos.
Impõe-se, pois, concluir que não é constitucionalmente censurável, neste caso, a exclusão do terceiro grau de jurisdição e que a interpretação normativa objeto de fiscalização não viola o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.»
Portanto, pelas razões expostas no Acórdão n.º 659/2011, que são inteiramente transponíveis para o presente recurso, deve ser proferida decisão sumária, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal, que julgue não inconstitucional a norma extraída da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de determinar a irrecorribilidade de acórdão do Tribunal da Relação ao qual seja imputada uma nulidade, julgando-se improcedente o recurso.
O Recorrente reclamou desta decisão, expondo as seguintes razões:
“…não podemos, com todo o respeito, discordar do sentido da decisão sumária, não obstante a reprodução pela mesma de jurisprudência anterior no sentido defendido por aquela decisão sumária.
Com efeito, entendemos que para salvaguarda das mais elementares garantias de defesa do arguido, deverá haver sempre um duplo grau de jurisdição.
Ora, se o douto tribunal de 2ª instância (nesta caso o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa) se vem pronunciar sobre uma nova questão, sempre a mesma deverá poder ser apreciada por tribunal diferente, sob pena de violação das mais elementares garantias de defesa do arguido.
Pelo que:
Em conclusão:
a) deve o presente recurso ser apreciado e julgado procedente;
b) e em consequência ser declarada inconstitucional a norma extraída da al. f), do n.º 1, do art.º 400, do Cód. de Processo Penal, quando interpretada no sentido de determinar a irrecorribilidade de acórdão do Tribunal da Relação ao qual seja imputada uma nulidade.”
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
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Fundamentação
As razões que o Recorrente invoca para discordar da decisão sumária reclamada já foram ponderadas no Acórdão n.º 659/2011, para cuja fundamentação aquela decisão remete, pelo que, concordando-se com o julgamento de não inconstitucionalidade aí proferido, deve ser indeferida a reclamação apresentada.
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Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A..
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Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 26 de março de 2014. – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.