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Processo n.º 1197/13
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é reclamante A. e reclamado o Ministério Público a primeira reclamou, ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
2. Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, foi o mesmo rejeitado por extemporaneidade. Interposto recurso desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, o mesmo não foi admitido com fundamento na alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal.
Este despacho de não admissão foi objeto de reclamação para o Supremo Tribunal de Justiça. A reclamante sustentou então, entre o mais, o seguinte:
«A reclamante perfilha o entendimento, em conformidade com o alegado na motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, que o assunto aqui em causa traz à colação a aplicação da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, vigente a partir de 23 de Março de 2013, que veio acabar com a diferença de prazos (20 dias para recursos a versar apenas questões de direito e 30 dias para recursos que impugnassem a matéria de facto), estabelecendo um prazo único de 30 dias, conforme reza o artº. 411º nº 1 do Código de Processo Penal.
A 20ª alteração ao CPP, contida na Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, que entrou em vigor 30 dias depois (art.º4º dessa Lei) ou seja, que se encontrava já em vigor à data da prolação do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, veio resolver definitivamente as questões a que acima se aludiu entre a delimitação das questões de direito e das questões de facto e do modo como essa delimitação se refletia na lei processual penal.
Assim, na redação que o artº 2º da aludida Lei n.º 20/2013 conferiu ao art.º 411º, o prazo para a interposição de recurso é de 30 dias (n.º 1) e, consequentemente, revogou o n.º 4 desse artigo, o que significa que o prazo é o mesmo para o recurso cujo objeto seja a discussão da prova e para o que o não seja, pondo desse modo fim às inúmeras controvérsias.
Procedeu ainda o mesmo art.º 2º identificado no parágrafo anterior à revogação do n.º 3 do artº 412º do CPP, precisamente a norma que fazia a distinção entre matéria de facto e de direito.
A decisão de que se recorre contida no já mencionado acórdão tem a data de 20 de Junho, pelo que nos termos do disposto no art.º 5º do CPP era-lhe aplicável a nova lei, não se justificando assim que a mesma se encontra ainda fundada nas normas expressamente revogadas pela Lei n.º 20/2013.
De facto, o n.º1 deste art.º 5º contém o princípio geral da aplicabilidade da lei processual penal: aplicação imediata. O seu n.º 2 consagra as exceções a este princípio, mas que não são obviamente aplicáveis ao caso em apreço, por interpretação a contrario.
Este é o entendimento firmado na jurisprudência, como pode constatar-se pela leitura do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para fixação de jurisprudência, de 17 de Janeiro de 2013, publicado no DR, 1 série, n.º 33, de 15 de Fevereiro de 2013, do qual transcrevemos o seguinte: Este preceito (referindo-se ao artº 5º do CPP) estabelece a regra tempus regit actum: a lei processual penal é aplicada a todos os atos processuais praticados a partir da sua entrada em vigor, salvaguardando-se os atos até então realizados, os quais mantêm plena validade (só assim não acontecendo em relação às normas processuais penais de natureza substantiva).
É princípio pacificamente admitido que as leis de processo são de aplicação imediata, no tocante aos atos e termos a realizar a partir da data em que a lei nova começou a vigorar.
Este Acórdão, procede a uma enorme inventariação e citação de doutrina e jurisprudência, transcrevendo-se, para ilustração, o que escolheram os Ilustres Conselheiros da obra do Dr. José António Barreiros e do Prof. Figueiredo Dias: José António Barreiros, em Processo Penal, p. p. 207/8, expendeu que se a nova lei estabelecer um regime processual mais gravoso para o arguido, com minimização dos direitos processuais deste, a lei processual anterior, sob vigência da qual o processo conheceu o seu início de tramitação, deverá estender a sua aplicabilidade até ao fim do processamento, pondo-se porém aqui questões paralelas às que em direito substantivo se suscitam quanto a saber qual o regime mais favorável. Para o mesmo Autor, in (Sistema e Estrutura do Processo Penal Português, 1997 1, p. 190, “em matéria de recursos, o problema da lei aplicável à prática dos atos processuais respetivos haverá de encontrar-se em função da regra geral a da lei vigente no momento do ato – e não em função de um critério especiais pelo qual se atenda à lei vigente no momento da interposição do recurso, a qual comandaria inderrogavelmente toda a tramitação do mesmo”. Figueiredo Dias, in Direito Processual Pena i. a edição, 1974, reimpressão 2004, p. 112, expende que o principio jurídico-constitucional da legalidade estende-se, em certo sentido, a toda a repressão penal e abrange, nesta medida, o próprio direito processual penal importando que a aplicação da lei processual penal a atos ou situações que decorrem na sua vigência, mas se ligam a uma infração cometida no domínio da lei processual antiga, não contrarie nunca o conteúdo da garantia conferida pelo principio da legalidade. Daqui resultará que não deve aplicar-se a nova lei processual penal a um ato ou situação processual que ocorra em processo pendente ou derive de um crime cometido no domínio da lei antiga, sempre que da nova lei resulte um agravamento da posição processual do arguido ou, em particular, uma limitação do seu direito de defesa. (Cfr. do mesmo Autor, Direito Penal Português, Das Consequências Jurídicas do Crime, 1993, p. p. 71-72, a propósito da extensão do principio da legalidade ao processo penal). Este é um argumento que interpretado a contrario defende a tese perfilhada pela Recorrente.
Ao não aplicar a nova versão já referenciada, verifica-se uma violação do art.º 5º do Código de Processo Penal e consequentemente uma violação dos princípios da segurança e da confiança jurídicas decorrentes do disposto no artº 2º da Constituição da Republica Portuguesa que consagra a existência de um Estado de Direito – bem como por violação de mais duas disposições constitucionais: art.º 20º, n.º 4 – garantia de um processo equitativo – e n.º 1 do art.º 32º - garantias de defesa dos arguidos.
E a não se ter esta interpretação, ficava desprovido de sentido a revogação do n.º 4 do art.º 411 º e do n.º 2 do art.º 413º, ambos do CPP, a que o art.º 2º da Lei n.º 20/2013 procedeu.
A possibilidade de nem sequer ser apreciada e discutível a aplicação desta nova lei, em virtude de se verificar o previsto na alínea c) do no 1 do artº. 400º do CPP, constitui, conforme referido, uma violação dos princípios da segurança e da confiança jurídicas decorrentes do disposto no artº 2º da Constituição da Republica Portuguesa, por violação de mais duas disposições constitucionais: art.º 20º, n.º 4 – garantia de um processo equitativo – e n.º 1 do art.º 32º - garantias de defesa dos arguidos».
3. Em 19 de setembro de 2013, a reclamação foi indeferida e desta decisão foi interposto o recurso de constitucionalidade, ao abrigo das alíneas b), c) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, mediante requerimento onde se pede a apreciação de norma que a recorrente reportou à alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, bem como a apreciação:
«da não aplicação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, vigente a partir de 23 de março de 2013, que veio acabar com a diferença de prazos (20 dias para recursos a versar apenas questões de direito e 30 dias para recursos que impugnassem a matéria de facto), estabelecendo um prazo único de 30 dias, conforme reza o art.º 411.º n.º 1 do Código de Processo Penal».
4. Em 7 de outubro de 2013, foi proferido despacho a admitir o recurso para o Tribunal Constitucional, «na parte em que se pretende ver apreciada a inconstitucionalidade do art. 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na interpretação normativa que lhe foi dada na decisão de fls. 191 a 196, que indeferiu a reclamação».
5. Na sequência deste despacho, foi apresentada a presente reclamação, onde se lê, para o que agora releva, o seguinte:
«A recorrente não se conformando com o douto acórdão, apresentou recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
O Exmo. Desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa, por douto despacho de fls..., decidiu não admitir o recurso interposto pela arguida, estribando a decisão no preceituado na alínea c) do nº 1 do art. 400º do CPP.
A recorrente inconformada com a douta decisão plasmada no mencionado despacho e pugnando pela admissão do recurso, apresentou, nos termos do preceituado no artº 405º do CPP, reclamação para ser apreciada pelo Ex. mo. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, tendo a mencionada reclamação sido indeferida.
Ainda assim, a ora recorrente apresentou recurso, no Supremo Tribunal de Justiça, para o Tribunal Constitucional, onde foram suscitadas as inconstitucionalidade das seguintes normas: 1) norma constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 400º do CPP (…); 2) da não aplicação da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, vigente a partir de 23 de Março de 2013, que veio acabar com a diferença de prazos (20 dias para recursos a versar apenas questões de direito e 30 dias para recursos que impugnassem a matéria de facto), estabelecendo um prazo único de 30 dias, conforme reza o artº. 411º nº 1 do Código de Processo Penal, verifica-se uma violação do art.º 5º do Código de Processo Penal e consequentemente uma violação dos princípios da segurança e da confiança jurídicas decorrentes do disposto no artº 2º da Constituição da Republica Portuguesa – que consagra a existência de um Estado de Direito – bem como por violação de mais duas disposições constitucionais art.º 20, n.º 4 – garantia de um processo equitativo e n.º 1 do art.º 32º - garantias de defesa dos arguidos.
O Venerando Supremo Tribunal de Justiça, conforme despacho datado de 07 de Outubro de 2013, mas cuja notificação ao Mandatário da arguida ocorreu efetivamente no dia 11 de Outubro de 2013, admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, mas apenas na parte em que se pretende ver apreciada a inconstituciona1idade do artº. 400, nº 1, alínea c) do CPP, na interpretação normativa que lhe foi dada na decisão de fls. 191 a 196, que indeferiu a reclamação.
Assim sendo, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça entendeu excluir da apreciação por parte do Tribunal Constitucional, da inconstitucionalidade aqui referida sob o nº 2 que foi sendo suscitada no decurso do presente processo.
Esta questão de inconstitucionalidade, foi suscitada no recurso dirigido ao Venerando Supremo Tribunal de Justiça e na reclamação apresentada ao Ex.mo. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça».
6. Neste Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação, dizendo o seguinte:
«3. No requerimento de interposição do recurso, a recorrente identifica duas questões de constitucionalidade:
(…)
e
“2. da não aplicação da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, vigente a partir de 23 de Março de 2013, que veio acabar com a diferença de prazos (20 dias para recursos a versar apenas questões de direito e 30 dias para recursos que impugnassem a matéria de facto), estabelecendo um prazo único de 30 dias, conforme reza o art.º 411.º n.º 1 do Código de processo Penal»”.
4. Como o recurso apenas foi expressamente admitido quanto à primeira questão, da não admissão implícita quanto à segunda, foi apresentada a presente reclamação.
5. Como se pode ver pela parte anteriormente transcrita, o afirmado pela recorrente quanto à segunda questão, não traduz a enunciação de uma questão de constitucionalidade normativa passível de constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade.
6. Tendo ocorrido uma alteração legislativa, a recorrente pugna pela aplicação do regime que considera mais favorável.
7. Também demonstrativo dessa falta de normatividade da questão é ainda o afirmado mais à adiante no requerimento:
“Ao não aplicar a nova versão já referenciada, verifica-se uma violação do art.º 5.º do Código de Processo Penal e consequentemente uma violação dos princípios da segurança e da confiança jurídicas decorrentes do disposto no art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa – que consagra a existência de um Estado de Direito – bem como por violação de mais duas disposições constitucionais: art.º 20.º, n.º 4 – garantia de um processo equitativo – e n.º 1 do art.º 32.º - garantias de defesa dos arguidos”.
8. Poderemos ainda acrescentar que na reclamação dirigida ao Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a questão é tratada sensivelmente da mesma forma.
9. Ou seja, “durante o processo “ não foi adequadamente suscitada uma questão de inconstitucionalidade de natureza normativa.
10. Assim, perante a inidoneidade do objeto, tal como foi fixado no requerimento de interposição do recurso, e não tendo sido cumprido o ónus da suscitação prévia e adequada da questão, faltam esses requisitos de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Na presente reclamação questiona-se a não admissão do recurso de constitucionalidade interposto na parte que se refere à «não aplicação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, vigente a partir de 23 de março de 2013, que veio acabar com a diferença de prazos (20 dias para recursos a versar apenas questões de direito e 30 dias para recursos que impugnassem a matéria de facto), estabelecendo um prazo único de 30 dias, conforme reza o art.º 411.º n.º 1 do Código de Processo Penal». E sustenta-se que a inconstitucionalidade foi sendo suscitada no decurso do processo, designadamente «no recurso dirigido ao Venerando Supremo Tribunal de Justiça e na reclamação apresentada ao Ex.mo. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça».
Com efeito, um dos requisitos do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC é a suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade normativa, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida (cf., ainda, o n.º 2 do artigo 72.º da LTC). No caso, perante o tribunal que indeferiu a reclamação do despacho de não admissão do recurso, já que o recurso de constitucionalidade foi interposto da decisão de 19 de setembro de 2013.
É manifesto, porém, que a recorrente não questionou a conformidade constitucional de uma norma quando reclamou para o Supremo Tribunal de Justiça. Por outras palavras: ao tribunal recorrido não foi posta uma qualquer questão de inconstitucionalidade normativa quando se alegou contra a não aplicação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, vigente a partir de 23 de março de 2013, que veio acabar com a diferença de prazos (20 dias para recursos a versar apenas questões de direito e 30 dias para recursos que impugnassem a matéria de facto), estabelecendo um prazo único de 30 dias, conforme reza o art.º 411.º n.º 1 do Código de Processo Penal. O que se questionou, do ponto de vista jurídico-constitucional, por referência aos artigos 2.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, foi tão-só a decisão de não aplicar ao caso a nova redação do artigo 411.º, n.º 1, daquele Código. O que não abre a via do recurso perante o Tribunal Constitucional, uma vez que a este cabe apreciação de normas e não de decisões judiciais.
Diga-se, por último, que só por lapso terão sido convocadas as alíneas c) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC: a decisão recorrida não recusou, de todo, a aplicação de norma constante de ato legislativo, com fundamento em ilegalidade por violação de lei com valor reforçado; e durante o processo não suscitada qualquer questão de ilegalidade com qualquer dos fundamentos referidos nas alínea c), d) e e) do n.º 1 daquele artigo 70.º
Há que indeferir, pois, a reclamação apresentada.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 9 de janeiro de 2014. – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral.