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Processo n.º 1233/13
3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que são recorrentes A., B., C., Lda. e recorrido o Ministério Público, o primeiro recorrente vem reclamar para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da Decisão Sumária n.º 121/2014 que não conheceu do objeto do recurso interposto pelo ora reclamante.
2. O teor da fundamentação da Decisão Sumária n.º 121/2014 é o seguinte, no que respeita ao ora reclamante:
“6. No que toca ao recurso interposto por A., ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70.º da LTC, é patente que o mesmo não tem como objeto uma norma ou interpretação normativa que possa constituir objeto idóneo de um recurso de constitucionalidade.
A forma como o recorrente formula o objeto do recurso é relevadora de que este pretende verdadeiramente questionar a decisão concreta do tribunal a quo. Mesmo após convite para indicar a norma que pretendia ver sindicada, o recorrente continua a não lograr definir normas ou interpretações normativas suscetíveis de aplicação generalizada a um número indeterminado de casos. O que ele expõe é, na verdade, todos os circunstancialismos que moldaram o seu caso concreto, demonstrando assim que pretende na verdade contestar a própria decisão recorrida, imputando de “inconstitucionais” as normas que esta aplicou.
6.1. Em primeiro lugar, imputa de “inconstitucional” a conjugação dos artigos 125.º, 126, n.º 3, 127.º, e 122 e 374.º, n.º 2 do CPP, interpretados no sentido de que «pode ser valorada em sede de Acórdão final um depoimento prestado em audiência que incida, ainda que parcialmente, sobre prova proibida, sem que se encontre devidamente fundamentado que os mesmos não se encontram «contaminados» por tal prova proibida». Pretende o recorrente, com esta formulação, que o Tribunal Constitucional sindique o uso de determinado meio de prova para fundar a sua convicção, por supostamente, não se demonstrar que o uso do mesmo se «encontra devidamente fundamentado». Ora, não incumbe ao Tribunal Constitucional avaliar da suficiência de fundamentação de uso de meios de prova que servem de base às decisões recorridas, questão que é de índole puramente infraconstitucional.
Para além disso, a interpretação que o recorrido imputa à decisão recorrida não consta em lado algum da mesma: o Tribunal da Relação em momento algum considerou ser válido um depoimento prestado em audiência que incida, ainda que parcialmente, sobre prova proibida, sem que se encontre devidamente fundamentado que os mesmos não se encontram “contaminados” por tal prova proibida. Na verdade, esta é uma afirmação que só o recorrente produz e que não encontra paralelo no texto do aresto recorrido. O mesmo é dizer, pois, que tal interpretação não constituiu, também, ratio decidendi da decisão recorrida. Também por aqui, pois, soçobraria a pretensão do recorrente.
6.2. Invoca o recorrente ainda a inconstitucionalidade das normas contidas nos art.ºs 2º e 3º da Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto, interpretadas no sentido de que «devem ser considerados validamente autorizados os meios ocultos de investigação (ações encobertas) através de despacho que se funda numa descrição e análise de factos concretos que posteriormente são dados como não provados e que, por sua vez, suportaram a suspeita fundada da prática de crimes do catálogo que admitem o recurso a esses meios, e a ponderação da necessidade de utilização desses meios e da sua proporcionalidade à gravidade concreta do crime a investigar». Neste ponto, há que esclarecer que, se o recorrente pretendia sindicar a constitucionalidade de determinada interpretação normativa, tinha o ónus de enunciar, de forma clara e percetível, o exato sentido normativo do preceito que considera inconstitucional. Como se disse, por exemplo, no Acórdão nº 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.) “tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e percetível (cfr., entre outros, o Acórdão nº 269/94, Diário da República, II Série, de 18 de junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adotado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”. Ora, como decorre dos termos em que o recorrente formula a questão de inconstitucionalidade, no supra transcrito requerimento de interposição de recurso, esse ónus claramente não foi cumprido. O recorrente não logra enunciar de forma compreensível a norma e o sentido normativo cuja inconstitucionalidade pretende ver sindicada, sem prescindir de moldar o mesmo com várias referências ao caso concreto. Mas acima de tudo o que demonstra é que, e mais uma vez, o que pretende sindicar, como bem demonstra da formulação do objeto do recurso, é, não as normas invocadas, mas sim a validade em si do despacho concreto e irrepetível que, naquele caso concreto, autorizou os meios de investigação em causa.
6.3. Imputa o recorrente também de inconstitucional a alínea c) do n.º 1 do art.º 256.º CP, na redação anterior à Lei 59/2007, «interpretada no sentido de que poderá haver condenação sem que resulte provado o facto de o documento não ter sido falsificado pelo próprio arguido», a conjugação dos artigos 373.º, n.º 1 e 386.º, n.º 1, al. b) do CP, interpretados no sentido de que «comete um crime de corrupção passiva o funcionário que, no decurso de um período em que presta serviços de consultoria a uma empresa e é remunerado para o efeito, avisa o gerente dessa mesma empresa de uma fiscalização, sem que fique cabalmente demonstrado um nexo causal entre os pagamentos e os avisos» e, finalmente o 383.º, n.º 1 do CP, «interpretado no sentido de que poderá haver condenação pelo crime de violação de segredo sem que resulte provado o facto de o funcionário ser conhecedor do mesmo segredo, em concreto». Nestes vários pontos o que o recorrente questiona é a sua condenação nos crimes em concreto. O que verdadeiramente pretende ver sindicadas são as decisões condenatórias, seja porque considera insuficientes as provas que conduziram à referida condenação, seja porque considera que os comportamentos em causa não são subsumíveis ao tipo legal de crime em concreto. O que pretende é, assim, um reexame do mérito do recurso, uma reapreciação de todos os elementos constitutivos da condenação e dos meios e da suficiência da prova apresentada para essa condenação.
6.4. Em todos estes pontos, pois, o que o recorrente pretende questionar é o conteúdo da própria decisão recorrida. Mas, sendo assim, como inquestionavelmente é, tem aplicação a jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada por este Tribunal no sentido de que, estando em causa a própria bondade intrínseca da decisão recorrida em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da LTC e assim tem sido afirmado por este Tribunal em inúmeras ocasiões. De facto, há que sublinhar que não incumbe ao Tribunal Constitucional discutir se as decisões do processo foram bem fundamentadas, ou se a sua conduta integra determinados tipos legais de crime. Todas essas questões são juízos de índole puramente infraconstitucional, e, por isso, matérias deixadas apenas à ordem dos tribunais comuns, não caindo no âmbito das competências específicas de fiscalização da constitucionalidade do Tribunal Constitucional.
De facto, há que relembrar a inexistência, no nosso ordenamento jurídico, da figura do “recurso de amparo” ou da ação constitucional para defesa de direitos fundamentais, na apreciação de alegadas inconstitucionalidades, diretamente imputadas pelo recorrente às decisões judiciais proferidas. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da LTC, e assim tem sido afirmado por este Tribunal em inúmeras ocasiões.
Não tendo o recurso apresentado por A. por objeto uma norma, ele não possui um objeto idóneo.
Tanto basta para que se não possa conhecer do objeto do presente recurso.»
3. O recorrente A. reclamou para a conferência com os fundamentos seguintes:
“(…)
Em sede de recurso de constitucionalidade, foram pelo recorrente suscitadas as seguintes questões, que passaremos a analisar:
A) Conjugação dos artigos 125.º, 126, n.º 3, 127.º, e 122 e 374.º, n.º 2 do CPP, interpretados no sentido de que:
* Pode ser valorada em sede de Acórdão final um depoimento prestado em audiência que incida, ainda que parcialmente, sobre prova proibida, sem que se encontre devidamente fundamentado que os mesmos não se encontram «contaminados» por tal prova proibida.
Com efeito, entende o recorrente que tal interpretação sempre será Inconstitucional, por consubstanciar uma manifesta violação dos Princípios da Inocência e da Legalidade da Prova, consagrados, respetivamente, nos n.ºs 2 e 8 do artigo 32 da CRP e, bem assim, do Dever de Fundamentação consagrado no art.º 205.º da CRP.
Todavia, no que tange à presente questão, foi afirmado na decisão reclamada que o recorrente pretende com esta formulação, “que o Tribunal Constitucional sindique o uso de determinado meio de prova para fundar a sua convicção, por supostamente, não se demonstrar que o uso do mesmo se «encontra devidamente fundamentado».
Ora, salvo sempre o devido respeito, certamente induzida por inabilidade do recorrente, a interpretação do Colendo Relator não corresponde à real pretensão do reclamante.
Na verdade, o que se pretende é ver sindicada a constitucionalidade da interpretação normativa supra exposta, designadamente no que tange ao respeito pelos Princípios Constitucionais da Inocência e da Legalidade da Prova.
Aferindo-se, dessa forma, se a amplitude interpretativa do conceito de prova proibida, e respetivas consequências, que é delineada pelo Tribunal no aresto recorrido, está, ou não, em conformidade com os aludidos preceitos constitucionais.
Sendo certo que, neste âmbito, não se discute a prova recolhida pela testemunha em concreto, mas sim os efeitos da prova proibida no âmbito da validade da prova testemunhal que sobre ela incida, conjugados com a respetiva necessidade de fundamentação.
Decorrendo do aresto em crise que tal interpretação consubstanciou respetiva ratio decidendi, porquanto deflui da fundamentação que esta conduziu à validação de um depoimento prestado em audiência que incidiu, ainda que parcialmente, sobre prova proibida.
B) Normas legais contidas nos art.ºs 2º e 3º da Lei 101/2001, de 25 de agosto, interpretadas no sentido de que:
* Devem ser considerados validamente autorizados os meios ocultos de investigação (ações encobertas) através de despacho que se funda numa descrição e análise de factos concretos que posteriormente são dados como não provados e que, por sua vez, suportaram a suspeita fundada da prática de crimes do catálogo que admitem o recurso a esses meios, e a ponderação da necessidade de utilização desses meios e da sua proporcionalidade à gravidade concreta do crime a investigar.
Com efeito, entende o recorrente que tal interpretação sempre será Inconstitucional, por ofensa do disposto nos art.ºs 18º, n.º 2, 32.º, n.º 1, e 205º, n.º 1, CRP.
Contudo, de acordo com a decisão reclamada, esta questão não será de conhecer, porquanto não terá sido cumprido pelo recorrente o ónus de enunciar, de forma clara e percetível o exato sentido normativo do preceito que considera inconstitucional.
Ora, salvo sempre o devido respeito, não olvidando as dificuldades que possam surgir em face da extensão e forma como a questão foi suscitada, é entendimento do recorrente que foi dado cumprimento ao ónus que sobre ele impende.
Na verdade, resulta claro da formulação supra que o sentido normativo conferido pelo Tribunal a tais disposições, enquadra a realização de uma ação encoberta determinada por referência a pressupostos de facto que se revelam falaciosos.
Porquanto, não se conformando, pretende o recorrente sindicar a legalidade e constitucionalidade da aludida interpretação normativa, que tolera a validação de uma ação encoberta (e, por inerência, a validade e constitucionalidade da prova recolhida), mesmo quando, posteriormente, se verifica que os respetivos pressupostos de facto não admitem a utilização de tal meio de prova.
C) Alínea c) do n.º 1 do art.º 256.º CP, na redação anterior à Lei 59/2007, interpretada no sentido de que poderá haver condenação sem que resulte provado o facto de o documento não ter sido falsificado pelo próprio arguido.
Com efeito, entente o recorrente que tal interpretação sempre seria Inconstitucional, por violação do art.º 32.º CRP n.ºs 2 e 5, ab initio.
D) Conjugação dos artigos 373.º, n.º 1 e 386.º, n.º 1, al. b) do CP, interpretados no sentido de que:
* Comete um crime de corrupção passiva o funcionário que, no decurso de um período em que presta serviços de consultoria a uma empresa e é remunerado para o efeito, avisa o gerente dessa mesma empresa de uma fiscalização, sem que fique cabalmente demonstrado um nexo causal entre os pagamentos e os avisos.
Com efeito, entende o recorrente que tal interpretação sempre seria ilegal, por violação direta das referidas disposições e do Princípio da Livre Apreciação da Prova, previsto no artigo 127.º do CPP; e Inconstitucional, por consubstanciar uma manifesta violação do Princípio da Inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP, assim como do Princípio do “in dubio pro reo”, que daquele decorre.
E) Artigo 383.º, n.º 1 do CP, interpretado no sentido de que poderá haver condenação pelo crime de violação de segredo sem que resulte provado o facto de o funcionário ser conhecedor do mesmo segredo, em concreto.
Com efeito, entende o recorrente que tal interpretação sempre seria Ilegal, por violação direta da referida norma; e Inconstitucional, por consubstanciar uma manifesta violação do Princípio da Inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP, assim como do Princípio do “in dubio pro reo”, que daquele decorre.
No que respeita aos pontos C) D) e E), entende o Colendo Relator que “o que o recorrente questiona é a sua condenação nos crimes em concreto. O que verdadeiramente pretende ver sindicadas são as decisões condenatórias, seja porque considera insuficientes as provas que conduziram à referida condenação, seja porque considera que os comportamentos em causa não são subsumíveis ao tipo legal de crime em concreto.”
Ora, salvo sempre o devido respeito, o recorrente não se poderá conformar com tal entendimento, desde logo por não estar em causa a suficiência do acervo probatório que conduziu à sua condenação, mas sim a interpretação que foi dada às disposições legais condenatórias.
Por outro lado, ao contrário do afirmado, o recorrente não pugna pelo entendimento de que os comportamentos em causa não são subsumíveis ao tipo legal de crime.
Na verdade, e conforme resulta das formulações supra, o recorrente entende que a interpretação que é dada pelo Tribunal às normas que contêm os tipos legais de crime não está em consonância com a Constituição.
Será o caso, por exemplo, da questão exposta em E), considerando o reclamante que a interpretação do Tribunal de 1 ª instância, corroborada pela Veneranda Relação de Lisboa, do artigo 383.º, n.º 1 do CP, no sentido acima formulado, colide frontalmente com os Princípios da Inocência, e do “in dubio pro reo”, que daquele decorre, na medida em que não exige um grau de certeza quanto à prática do crime que tais princípios impõe.
Isto é, ao invés de se pretender uma reapreciação dos elementos constitutivos da condenação, o que se pretende é sindicar a interpretação do Tribunal quanto ao próprio tipo legal de crime, porquanto se considera que a mesma é inconstitucional.
Sendo certo que as interpretações normativas em causa são suscetíveis de aplicação generalizada a todos os casos em que se coloque a possibilidade de determinado agente ter cometido os crimes em questão.
Nestes termos, e salvo sempre o devido e merecido respeito, roga-se a V/Exas. se dignem deferir a presente reclamação e, em consequência, decidam que deve ser conhecido o objeto do recurso, ordenando a notificação do ora reclamante para apresentar alegações.»
4. Notificado para o efeito, o Ministério Público respondeu nos seguintes termos:
“(…) 5º Na Decisão Sumária demonstra-se de forma clara e inequívoca que no momento próprio para tal – o requerimento de interposição para o Tribunal Constitucional – o recorrente não identificou de forma minimamente clara quaisquer questões de inconstitucionalidade normativa, únicas possíveis de constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade.
6.º De salientar ainda que ao recorrente foi pelo Exm.º Senhor Conselheiro Relator dada uma segunda oportunidade para, com rigor, definir o objeto do recurso (artigo 75.º-A, n.º 6, da LTC).
7.º O recorrente limitou-se, no fundo, a reafirmar posições anteriores em que discordando do decidido e de valoração de prova efetuada, imputava a violação da Constituição a essas decisões.
8.º Quanto à primeira questão (identificada no ponto 6.1. da Decisão Sumária), como também é evidente e se afirma da Decisão Sumária, o afirmado não tem sequer correspondência na decisão.
9.º Efetivamente no acórdão, após se citar e transcrever uma anterior decisão transitada em julgado, que tinha precisamente apreciado a consequência da declaração de nulidade da prova, analisa-se, com rigor e à luz daquela decisão, a matéria probatória relevante, concluindo-se: “Daí que, e contrariamente ao sustentado pelo recorrente, o tribunal «a quo» não tenha violado o disposto nos artigos 125.º, 126.º, n.º 3, 127.º, 122.º e 374.º, n.º 2, do CPP, nem incorrido na invocada inconstitucionalidade” (fls. 4409).
10.º Também no que respeita à segunda questão (ponto 6.2. da Decisão Sumária) a questão foi sempre colocada e tratada no âmbito das “nulidades do despacho que homologou a ação encoberta e das provas recolhidas e produzidas no processo que tiveram origem no agente encoberto Adelino Ferreira”.
11.º Após a análise das decisões e dos procedimentos adotados, concluiu-se:
“Não se entende porque razão o recorrente considera que esta ação encoberta deve ser declarada nula. A menos que a razão da discordância seja o montante e não a ocorrência do crime, não se vislumbra a razão da discórdia, tanto mais que a Lei n.º 102/2001 não distingue entre pequena e grande corrupção e não faz depender dos montantes envolvidos a legalidade da utilização deste meio de prova.
Nos termos expostos, improcedem as invocadas nulidades, bem como a arguida inconstitucionalidade”.
12.º Quanto às questões mencionadas no ponto 6.3. da Decisão Sumária, parece-nos evidente que o que o recorrente pretende é “um reexame do mérito do recurso, uma reapreciação de todos os elementos constitutivos da condenação e dos meios e da suficiência da prova apresentada para essa condenação”
13.º Assim, tal com se entendeu na douta Decisão Sumária, em face da inidoneidade do objeto do recurso, tal como foi definido pelo recorrente, deve a reclamação ser indeferida.»
II – Fundamentação
6. O reclamante reclama para a conferência da Decisão Sumária n.º 121/2014, que decidiu não conhecer do objeto do presente recurso por, por um lado, o mesmo não constituir uma questão de constitucionalidade normativa e, por outro lado, não existir coincidência entre o objeto do mesmo e a ratio decidendi da decisão recorrida.
7. Em primeiro lugar, o ora reclamante insurge-se contra a falta de conhecimento da primeira questão de inconstitucionalidade invocada, e que consiste na conjugação dos artigos 125.º, 126, n.º 3, 127.º, e 122 e 374.º, n.º 2 do CPP, interpretados no sentido de que: «pode ser valorada em sede de Acórdão final um depoimento prestado em audiência que incida, ainda que parcialmente, sobre prova proibida, sem que se encontre devidamente fundamentado que os mesmos não se encontram «contaminados» por tal prova proibida». Afirmou-se na Decisão Sumária que neste ponto o recorrente pretendia questionar o uso de determinado meio de prova, por supostamente, não se demonstrar que ele «encontra devidamente fundamentado». Sublinhou-se, nessa sequência, não incumbir ao Tribunal Constitucional avaliar da suficiência de fundamentação de uso de meios de prova que servem de base às decisões recorridas, questão que é de índole puramente infraconstitucional.
7.1. Insurge-se o ora reclamante contra esse entendimento, alegando que o que pretende ver sindicada é a constitucionalidade da «interpretação normativa supra exposta, designadamente no que tange ao respeito pelos Princípios Constitucionais da Inocência e da Legalidade da Prova». No entanto, como decorre da reclamação, não demonstra de que forma essa interpretação constitui uma norma. O recorrente limita-se a reafirmar a sua discordância com o decidido e com a valoração de prova efetuada, sublinhado que as decisões em causa violam a Constituição. Mais, apenas contribui para demonstrar que é, de facto a decisão concreta que pretende ver sindicada, ao sublinhar que «não se discute a prova recolhida pela testemunha em concreto, mas sim os efeitos da prova proibida no âmbito da validade da prova testemunhal que sobre ela incida, conjugados com a respetiva necessidade de fundamentação». Demonstra assim, mais uma vez, que o que verdadeiramente discute são os efeitos de determinado meio de prova que foi usado no decurso do processo, e sua incidência na decisão concreta, questão que é de índole puramente infraconstitucional.
7.2. Para além disso, a Decisão Sumária considerou ainda que a interpretação que o recorrido imputou à decisão recorrida não tem qualquer correspondência na mesma. Daí que se tenha considerado que tal interpretação não constituía ratio decidendi da decisão recorrida. O ora reclamante insurge-se contra este entendimento, mas apenas afirma que decorre do aresto recorrido «que tal interpretação consubstanciou respetiva ratio decidendi, porquanto deflui da fundamentação que esta conduziu à validação de um depoimento prestado em audiência que incidiu, ainda que parcialmente, sobre prova proibida». Mas a verdade é que no acórdão se analisa com rigor a matéria probatória relevante, concluindo-se por fim: “Daí que, e contrariamente ao sustentado pelo recorrente, o tribunal «a quo» não tenha violado o disposto nos artigos 125.º, 126.º, n.º 3, 127.º, 122.º e 374.º, n.º 2, do CPP, nem incorrido na invocada inconstitucionalidade” (fls. 4409). Assim, e contrariamente ao que constitui esta parte do objeto do recurso, o Tribunal recorrido pura e simplesmente considerou que não tinha havido valoração de prova proibida. Foi essa a decisão do tribunal a quo, que não corresponde ao que o recorrente alega como tendo sido a decisão recorrida. Saber agora se houve ou não valoração de prova proibida é algo que já extravasa as competências do Tribunal Constitucional, por ser um juízo que se reporta unicamente à decisão de mérito recorrida, como atrás se afirmou.
8. Invoca o recorrente ainda a inconstitucionalidade das normas contidas nos art.ºs 2º e 3º da Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto, interpretadas no sentido de que «devem ser considerados validamente autorizados os meios ocultos de investigação (ações encobertas) através de despacho que se funda numa descrição e análise de factos concretos que posteriormente são dados como não provados e que, por sua vez, suportaram a suspeita fundada da prática de crimes do catálogo que admitem o recurso a esses meios, e a ponderação da necessidade de utilização desses meios e da sua proporcionalidade à gravidade concreta do crime a investigar». Neste ponto, a Decisão Sumária contestada considerou, uma vez mais, que o recorrente pretendia sindicar a validade do despacho concreto e irrepetível que, naquele caso concreto, autorizou os meios de investigação em causa. Neste ponto vem o ora reclamante reformular a questão, alegando que «pretende (…) sindicar a legalidade e constitucionalidade da aludida interpretação normativa, que tolera a validação de uma ação encoberta (e, por inerência, a validade e constitucionalidade da prova recolhida), mesmo quando, posteriormente, se verifica que os respetivos pressupostos de facto não admitem a utilização de tal meio de prova».
8.1. Ora, em primeiro lugar, há que afirmar que o momento presente é extemporâneo para se reformular o objeto do recurso. De facto, o mesmo é fixado no requerimento de interposição do recurso, tendo sido dada, inclusivamente, oportunidade ao recorrente para aperfeiçoar o mesmo. Assim, a formulação mais genérica que o ora reclamante pretende dar a esta questão não invalida o que se escreveu na Decisão Sumária n.º 121/2014. O objeto do recurso foi aí definido através de inúmeras referências ao caso concreto, que demonstravam que o que estava em causa era, afinal, a sindicância de um concreto e irrepetível despacho «que se funda numa descrição e análise de factos concretos que posteriormente são dados como não provados e que, por sua vez, suportaram a suspeita fundada da prática de crimes do catálogo que admitem o recurso a esses meios, e a ponderação da necessidade de utilização desses meios e da sua proporcionalidade à gravidade concreta do crime a investigar».
8.2. Por outro lado, a presente questão, como afirma o Ministério Público, foi sempre colocada ao longo do processo, no âmbito das “nulidades do despacho que homologou a ação encoberta e das provas recolhidas e produzidas no processo que tiveram origem no agente encoberto Adelino Ferreira”, não tendo, assim, o recorrente suscitado a questão com a formulação agora dada. Por outras palavras, o recorrente não suscitou esta questão de forma adequada perante o tribunal a quo. A forma como este conhece da questão é, aliás, disso demonstrativo, já que afirma que “Não se entende porque razão o recorrente considera que esta ação encoberta deve ser declarada nula. A menos que a razão da discordância seja o montante e não a ocorrência do crime, não se vislumbra a razão da discórdia, tanto mais que a Lei n.º 102/2001 não distingue entre pequena e grande corrupção e não faz depender dos montantes envolvidos a legalidade da utilização deste meio de prova.” (sublinhado nosso).
9. Por fim, o recorrente imputa também de inconstitucional a alínea c) do n.º 1 do art.º 256.º CP, na redação anterior à Lei 59/2007, «interpretada no sentido de que poderá haver condenação sem que resulte provado o facto de o documento não ter sido falsificado pelo próprio arguido», a conjugação dos artigos 373.º, n.º 1 e 386.º, n.º 1, al. b) do CP, interpretados no sentido de que «comete um crime de corrupção passiva o funcionário que, no decurso de um período em que presta serviços de consultoria a uma empresa e é remunerado para o efeito, avisa o gerente dessa mesma empresa de uma fiscalização, sem que fique cabalmente demonstrado um nexo causal entre os pagamentos e os avisos» e, finalmente o 383.º, n.º 1 do CP, «interpretado no sentido de que poderá haver condenação pelo crime de violação de segredo sem que resulte provado o facto de o funcionário ser conhecedor do mesmo segredo, em concreto». Considerou a decisão reclamada que, nestes vários pontos o recorrente questionava mais uma vez as próprias decisões condenatórias, seja por considerar insuficientes as provas que conduziram à condenação, seja por considerar que os comportamentos em causa não eram subsumíveis ao tipo legal de crime em concreto. Vem agora o ora reclamante invocar que não está em causa «a suficiência do acervo probatório que conduziu à sua condenação, mas sim a interpretação que foi dada às disposições legais condenatórias» e que, por outro lado, «entende que a interpretação que é dada pelo Tribunal às normas que contêm os tipos legais de crime não está em consonância com a Constituição», nomeadamente a interpretação do artigo 383.º, n.º 1 do CP, «que colide frontalmente com os Princípios da Inocência, e do “in dubio pro reo”, que daquele decorre, na medida em que não exige um grau de certeza quanto à prática do crime que tais princípios impõe». No entanto, mais uma vez o ora reclamante nada alega que permita invalidar a consideração de que o objeto do recurso não possui natureza normativa. Limita-se a reafirmar que o que questiona é a interpretação dada a várias normas pelo tribunal a quo, e que essa interpretação é inconstitucional.
Neste ponto importa distinguir a impugnação da interpretação da norma da impugnação da própria decisão recorrida. Impugnar a interpretação extravasará as fronteiras das possibilidades de conhecimento do Tribunal Constitucional quando se traduza no questionar do juízo de subsunção de determinados factos ou realidade da vida a uma determinada norma.
Ora, o conhecimento das questões presentes pressupõe que o Tribunal Constitucional averigue da aplicação dessas normas aos factos da causa, já que a formulação das mesmas contém elementos que se reportam especificamente ao caso concreto. Haveria, assim que saber se (i) resultou provado que o documento não foi falsificado pelo próprio arguido? (ii) ficou demonstrado um nexo causal entre os pagamentos e os avisos? (iii) resulte provado o facto de o funcionário ser conhecedor do mesmo segredo, em concreto? Assim, como se vê, não se trata de avaliar da constitucionalidade de normas aplicáveis a um número indeterminado de casos, mas sim da decisão sobre factos específicos, concretos e irrepetíveis da causa. Trata-se, reafirma-se, de contestar a própria bondade da decisão recorrida.
Tanto basta para se confirmar que o objeto do presente recurso não tem caráter normativo, como bem considerou a decisão reclamada, não constituindo, por isso, um objeto idóneo para que dele o Tribunal Constitucional possa conhecer.
Pelo exposto, resta confirmar a decisão sumária recorrida, por falta de idoneidade do objeto do presente recurso, que não constitui uma questão de constitucionalidade normativa que caia nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional.
III – Decisão
10. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, nos termos dos artigos 7.º e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 25 de março de 2014. – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral