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Processo n.º 624/13
2 Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, interpôs o Ministério Público recurso obrigatório de constitucionalidade da decisão judicial que decidiu indeferir a promoção quanto à realização de julgamento na forma sumária e, em consequência, determinou a remessa dos autos ao Ministério Público para tramitação noutra forma processual, nos termos da alínea a) do artigo 390.º do Código de Processo Penal. Com a interposição deste recurso, pretende o recorrente ver apreciada a questão de “saber se a norma constante do art.º 385.º, n.º 2, al. a) do CPP é inconstitucional por violação do princípio do contraditório, ínsito no art.º 32.º, n.º 6 da CRP, o qual permite o julgamento do arguido na sua ausência independentemente de o auto de notícia fazer a imputação subjetiva dos factos”.
2. A decisão recorrida pronunciou-se sobre o requerimento apresentado pelo Ministério Público, no sentido da sujeição a julgamento, sob a forma de processo sumário, do arguido A., imputando-lhe a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, entendendo a Mma. Juíza a quo “a forma processual especial sumária apenas admite a suspensão provisória do processo – artigo 384.º, do CPP – e a realização de julgamento, a qual só poderá ter lugar se o(a) arguido(a), evidentemente, for notificado(a) da acusação, o que não é o caso, sob pena de violação das garantias de defesa constitucional e legalmente consagradas”.
Para fundamentar a sua decisão, a Mma. Juíza recorrida disse que:
«A Digna Magistrada do Ministério Público apresentou o presente expediente em que é arguido A., requerendo a realização de julgamento na forma sumária e remetendo para a factualidade descrita no auto de notícia, aditando a este o elemento subjetivo (de qualquer tipo, na forma conclusiva) – cfr. n.º 2, do artigo 382.º e n.º 2, do artigo 389.º ambos do Código de processo Penal (CPP).
[…]
A Digna Magistrada do Ministério Público, ciente de que o auto de notícia que lhe foi apresentado pela autoridade policial não narrava factos suficientes constitutivos de crime, designadamente, por ser completamente omisso quanto aos factos constitutivos do elemento subjetivo do tipo imputado ao(à) arguido(a), viu-se obrigada a proceder, como referido no primeiro parágrafo, ou seja, aditou o elemento subjetivo (de qualquer tipo, na forma conclusiva), sem que dos autos constem factos que permitissem alcançar tal conclusão e sem haver realizado qualquer diligência probatória tendente à respetiva aquisição.
Coligindo o supra exposto, os factos imputáveis ao(à) arguido(a), que constituem o crime pelo qual foi detido(a), ou seja, pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança criminais, apenas agora, com o aludido requerimento/acusação, surgem no expediente que me é apresentado.
Note-se que do expediente não resulta que o(a) arguido(a) tenha sido sequer notificado do teor do auto de notícia e, muito menos, que o tenha sido do requerimento/acusação. Ou seja, nada assegura a primeira das garantias de defesa de qualquer arguido – que o mesmo tenha conhecimento, até ao momento, dos factos constitutivos do crime que lhe é imputado.
Saliente-se: o(a) arguido(a) não se encontra presente. Em suma, o(a) arguido(a) não foi notificado nem do auto de notícia, que mais não narra do que os elementos objetivos do tipo – o que não é suficiente para que se possa sequer afirmar estarmos perante a prática de um crime, quanto mais perante uma detenção em flagrante delito válida, i.e., que se reporte ao presenciamento de um crime (elementos subjetivos do tipo dele constitutivos incluídos) – nem do requerimento/acusação ora apresentado pelo Digno Magistrado do Ministério Público, mas ainda assim, foi requerida a realização de audiência de julgamento na ausência do(a) arguido(a).
Ora, é evidente que o(a) arguido(a) não tem conhecimento dos factos de que é acusado. Até porque, repita-se, alguns deles só agora brotam dos autos […]
Admitir a realização da audiência de julgamento na ausência do(a) arguido(a) sem que o mesmo conheça, ao fim e ao cabo, da acusação, afigura-se-me uma flagrante violação do Processo Penal Constitucional – cfr. artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa e n.º 9, do artigo 113º, do CPP.
Acaso o(a) arguido(a) houvesse sido notificado(a) de todos os factos constitutivos do tipo de crime que lhe é imputado no momento que precedeu a sua libertação e houvesse sido notificado(a) nos termos do n.º 3, do artigo 385º, do CPP, então sim, poder-se-ia afirmar, com propriedade, que ao(à) arguido(a) havia sido eficaz e validamente asseguradas as garantias de defesa, previstas no artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
[…]
Admitir o início da audiência de julgamento em processo especial sem que o(a) arguido(a) conheça pessoalmente os factos constitutivos do tipo de crime que lhe é imputado(a), equivale, subsequentemente, a admitir-se a violação do princípio Constitucional do contraditório. Tanto mais assim é que o(a) arguido(a) nunca teve qualquer contacto com o defensor que o Tribunal teria de lhe nomear, cujo papel mias não seria que o de sindicar o bom desempenho das funções acometidas ao Meritíssimo Juiz e ao Digno Magistrado do Ministério Público, incluindo-se nas daquele as que se reportam à direção da audiência.
Proceder à realização da audiência de julgamento nestes termos equivaleria a esvaziar de conteúdo as garantias de defesa do(a) arguido(a), significaria limitar-se a deter o(a) arguido(a) por alegado presenciamento de elementos objetivos de um tipo de ilícito criminal, dar-lhe (ou não) disso conhecimento, informá-lo dos seus direitos e deveres processuais, recolher termo de identidade e residência, notificá-lo para comparecer, adverti-lo das consequências processuais da sua ausência e nomear-lhe um defensor. É bastante, mas não o bastante para que o(a) arguido(a) se possa defender com propriedade.
[…]»
3. No tribunal recorrido o Ministério Público requereu a aclaração desta decisão:
«O tribunal considerou que o arguido A. não foi “sequer notificado do auto de notícia” e como tal “admitir a realização da audiência de julgamento na ausência do arguido sem que o mesmo conheça, ao fim e ao cabo, da acusação, afigura-se-me uma flagrante violação do Processo Penal Constitucional – cfr. artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa”.
Compulsados os autos, o auto de notícia de detenção de fls. 1, do talão do aparelho Drager de fls. 2 e da respetiva notificação do teste quantitativo de fls. 3, resulta que o arguido teve conhecimento conforme se constata da assinatura aposta nos documentos.
Acrescer o facto, do arguido ter sido notificado para comparência no tribunal nos termos do disposto no art.º 385.º, n.º 2 e 3 do CPP, cfr. fls. 6 e 7.
Perante esta situação fáctica, requeremos ao douto tribunal esclareça se mantém a decisão proferida, e se recusa aplicar o preceituado no art.º 385.º, n.º 2, al. a) do CPP, por considerar inconstitucional à luz do art.º 32.º da CRP e n.º 6 do art. 113 do CPP.»
A Mma. Juiz a quo despachou no sentido de que “a decisão em causa é clara e está devidamente fundamentada, pelo [que] nada há a decidir” (v. fls. 29).
4. O recurso de constitucionalidade foi admitido no tribunal a quo.
5. Subidos os autos ao Tribunal Constitucional e notificadas as partes para alegarem, somente o recorrente apresentou alegações (fls. 38-56), concluindo nos seguintes termos:
«41. Interpôs o Ministério Público, nos presentes autos, recurso da douta decisão judicial proferida pelo Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, a fls. 18 a 21, na qual a Mma. Juiz «a quo» decidiu que […].
42. Tal recurso baseou-se na recusa de aplicação da norma constante do artigo 385.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal, por “violação do princípio do contraditório, ínsito no art.º 32.º, n.º 6 da CRP”; e fundamentou-se juridicamente no“(…) disposto no art.º 280.º, al. a) e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, e nos artigos 70.º, n.º 1, al. a); 72.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, 75.º, n.º 1 e 75.ºA, n.º 1 da Lei n.º 28/82, de 15/11 (…)”.
43. Poder-se-ia duvidar, em face da análise do douto despacho impugnado - quer da sua fundamentação, quer do seu segmento decisório -, que tal despacho tenha verdadeiramente desaplicado, por inconstitucionalidade, a norma constante da alínea a) do n.º 2 do artigo 385.º do Código de Processo Penal.
44. A decisão judicial recorrida entendeu, com efeito, que o auto de notícia elaborado pela entidade policial apenas continha a factualidade integrante do elementos objetivo do crime imputado ao arguido, sendo omissa quanto ao elemento subjetivo, o qual só veio a ser aditado, pelo Ministério Público, na sua peça acusatória de fls. 16, peça esta da qual não foi possível notificar o arguido na data da apresentação do expediente para julgamento, atenta a sua não comparência nas instalações do tribunal.
45. Com base nesta constatação, a Mm.ª Juiz «a quo» considerou que, em face da impossibilidade de notificação ao arguido de parte substancial dos factos que lhe eram imputados, à data da requerida designação do momento para a realização da audiência de julgamento, a efetuar sem a comparência do arguido, a sujeição deste arguido a julgamento, em tais circunstâncias, constituiria uma violação do princípio do contraditório e das garantias constitucionais de defesa em processo criminal.
46. Isto é, não teria, a decisão impugnada, formalmente concluído, que a norma ínsita na alínea a) do n.º 2 do artigo 385.º do Código de Processo Penal violava princípios ou regras constitucionais mas, outrossim, que tais normas constitucionais seriam violadas se fosse realizado o julgamento em processo sumário, na ausência do arguido, sem que este tivesse sido notificado do completo teor da acusação, impossibilitando-o de se defender, pessoalmente, de factos que não chegaram ao seu conhecimento.
47. Ou seja, rodeia a decisão judicial, em apreciação, uma escusada ambiguidade sobre o seu próprio alcance, deixando dúvidas sobre se terá pretendido verdadeiramente desaplicar a norma do Código de Processo Penal atrás referida, com fundamento na sua inconstitucionalidade, ou se as asserções sobre esta matéria foram meros obiter dicta. Daí o pedido de aclaração formulado pelo Ministério Público, que permaneceu, aliás, sem resposta convincente.
48. Poder-se-ia, por outro lado, colocar em dúvida se terá, a norma constante da alínea a) do n.º 2 do artigo 385.º do Código de Processo Penal, constituído a verdadeira “ratio decidendi” ou fundamento jurídico da decisão proferida no caso concreto.
49. Por tal razão, e de um ponto de vista meramente formal, poder-se-ia, no limite, entender estarmos perante a possível omissão de um dos pressupostos especiais de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a saber, a inexistência de recusa efetiva de aplicação, por parte do tribunal «a quo», de qualquer norma legal com fundamento na sua inconstitucionalidade.
50. Este Ministério Público, porém, tem um entendimento diverso sobre uma tal ambiguidade de interpretação. Considera, com efeito, o Ministério Público, que a decisão judicial em apreciação recusou, realmente, aplicar a norma constante da alínea a) do n.º 2 do artigo 385.º do Código de Processo Penal, que autoriza a sujeição do arguido a julgamento, mesmo sem a sua comparência, em Processo Sumário, no caso de libertação ocorrida nos termos do disposto no n.º 1 do mesmo artigo 385.º, quando conjugada com a norma do 389.º, n.º1, do Código de Processo Penal, que admite, em tais circunstâncias, que a apresentação da acusação, pelo Ministério Público, possa ser substituída pela leitura do Auto de Notícia.
51. Efetivamente, apesar de, formalmente, o Ministério Público ter apresentado um requerimento acusatório, este requerimento acusatório limitou-se a reproduzir o Auto de Notícia, apondo-lhe uma fórmula meramente conclusiva, integradora do elemento subjetivo do tipo de crime imputado.
52. Ou seja, o requerimento acusatório não representou nenhuma novidade relativamente ao Auto de Notícia que, previamente foi notificado ao arguido, razão pela qual, tendo este tido conhecimento de todos os factos antes do julgamento, não veria violados quaisquer dos seus direitos constitucionais de defesa, ainda que fosse julgado, em Processo Sumário, sem que se encontrasse presente.
53. Consequentemente, ter-se-á de concluir que a norma resultante da conjugação entre a alínea a) do n.º 2 do artigo 385.º e o n.º 1 do artigo 389.º, ambos do Código de Processo Penal, não comporta qualquer violação das garantias constitucionais de defesa do arguido em processo criminal ou do princípio do contraditório.
54. Por tal razão, deverá, no entender do Ministério Público, o Tribunal Constitucional concluir pela não inconstitucionalidade da norma emergente da conjugação entre a alínea a) do n.º 2 do artigo 385.º do Código de Processo Penal e o n.º 1 do artigo 389.º, do mesmo Código, e conceder, nessa medida, provimento ao presente recurso determinando, outrossim, a revogação da douta decisão recorrida.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. O próprio recorrente admite que a decisão recorrida pode suscitar dúvidas sobre o seu alcance, nomeadamente quanto à questão de saber se a mesma terá verdadeiramente desaplicado com fundamento em inconstitucionalidade, o artigo 385.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal (cfr. especialmente as conclusões 43. a 47. e 49. das alegações). De todo o modo, o recorrente acaba por considerar ter existido efetiva desaplicação daquela norma, “quando conjugada com a norma do 389.º, n.º1, do Código de Processo Penal, que admite, em tais circunstâncias, que a apresentação da acusação, pelo Ministério Público, possa ser substituída pela leitura do Auto de Notícia” (cfr. a conclusão 50. das alegações). E o argumento decisivo para tanto reside na consideração de que, por um lado, o auto de notícia de fls. 1, oportunamente notificado ao arguido, já contém todos os elementos necessários à imputação do crime, de tal modo que a respetiva leitura seria suficiente para substituir a apresentação da acusação, conforme previsto no artigo 389.º, n.º 1, do Código de Processo Penal; e de que, por outro lado, o requerimento acusatório de fls. 16 se limitou a reproduzir o citado auto, apondo-lhe uma fórmula meramente conclusiva, integradora do elemento subjetivo do tipo de crime imputado. Consequentemente, tal requerimento não representou nenhuma novidade relativamente ao auto de notícia previamente notificado ao arguido – “razão pela qual, tendo este tido conhecimento de todos os factos antes do julgamento, não veria violados quaisquer dos seus direitos constitucionais de defesa, ainda que fosse julgado, em Processo Sumário, sem que se encontrasse presente” (cfr. a conclusão 52.).
Este argumento, enunciado nas conclusões 51. e 52. das alegações do recorrente, tem o seguinte desenvolvimento no respetivo corpo:
« [32. A] decisão impugnada recusou, substantivamente, aplicar a norma constante da alínea a) do n.º 2 do artigo 385.º do Código de Processo Penal, que autoriza a sujeição do arguido a julgamento, mesmo sem a sua comparência, em Processo Sumário, no caso de libertação ocorrida nos termos do disposto no n.º 1 do mesmo artigo 385.º, quando conjugada com a norma do 389.º, n.º1, do Código de Processo Penal, que admite, em tais circunstâncias, que a apresentação da acusação, pelo Ministério Público, possa ser substituída pela leitura do auto de notícia, considerando que tal conjugação normativa violaria o princípio do contraditório plasmado no n.º 6 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
33. O auto de notícia, conforme resulta do disposto na alínea a), do n.º 1 do artigo 243.º do Código de Processo Penal, deve mencionar “os factos que constituem o crime” de denúncia obrigatória, presenciado por autoridade judiciária, órgão de polícia criminal ou outra autoridade policial.
34. Isto é, o auto de notícia deve conter os factos que constituem o crime, suscetíveis de ser presenciados por autoridade judiciária, órgão de polícia criminal ou outra autoridade policial, enquanto realidades apreensíveis por estes.
35. São estes factos, independentemente da sua potencialidade para integrar o elemento objetivo do tipo de crime ou para indiciar o preenchimento do elemento subjetivo, que devem ser levados ao conhecimento do arguido, por via de notificação, garantindo-lhe o direito de, sobre eles, se pronunciar e, se assim o entender, de os contradizer.
36. A constatação do elemento subjetivo do crime, enquanto procedimento intelectual e volitivo do arguido, resulta, da mesma forma que a constatação do seu elemento objetivo, da leitura dos factos trazidos perante o julgador e, no caso do Processo Sumário, apreendidos por autoridade judiciária, órgão de polícia criminal ou outra autoridade policial.
37. Assim, o requerimento formal de sujeição do arguido a julgamento em Processo Sumário, bem como a fórmula nele aposta pelo Ministério Público, a saber, que: “O arguido sabia que a sua conduta era ilícita e punível, não obstante quis e agiu pelo modo descrito no respetivo Auto de Detenção, que aqui se dá por integralmente reproduzido”, a qual é meramente conclusiva, limitam-se a remeter o preenchimento dos elementos do crime imputado, nomeadamente do subjetivo, para os factos previamente apurados, enunciados no Auto de Notícia e notificados ao arguido.
38. Acresce ainda que, ao prever, o legislador ordinário, a notificação do teor do Auto de Notícia ao arguido, prévia ao requerimento da sua sujeição a julgamento, por parte do Ministério Público, assegura a tal arguido todos os direitos constitucionais de defesa em processo criminal, quer o julgamento se faça com a sua presença ou na sua ausência, uma vez que o requerimento se limita a assimilar o conteúdo do Auto de Notícia, já conhecido pelo arguido.
39. Apura-se, consequentemente, que a norma processual penal desaplicada, a saber, a resultante da alínea a) do n.º 2 do artigo 385.º do Código de Processo Penal, conjugada com o disposto no n.º 1 do artigo 389.º do mesmo Código, não consagra qualquer violação das garantias constitucionais de defesa do arguido em processo criminal ou do princípio do contraditório.»
Significativamente, o argumento é centrado na primeira parte do artigo 389.º, n.º 1, do Código de Processo Penal – “O Ministério Público pode substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção” – e omite qualquer referência ao n.º 2 do mesmo artigo, preceito que é expressamente invocado pela Mma. Juíza a quo – “Caso seja insuficiente, a factualidade constante do auto de notícia pode ser completada por despacho do Ministério Público proferido antes da apresentação a julgamento, sendo tal despacho igualmente lido em audiência”. Na verdade, logo no primeiro parágrafo da decisão recorrida pode ler-se:
« A Digna Magistrada do Ministério Público apresentou o presente expediente em que é arguido A., requerendo a realização de julgamento na forma sumária e remetendo para a factualidade descrita no auto de notícia, aditando a este o elemento subjetivo (de qualquer tipo, na forma conclusiva) – cfr. n.º 2, do artigo 382.º e n.º 2, do artigo 389.º ambos do Código de processo Penal (CPP).» (itálicos aditados)
Ora, parece ser aqui que reside a divergência que está na origem do presente recurso de constitucionalidade.
7. Para a decisão recorrida, com efeito, o requerimento acusatório de fls. 16 não se limitou a reproduzir o auto de notícia, mas veio completá-lo. Daí as afirmações seguintes:
«A Digna Magistrada do Ministério Público, ciente de que o auto de notícia que lhe foi apresentado pela autoridade policial não narrava factos suficientes constitutivos de crime, designadamente, por ser completamente omisso quanto aos factos constitutivos do elemento subjetivo do tipo imputado ao(à) arguido(a), viu-se obrigada a proceder, como referido no primeiro parágrafo, ou seja, aditou o elemento subjetivo (de qualquer tipo, na forma conclusiva), sem que dos autos constem factos que permitissem alcançar tal conclusão e sem haver realizado qualquer diligência probatória tendente à respetiva aquisição.
Coligindo o supra exposto, os factos imputáveis ao(à) arguido(a), que constituem o crime pelo qual foi detido(a), ou seja, pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança criminais, apenas agora, com o aludido requerimento/acusação, surgem no expediente que me é apresentado.» (itálicos aditados)
Mais: a decisão recorrida reconhece expressamente a aplicabilidade do disposto no artigo 385.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal (sem prejuízo de, por lapso, se referir à sistematização do mesmo preceito anterior à redação dada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro):
« Acaso o(a) arguido(a) houvesse sido notificado(a) de todos os factos constitutivos do tipo de crime que lhe é imputado no momento que precedeu a sua libertação e houvesse sido notificado(a) nos termos do n.º 3, do artigo 385º, do CPP, então sim, poder-se-ia afirmar, com propriedade, que ao(à) arguido(a) havia sido eficaz e validamente asseguradas as garantias de defesa, previstas no artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa (CRP).»
Tanto basta para verificar que a decisão recorrida não chega a desaplicar, com fundamento em inconstitucionalidade, a norma do artigo 385.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal. Diferentemente, entendeu-se na decisão recorrida que tal norma pura e simplesmente não era aplicável in casu, atentas as insuficiências probatórias detetadas pelo Ministério Público no auto de notícia e a necessidade de as suprir, nos termos do artigo 389.º, n.º 2, do citado Código, mediante a elaboração de um requerimento acusatório, o qual, além de não ter sido precedido de qualquer diligência probatória, não chegou a ser notificado ao arguido – facto que também não é disputado pelo recorrente.
Por outro lado, indagar sobre o acerto ou desacerto do juízo concreto sobre a suficiência do auto de notícia ou do juízo concreto sobre a substancialidade do requerimento acusatório – o respetivo caráter não meramente formal - é matéria estranha a uma questão de constitucionalidade normativa.
8. Não tendo ocorrido uma desaplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, de qualquer norma legal, nomeadamente do citado artigo 385.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, em conjugação com o disposto no artigo 389.º, n.º 1, primeira parte, do mesmo Código, pelo que o presente recurso não preenche o pressuposto exigido pelo artigo 70.º, n.º 1, alínea a) da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro).
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se não conhecer do recurso.
Sem custas.
Lisboa, 26 de março de 2014. – Pedro Machete – Ana Guerra Martins - Fernando Vaz Ventura – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.