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Processo n.º 574/13
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em Conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Diretor-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, ora recorrente, tendo sido notificado de decisão arbitral que concede provimento ao pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IMI respeitantes aos anos de 2010 e 2011, relativas a dois fundos imobiliários, anulando parcialmente tais liquidações e condenando a administração fiscal ao reembolso dos valores indevidamente liquidados, acrescidos de juros, veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo dos «artigos 70.º, n.º 1, alínea f), 75.º-A e 76.º, n.º 1», da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante designada LTC), bem como do artigo 25.º, n.º 1, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro [RJAT]).
Nas alegações produzidas no âmbito do processo arbitral, veio o recorrente apresentar as seguintes conclusões:
“a) Os benefícios fiscais temporários são apenas os compreendidos na parte III do E.B.F;
b) Não são temporários mas estruturais os benefícios contidos na Parte II desse Estatuto;
c) O prazo referido no art. 3º, nº 1, do E.B.F. é um prazo de caducidade dos benefícios fiscais, não consubstanciando qualquer proibição da sua revogação nos cinco anos posteriores à sua criação;
d) Apenas assim poderia não ser, caso o E.B.F. pudesse ser considerado, nos termos do art. 12°, art.° 3, do E.B.E., uma lei reforçada;
e) O benefício fiscal referido no art. 49º do E.B.F. tem caráter estrutural, como resulta diretamente da sua inclusão na Parte II do E.B.F;
f) Essa qualificação é igualmente aplicável ao regime transitório abrangendo os imóveis integrados em fundos de investimento imobiliário mistos ou fechados de subscrição particular, por investidores qualificados ou por instituições financeiras por conta daqueles, constituídos anteriormente a 1 de novembro de 2006 e que não realizassem aumentos de capital após essa data e, bem assim, aos imóveis integrados em fundos com idênticas características cujas unidades de participação não fossem, à data de 1 de novembro de 2006, detidas exclusivamente por instituições financeiras qualificadas ou por instituições financeiras por conta daqueles, criado pelo art. 88º, alínea j), da Lei n° 53-A/2006;
g) Nessa medida, não é aplicável à revogação do regime transitório, incluindo da taxa reduzida consagrada no art. 49º, nº 2, do E.B.F., o disposto na I parte do art. l1º, nº 1, do E.B.F., pelo que a sua eliminação, efetuada pelo art. 109º da Lei n° 3-B/2010, tem efeitos imediatos;
h) Ainda que assim não fosse, o art. 176º da Lei no 3-B/2010 determina a sua entrada em vigor no dia seguinte da sua aplicação, pelo que se deve entender o legislador ter expressamente pretendido afastar a aplicação do critério aplicável à sucessão de normas sobre benefícios fiscais definido no art. 11º, nº l, I parte, sobrepondo-se-lhe, assim, o referido na 2ª parte dessa norma legal;
i) As liquidações controvertidas foram, assim, corretamente efetuadas, pelo que devem ser integralmente mantidas;
j) Refira-se finalmente o pedido de pronúncia arbitral deduzido pela IMOURBE ser intempestivo por ter sido apresentado, não nos 90 dias posteriores ao termo do prazo de pagamento voluntário da primeira prestação de IMI, mas nos 90 dias posteriores ao termo do prazo de pagamento da segunda prestação.”
2. Foi solicitado ao CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa o envio de certidão da decisão recorrida, tendo esta remissão ocorrido a 16 de julho de 2013. A decisão recorrida conclui da seguinte forma:
“2.38. Os benefícios fiscais temporários são, pois, fonte de direitos adquiridos para os contribuintes que deles beneficiem, pelo meios durante o prazo pelo qual foram inicialmente concedidos, devendo tais contribuintes ficar salvaguardados durante este prazo de normas que alterem ou revoguem os benefícios em questão.
2.39. O artigo 3.º do EBF enuncia, de resto, o mesmo princípio.
2.40. Com efeito, e acompanhado aqui, mais uma vez, Jorge Lopes de Sousa na sua Declaração de Voto de Vencido proferida no âmbito do processo n.º 150/2012 - T, “o n.º 1 do artigo 3º do EBF não assegura que quem se encontre numa situação em que usufrua de benefícios fiscais tenha direito a mantê-los por cinco anos, mas apenas que as normas que os criam vigorarão durante cinco anos, se não dispuserem em contrário (n.º 1). Por isso, se, por exemplo, um contribuinte adquire o direito nº 3º ano de vigência de uma norina, o que lhe assegura o n.º 1 do artigo 3º é que, não havendo disposição em contrário, poderá usufruir do benefício fiscal nessa 3º ano e nos dois subsequentes. Da letra do n.º 1 do artigo 3º resulta que a disposição em contrário que permite o afastamento da vigência de um benefício fiscal durante cinco anos tem de ser a norma que o consagra: a parte final, «salvo quando disponham em contrário», reporta-se às «normas que consagram os benefícios fiscais». Assim, o n.º 1 só admite o afastamento da sua estatuição quando a própria norma que consagra o benefício fiscal dispõe em contrário, estabelecido uma vigência diferente dos cinco anos previsíveis. Aliás, só com uma interpretação deste tipo se satisfaz o desígnio de garantir a previsibilidade quanto à duração dos benefícios fiscais, que legislativamente se pretendeu assegurar. Por seu turno, o n.º 2 assegura que quem adquira um benefício fiscal durante a vigência de uma norma que o consagra mantém o direito a usufruir dele, salvo disposição em contrário. Assim, no exemplo aventado, quem adquira um benefício fiscal no 3.º de vigência da norma que o consagra manterá o direito a usufruir do benefício fiscal até ao previsível termo de vigência da norma, isto é, nesse 3.º ano e nos dois anos subsequentes. Só não se manterá este benefício fiscal se existir «disposição legal e contrário», pois a parte final do n.º 2, estabelecendo que o aí estatuído é prejudicado pela existência de disposição legal em contrário, condiciona a sua estatuição.
2.41. Ou seja, tendo em conta o disposto nos artigos 3º e 11.º do EBF, não bastaria ao legislador da Lei do Orçamento do Estado para 2010 revogar o benefício fiscal aqui em causa, caso pretendesse que este não fosse mal aplicável a contribuintes que então se encontrassem na situação dos Requerentes; exigir-se-lhe-ia mais, a saber, a introdução de uma disposição legal que claramente estabelecesse a inaplicabilidade do disposto no n.º 2 do artigo 3º in fine e no n.º 1, artigo 11.º do in fine EBF à revogação de benefícios fiscais temporários, por ele operada.
2.42. Neste sentido, parece-nos, assim, de todo irrelevante entrar em linha de conta com o valor reforçado ou não reforçado do EBF. É que, através da Lei do Orçamento do Estado para 2010, o legislador não revogou os artigos 3º ou 11.º do EBF; revogou sim parte do benefício fiscal contemplado no artigo 49ºº do EBF.
2.43. Ora, não tendo revogado o n.º2 do artigo 3.º ou o artigo 11.º do EBF, tais normas de aplicação subsidiária sobre aplicação da lei no tempo, não poderão deixar de ser consideradas para aferir dos efeitos da revogação de normas que contemplem benefícios fiscais.
2.44. Como sublinham os Requerentes, o artigo 3.º do EBF (assim como o artigo 11.º do mesmo diploma não pretende, de resto, por qualquer forma, estabelecer que os benefícios fiscais temporários não possam ser revogados; o que resulta daquela disposição legal é simplesmente que, sendo revogados benefícios fiscais temporários, os mesmos continuam a ser aplicáveis até ao termo do prazo pelo qual foram inicialmente previstos (no caso cinco anos), apenas e somente aos sujeitos passivos que Já estivessem a beneficiar dos mesmos.
2.45. Ou seja, o legislador ordinário pode - a todo o tempo e cumprindo os ditames constitucionais — revogar benefícios fiscais temporários. Se assim proceder, tal revogação, contudo, não produzirá efeitos imediatos na esfera dos sujeitos passivos que Já se encontrem a aproveitar de tais benefícios, a não ser que assim seja expressamente previsto pelo legislador aquando da sua revogação.
2.46. Perante as conclusões supra alcançadas, entendemos, assim, que:
-Tendo os Requerentes beneficiado legalmente, até ao final do ano de 2009, da redução da taxa de IMI prevista no artigo 49.º, n.º 2, do EBF, na redação dada pela Lei n.º53-A/2006, de 29 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para o ano de 2007;
- Tendo tal redução de taxa sido revogada aos fundos de investimento imobiliários fechados, detidos por ¡investidores não qualificados, com a entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado para 2010, sem que tenha sido ¡introduzida qualquer norma transitória especifica, o não reconhecimento aos Requerentes, nos anos de 2010 e 2011, do direito ao referido benefício fiscal, até então contemplado no artigo 49.º, n.º 2 do EBF, viola os n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º do EBF, bem como o artigo 11.º do mesmo diploma.
2.47 Esta conclusão prejudica a apreciação do pedido subsidiário de violação dos princípios constitucionais da confiança, da proteção e da segurança jurídica, apresentado pelos recorrentes.”
3. Por seu lado, o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional apresenta as seguintes conclusões:
“A) A decisão arbitral recorrida, na medida em que a interpretação a que procedeu do teor do art. 3°, nº 1 do E.B.F. apenas seria juridicamente possível caso esta norma legal fosse considerada lei reforçada, violou o art. 115°, n° 2, da C.R.P., de acordo com o qual, apenas têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que carecem de aprovação da maioria de dois terços bem como aquelas que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas.
B) A decisão recorrida, ao recusar a aplicação de norma do Orçamento de Estado que procedeu à revogação de um concreto benefício fiscal, quando, de acordo com os critérios prescritos no art 7° do C.C., essa revogação produzia legalmente efeitos a partir de 1 de janeiro do exercício a que esse Orçamento de Estado respeita, violou o princípio da anualidade do Orçamento de Estado previsto no art. 106º, nº 1, da C.R.P.
C) A inconstitucionalidade da interpretação dos preceitos legais a que procedeu a decisão arbitral recorrida foi invocada nos arts. 65° a 95° das alegações apresentadas pela A.T, e nos arts.19° e seguintes da pronúncia da A.T. sobre Voto de Vencido proferido noutro processo arbitral que, entretanto, os Fundos entenderam juntar aos autos.
D) O presente recurso é apresentado e dirigido ao Tribunal Constitucional dado o Tribunal Arbitral, por imperativo do art. 25° do RJAT, já se encontrar dissolvido, solicitando-se, no entanto, que, caso o Tribunal Constitucional conclua que, no obstante a anterior dissolução, cabe ao Juiz Arbitral do Tribunal dissolvido decidir sobre a sua admissão, que o envie pare esse efeito ao Tribunal Arbitral.”
4. Pela Decisão Sumária n.º 535/2013 decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto, com a seguinte fundamentação:
“4. O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, nos termos da qual, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisão que aplique i) norma constante de ato legislativo, cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com fundamento na violação de lei com valor reforçado, ii) norma constante de diploma regional, cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com fundamento na violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República, e iii) norma emanada de um órgão de soberania, cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com fundamento na violação do estatuto de uma região autónoma.
5. Prima facie, o presente recurso suscita questões relativamente a um dos requisitos de admissibilidade: a não invocação prévia da ilegalidade da norma em causa.
6. De acordo com a alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo. Suscitação que há de ter ocorrido de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, pela parte que agora vem interpor o recurso (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Ora, independentemente da falta de verificação de outros requisitos, relativamente à “norma” cuja apreciação é requerida pelo recorrente, não pode dar-se como verificado o requisito objetivo de suscitação prévia nos presentes autos.
Com efeito, nas alegações produzidas no âmbito do processo arbitral o recorrente não suscitou qualquer questão de ilegalidade por violação de lei de valor reforçado, estatuto da região autónoma ou de lei geral da República.
O recorrente limita-se a alegar que uma interpretação diferente da defendida por si apenas faria sentido «caso o EBF pudesse ser considerado, nos termos do artigo 112.º, n.º 3, [da Constituição] uma lei reforçada» (cfr. conclusão d)) [nas alegações, certamente por lapso, refere-se ao artigo 112.º, n.º 3, do EBF]. Esta argumentação não consubstancia a alegação de ilegalidade de uma norma por violação de lei de valor reforçado. O recorrente apenas procede à defesa de uma determinada solução interpretativa, independentemente de um juízo sobre o desvalor da norma em questão. Aliás, defende-se a não qualificação da lei em causa como de valor reforçado, pelo que, dentro da lógica argumentativa do recorrente, não se poderia verificar qualquer ilegalidade por esta via.”
5. Vem agora o recorrente reclamar daquela decisão (fls. 164 ss.), apresentando as seguintes conclusões:
“a) A A.T. recorreu com um duplo fundamento de inconstitucionalidade da interpretação a que a decisão arbitral recorrida procedeu do art. 3º, nº 2, do E.B.F. e da própria norma revogatória de um benefício fiscal;
b) Tal inconstitucionalidade da interpretação do art. 3º, nº 2, do E.B.F. foi invocada no processo arbitral;
c) Não invocou qualquer questão de ilegalidade por violação de norma de carácter reforçado;
d) É à luz dos fundamentos do recurso, como vêm expressos nas conclusões, que deve ser apreciada a sua admissibilidade.
e) Deve, assim, ser concedido provimento à presente reclamação.”
6. Notificados, os reclamados apresentaram resposta, manifestando a sua concordância com a decisão reclamada e pronunciando-se pelo indeferimento da reclamação.
Cumpre decidir.
II – Fundamentação
7. Nos presentes autos foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objeto do recurso, por não cumprimento dos pressupostos constantes da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
8. A presente reclamação apresenta a seguinte motivação:
Reconhece-se que «o recorrente não suscitou, na verdade, qualquer questão prévia de ilegalidade por violação de lei de valor reforçado» (cfr. artigo 4.º da reclamação, fls. 164-165);
O reclamante sustenta que «resulta directamente do requerimento em causa» que «está em causa (…) a constitucionalidade da interpretação do artigo 3.º, n.º 1, do EBF, como norma de valor reforçado» (cfr. artigos 9.º e 10.º da reclamação, fls. 165);
E que existiria uma «segunda inconstitucionalidade (…) que seria a violação do princípio da anualidade do Orçamento de Estado» (cfr. artigo 14.º da reclamação, fls. 166).
Cumpre apreciar.
9. O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, facto que é reconhecido pela reclamação sob apreciação (cfr. artigo 1.º da reclamação, fls. 164). Ora, não podem restar dúvidas de que os recursos interpostos ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, devem dizer respeito a decisão que aplique i) norma constante de ato legislativo, cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com fundamento na violação de lei com valor reforçado, ii) norma constante de diploma regional, cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com fundamento na violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República, e iii) norma emanada de um órgão de soberania, cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com fundamento na violação do estatuto de uma região autónoma. O reclamante reconhece que o presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC e que, na verdade, não incide sobre qualquer destas matérias (cfr. artigos 4.º e 8.º e conclusão c) da reclamação, fls. 164-165).
A jurisprudência do Tribunal Constitucional adopta um entendimento rigoroso relativamente à necessidade de indicação correta da alínea do n.º 1 do artigo 70.º da LTC ao abrigo da qual o recurso é interposto. Esta indicação define irreversivelmente o tipo de recurso em causa, não sendo admissível qualquer alteração subsequente ou a convolação do tipo de recurso (cfr., a mero título de exemplo, os Acórdãos n.º 77/2000, n.º 248/2002, n.º 468/2003, n.º 533/2005, n.º 193/2007 e n.º 420/2008, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Note-se que o reclamante não alega nenhum erro da sua parte, antes alegando que «é à luz dos fundamentos do recurso, como vêm expressos nas conclusões, que deve ser apreciada a sua admissibilidade» (cfr. alínea d) das conclusões da reclamação, fls. 167 dos autos).
10. Independentemente da apreciação da questão em causa e ainda que o presente recurso viesse interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, como deveria ter sido, ou seja, se o recurso para o Tribunal Constitucional incidisse sobre decisão que aplica norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, existem outros requisitos de admissibilidade que se deveriam encontrar preenchidos e que justificam o não conhecimento do recurso. Existem questões relativas à ausência de objeto normativo e à não efetiva aplicação da norma alegada como inconstitucional.
11. Começando por apreciar o pedido de apreciação da inconstitucionalidade da decisão com base numa alegada «violação do princípio da anualidade do Orçamento de Estado» (cfr. artigo 14.º da reclamação, fls. 166), verifica-se que é impossível o seu conhecimento por ausência de objeto normativo.
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, o controlo exercido pelo Tribunal Constitucional tem natureza estritamente normativa, não contemplando a apreciação da conformidade constitucional da decisão judicialmente proferida. O recurso de constitucionalidade delineado pela Constituição não prevê o «recurso de amparo» ou «queixa constitucional».
Em conformidade, os recursos de constitucionalidade interpostos de decisões de outros tribunais apenas podem ter por objeto «interpretações» ou «critérios normativos» identificados com caráter de generalidade, e nessa medida suscetíveis de aplicação a outras situações, independentemente, pois, das particularidades do caso concreto. A respetiva admissibilidade depende, assim, da identificação da interpretação ou critério normativos - uma regra abstratamente enunciável vocacionada para uma aplicação para lá do caso concreto – cuja desconformidade constitucional se suscita.
Ora tal não ocorre no presente recurso. O reclamante pretende que o Tribunal Constitucional sindique a constitucionalidade da própria decisão do tribunal recorrido e não a norma por este aplicada. É por isso que faz apelo, direta e claramente, ao facto de «A decisão recorrida, ao recusar a aplicação de norma do Orçamento de Estado que procedeu à revogação de um concreto benefício fiscal, quando, de acordo com os critérios prescritos no art 7° do C.C., essa revogação produzia legalmente efeitos a partir de 1 de janeiro do exercício a que esse Orçamento de Estado respeita, violou o princípio da anualidade do Orçamento de Estado previsto no art. 106º, nº 1, da C.R.P.» (cfr. a alínea b) das conclusões, fls. 53, sublinhados nossos) e «a violação do princípio da anualidade da decisão recorrida» (cfr. artigo 14.º da reclamação, fls. 166).
Pretende, assim, o reclamante que se sindique o próprio ato de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, não apresentando uma formulação da questão de constitucionalidade a apreciar com grau de generalidade e abstração inerentes a uma interpretação normativa independente do circunstancialismo estrito dos factos do caso concreto. Ora ao Tribunal Constitucional apenas cabe a apreciação de conformidade constitucional de normas ou critérios normativos, não de decisões proferidas por outros tribunais. O recurso não apresenta no seu objeto as características de “normatividade” indispensáveis à realização de um controlo de constitucionalidade.
12. Apreciando de seguida o pedido de fiscalização da constitucionalidade «da interpretação do artigo 3.º, n.º 1, do EBF, como norma de valor reforçado» (cfr. artigo 10.º da reclamação, fls. 165), verifica-se que é igualmente impossível o seu conhecimento por a norma arguida como inconstitucional não ter sido efetivamente aplicada pelo tribunal recorrido.
O objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição da Republica Portuguesa e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, apenas pode traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) de que a decisão recorrida haja feito efetiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e incidental) deste recurso, tal como o mesmo se encontra recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da natureza da própria função jurisdicional constitucional.
Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade deverá, efetivamente, refletir-se na decisão recorrida, implicando a sua reforma, no caso de o recurso obter provimento, o que apenas sucede quando a norma cuja constitucionalidade o Tribunal Constitucional aprecie haja constituído a ratio decidendi da decisão recorrida, ou seja, o fundamento normativo do aí decidido.
Ora, no caso dos autos, o recorrente alegou que a interpretação que a decisão arbitral teria feito do artigo 3.º, n.º 1, do EBF apenas teria sentido se o EBF «pudesse ser considerado, à luz da Constituição, uma lei reforçada» (cfr. artigo 5.º da reclamação, fls. 165).
Acontece, porém, que esta interpretação não teve lugar. A decisão arbitral expressamente refere que (fls. 93 verso-94):
“2.41. Ou seja, tendo em conta o disposto nos artigos 3º e 11.º do EBF, não bastaria ao legislador da Lei do Orçamento do Estado para 2010 revogar o benefício fiscal aqui em causa, caso pretendesse que este não fosse mal aplicável a contribuintes que então se encontrassem na situação dos Requerentes; exigir-se-lhe-ia mais, a saber, a introdução de uma disposição legal que claramente estabelecesse a inaplicabilidade do disposto no n.º 2 do artigo 3º in fine e no n.º 1, artigo 11.º do in fine EBF à revogação de benefícios fiscais temporários, por ele operada.
2.42. Neste sentido, parece-nos, assim, de todo irrelevante entrar em linha de conta com o valor reforçado ou não reforçado do EBF. É que, através da Lei do Orçamento do Estado para 2010, o legislador não revogou os artigos 3º ou 11.º do EBF; revogou sim parte do benefício fiscal contemplado no artigo 49ºº do EBF.
2.43. Ora, não tendo revogado o n.º2 do artigo 3.º ou o artigo 11.º do EBF, tais normas de aplicação subsidiária sobre aplicação da lei no tempo, não poderão deixar de ser consideradas para aferir dos efeitos da revogação de normas que contemplem benefícios fiscais.
2.44. Como sublinham os Requerentes, o artigo 3.º do EBF (assim como o artigo 11.º do mesmo diploma não pretende, de resto, por qualquer forma, estabelecer que os benefícios fiscais temporários não possam ser revogados; o que resulta daquela disposição legal é simplesmente que, sendo revogados benefícios fiscais temporários, os mesmos continuam a ser aplicáveis até ao termo do prazo pelo qual foram inicialmente previstos (no caso cinco anos), apenas e somente aos sujeitos passivos que Já estivessem a beneficiar dos mesmos.
2.45. Ou seja, o legislador ordinário pode - a todo o tempo e cumprindo os ditames constitucionais — revogar benefícios fiscais temporários. Se assim proceder, tal revogação, contudo, não produzirá efeitos imediatos na esfera dos sujeitos passivos que Já se encontrem a aproveitar de tais benefícios, a não ser que assim seja expressamente previsto pelo legislador aquando da sua revogação.”
Importa notar que, conforme resulta da decisão recorrida supra transcrita, o tribunal recorrido não aplicou, efetivamente, o preceito referido na interpretação que o recorrente agora pretende reputar de inconstitucional. Não só a decisão não considera o EBF como uma lei de valor reforçado como afirma expressamente que «é irrelevante (…) o valor reforçado ou não reforçado do EBF» (cfr. 2.42. da decisão, fls. 94). A constitucionalidade da eventual norma interpretativamente construída pelo reclamante, no âmbito da sua estratégia processual, não é invocável perante o Tribunal Constitucional – apenas a norma efetivamente aplicada pelo tribunal recorrido.
A interpretação invocada pelo reclamante não teve, pois, lugar, não se cumprindo este requisito legal para a admissão do recurso.
14. Conclui-se, assim, que mesmo que se considere o recurso em causa interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, como alega o reclamante, verifica-se a ausência de objecto normativo e a não aplicação da norma arguida como inconstitucional pelo tribunal recorrido. Assim, pela falta do preenchimento destes requisitos processuais, não seria possível conhecer do recurso.
III. Decisão
15. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, não conhecer do objeto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 9 de janeiro de 2014. – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes – Maria Lúcia Amaral.