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Processo n.º 1170/2013
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. A., S.A., ora reclamante, deduziu oposição à execução fiscal instaurada contra a “Sucursal em Portugal da A., SA” por dívidas de IVA exigidas à oponente. Por sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto viria a oponente, ora reclamante, a ser declarada parte ilegítima e julgada extinta a execução fiscal.
Interposto recurso pela Fazenda Pública para o Supremo Tribunal Administrativo, viria aquela decisão a ser revogada e ordenada a baixa do processo à primeira instância a fim de ser apreciada a questão suscitada pela oponente. Em cumprimento do referido acórdão foi proferida nova sentença que julgou totalmente improcedente a oposição judicial.
Inconformada, a oponente, ora reclamante, deduziu recurso jurisdicional ao qual, por acórdão proferido em 28 de fevereiro de 2013, pelo Tribunal Central Administrativo Norte, foi negado provimento, e confirmada a decisão recorrida.
2. Por ainda inconformada, veio então a reclamante interpor recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, doravante designada por LTC).
Pretendia submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a norma do «artigo 39.º, n.ºs 5 e 6 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de outubro» por considerar que «a interpretação que o Tribunal Central Administrativo fez da norma em apreço, no douto Acórdão proferido no dia 28 de fevereiro de 2013 no processo (…) viola a exigência constitucional de notificação aos administrados de todos os atos que afetem direitos ou interesses legalmente protegidos, consagrada no artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República, na medida em que acaba por julgar verificada a presunção de notificação, estabelecida no referido artigo 39.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, independentemente do cumprimento dos requisitos legais estabelecidos na lei, violando, em consequência, o direito à tutela jurisdicional efetiva dos cidadãos e o direito de reação contenciosa de tais atos, previstos no n.º 4 do mesmo artigo 268.º da Constituição da República».
3. Pela Decisão Sumária n.º 705/2013 (cfr. fls. 385-388) decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto, com a seguinte fundamentação:
“4. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, o controlo exercido pelo Tribunal Constitucional tem natureza estritamente normativa, não contemplando a apreciação da conformidade constitucional da decisão judicialmente proferida. O recurso de constitucionalidade delineado pela Constituição não prevê o «recurso de amparo» ou «queixa constitucional».
Em conformidade, os recursos de constitucionalidade interpostos de decisões de outros tribunais apenas podem ter por objeto «interpretações» ou «critérios normativos» identificados com caráter de generalidade, e nessa medida suscetíveis de aplicação a outras situações, independentemente, pois, das particularidades do caso concreto. A respetiva admissibilidade depende, assim, da identificação da interpretação ou critério normativos - uma regra abstratamente enunciável vocacionada para uma aplicação para lá do caso concreto – cuja desconformidade constitucional se suscita.
5. Ora tal não ocorre no presente recurso o que inviabiliza o seu conhecimento. Com efeito o que o recorrente pretende é que o Tribunal Constitucional sindique a constitucionalidade da própria decisão do tribunal recorrido e não qualquer norma, por este, aplicada. O apelo feito, no requerimento de aperfeiçoamento do recurso, à interpretação feita pelo tribunal recorrido a determinados preceitos legais do Código de Procedimento e de Processo Tributário - sem nunca se identificar qual o sentido normativo extraído dos referidos preceitos legais que se questiona - evidencia a ausência de generalidade e abstração de qualquer questão de inconstitucionalidade.
Ao Tribunal Constitucional apenas cabe a apreciação de conformidade constitucional de normas ou critérios normativos, não de decisões proferidas por outros tribunais. O recurso não apresenta no seu objeto as características de “normatividade” indispensáveis à realização de um controlo de constitucionalidade. Assim, na falta do preenchimento do requisito processual em causa, não é possível conhecer do recurso.”
4. Vem agora reclamar daquela decisão (cfr. fls. 392-408), apresentando as seguintes conclusões:
“I. Desde a revisão de 1982, a Constituição da República Portuguesa inclui entre os direitos e garantias dos administrados o direito à notificação dos atos administrativos.
II. A este direito fundamental dos sujeitos de direito enquanto administrados corresponde o dever da Administração de dar conhecimento aos interessados, mediante uma comunicação oficial e formal, das decisões que os afetem.
III. Entre outras funções, a notificação desempenha um papel de garantia ou processual, na medida em que, só após a notificação, pode o ato ser oponível e iniciar-se o decurso do prazo de impugnação. O direito à notificação dos atos administrativos apresenta, assim, uma estreita conexão com o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.
IV. Para além do referido, ato jurídico, intencional e individual, a notificação tem de ser formal.
V. Faltando a indicação da prática de um ato, bem como todos os seus elementos, e não se entrevendo a satisfação de algumas das funções da notificação, o douto Acórdão recorrido, ao entender que uma atuação administrativa em que não existe intenção de comunicar de forma autónoma e individualizada, em que não há expressa indicação de que foi emitido um ato - e, claro, em que não há indicação dos seus sentido, autor, data, meios de defesa e prazos.
VI. Procede a uma interpretação das normas que viola o direito fundamental dos administrados à notificação dos atos administrativos e o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, consagrados no n.º 3 e no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa.
VII. Violou os supra referidos direitos constitucionalmente garantidos o Acórdão do TCA - Norte na interpretação que foi efetuada aos n.os 5 e 6 do artigo 39.º do CPPT.
Isto porque,
VIII. A presunção de notificação estabelecida no artigo 39.º do CPPT viola o direito à tutela judicial efetiva e o direito de reação contenciosa de tais atos, previstos no n.º 4 do artigo 268.º da CRP, porquanto não permitem a efetiva notificação dos atos e, consequente, possibilidade de reação contenciosa (efetiva) de tais atos.
IX. Assim, a conduta administrativa não poderá ser qualificada como notificação se não apresentar natureza receptícia, o que sucederá quando o modo da pretensa notificação não for de natureza a assegurar a cognoscibilidade do ato por parte do notificado. Na lição de PIERRE MOOR, à notificação preside o princípio da receção: o ato administrativo notificando não pode - em Estado de Direito - produzir efeitos relativamente àquele cuja situação jurídica por ele é afetada sem que este tenha sido colocado numa posição em que apenas depende de si próprio dele tomar conhecimento (Droit Administratif, II, p. 302.). No mesmo sentido, vide douto Acórdão 383/05 do Tribunal Constitucional.
Mais ainda,
X. A presunção de notificação aos administrados dos atos que lhes afetam o direito impugnatório viola, igualmente, o princípio da primazia do Direito da União Europeia, nos termos do artigo 8.º da CRP.
XI. De facto, a presunção de notificação consagrada no n.º 5 do artigo 39.ºdo CPPT não pode situar o contribuinte não residente numa posição de desvantagem no que diz respeito ao residente sob pena de violar o princípio de não discriminação e a liberdade de estabelecimento. E isso é o que sucedeu nos autos do recurso 1707/05.1BEPRT ao confirmar que a presunção de notificação do n.º 5 do artigo 39.º do CPPT é aplicável ao não residente que incumpre o disposto no artigo 43.º do CPPT e/ou artigo 19.º, n.º 4 da LGT independentemente do cumprimento de todas as exigências formais pela Autoridade Tributária, nos termos do artigo 39.º, n.º 5 do CPPT.
XII. Por fim, note-se que havendo dúvidas quanto à concreta especificação dos critérios normativos em causa, dever-se-ia de proceder à notificação da Recorrente para aperfeiçoamento do seu Recurso, conforme referido, entre outros, no Processo n.º 769/12 (Acórdão n.º 398/2013): “Após ter sido notificado para corrigir o requerimento de interposição de recurso inicialmente apresentado por o mesmo não especificar quais as concretas interpretações sustentadas pela decisão recorrida.”
TERMOS EM QUE DEVE A CONFERÊNCIA ACORDAR NA REVOGAÇÃO DA DECISÃO SUMÁRIA, ORA RECLAMADA, E ORDENAR, EM CONSEQUÊNCIA, A ULTERIOR TRAMITAÇÃO DOS PRESENTES AUTOS EM CONFORMIDADE COM A LEI.
Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA”.
5. Notificado, o reclamado apresentou resposta (cfr. fls. 418-420) no sentido de concordância com a Decisão sumária reclamada e rejeição dos argumentos do reclamante.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
6. Nos presentes autos foi proferida a Decisão Sumária n.º 705/2013 (cfr. fls. 385-388) de não conhecimento do objeto do recurso, por não cumprimento dos pressupostos constantes da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, em especial, por falta de objeto normativo.
7. A presente reclamação apresenta como motivação a reafirmação da posição do reclamante de que a interpretação adotada pelo tribunal recorrido é inconstitucional por violação do direito fundamental «à notificação dos atos administrativos» e do «direito fundamental à tutela judicial efetiva» e conclui que «Havendo dúvidas quanto à correta especificação dos critérios normativos em causa, dever-se-ia proceder à notificação da Recorrente para o aperfeiçoamento do seu recurso» - citando a este propósito o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 398/2013.
8. A argumentação expendida na reclamação não justifica, no entanto, a revogação da Decisão Sumária n.º 705/2013.
De facto, no âmbito da presente reclamação não cabe discutir a questão de fundo, da alegada inconstitucionalidade da norma resultante da interpretação do tribunal a quo, mas sim a correção da Decisão Sumária emitida. Assim, a argumentação relativa ao fundo da questão – à alegada inconstitucionalidade da suposta norma – não pode ser considerada relevante neste âmbito. O mesmo se diga relativamente à invocação da violação do «princípio da primazia do Direito da União Europeia, nos termos do artigo 8.º CRP». Aliás, em relação a este último aspeto, refira-se apenas complementarmente que, conforme jurisprudência consolidada, o Tribunal Constitucional não tem competência para conhecer de questões relativas à forma como os tribunais nacionais aplicam o Direito da União Europeia (cfr., por todos, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 6/2012, disponível em www.tribconstitucional.pt). Também não pode ser considerada no âmbito do presente recurso a argumentação expendida relativamente à construção de outras alegadas “normas”, extraídas do artigo 39.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), que não resultem alegadas no requerimento de interposição do recurso.
A reclamação assenta, no que é, assim, relevante, na defesa de que se trataria, de facto, da alegação da inconstitucionalidade de uma norma, por um lado, e, por outro lado, que existindo dúvidas sobre a formulação da norma no requerimento de interposição do recurso de inconstitucionalidade, o recorrente, ora reclamante, deveria ter sido convidado a aperfeiçoar o seu requerimento.
9. A Decisão Sumária n.º 705/2013 concluiu que o recurso em causa não apresentava «no seu objeto as características de “normatividade” indispensáveis à realização de um controlo de constitucionalidade». O motivo para assim concluir resulta do facto de no requerimento de recurso (na Decisão faz-se referência a um «requerimento de aperfeiçoamento do recurso» - o que representa um lapso manifesto), se fazer apelo «à interpretação feita pelo tribunal recorrido a determinados preceitos legais do Código de Procedimento e de Processo Tributário - sem nunca se identificar qual o sentido normativo extraído dos referidos preceitos legais que se questiona – [o que] evidencia a ausência de generalidade e abstração de qualquer questão de inconstitucionalidade». Ou seja, o requerimento de recurso tenta formular uma norma, mas a formulação resulta de tal forma imbrincada com os factos concretos em discussão nos autos recorridos que é incompreensível fora do seu contexto, não logrando alcançar uma natureza normativa.
Relembre-se que, nesse requerimento, a suposta norma é formulada da seguinte forma: «a interpretação que o Tribunal Central Administrativo fez da norma em apreço, no douto Acórdão proferido no dia 28 de fevereiro de 2013 no processo (…), na medida em que acaba por julgar verificada a presunção de notificação, estabelecida no referido artigo 39.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, independentemente do cumprimento dos requisitos legais estabelecidos na lei» (fls. 375-376). Resulta desta formulação evidente que o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional sindique o próprio ato de julgamento – a verificação da presunção de notificação pelo tribunal a quo –, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, não apresentando uma formulação da questão de constitucionalidade a apreciar com grau de generalidade e abstração inerentes a uma interpretação normativa independente do circunstancialismo estrito dos factos do caso concreto.
Nenhum dos argumentos aduzidos na reclamação apresentada demonstra o contrário. De facto, concentram-se na apreciação do mérito da questão substantiva colocada no recurso ou na tentativa de construção de outras alegadas normas extraíveis do artigo 39.º do CPPT, quando o que se julga na presente reclamação é o mérito da Decisão Sumária n.º 705/2013.
10. Improcede igualmente a questão da ausência de convite ao aperfeiçoamento do requerimento de recurso. Resulta da LTC que quando o requerimento de interposição de recurso não indicar a alínea do n.º 1 do artigo 70.º ao abrigo da qual é interposto ou, no caso de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, como é o caso, faltar a indicação da norma ou princípio constitucional que se considera violado, bem como da peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade, o Juiz relator pode convidar o requerente a prestar essa indicação (artigos 75.º-A, n.os 1, 2, 5 e 6, e 78.º-A, n.os 1 e 2, da LTC). Pelo contrário, não o deve fazer quando a falta é insuprível, o que sucede no caso, por o recurso ter objeto inidóneo.
11. Não foram, pois, alegados motivos válidos para revogar a Decisão Sumária n.º 705/2013.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, não conhecer do objeto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 28 de março de 2014. – Maria de Fátima Mata-Mouros – João Caupers – Maria Lúcia Amaral.