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Processo n.º 909/03
3.ª Secção Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A., identificado nos autos, foi condenado, como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º , n.º
1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de quatro anos de prisão. Interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 8 de Maio de 2003 (fls. 244 e segs.), o rejeitou, por manifesta improcedência. Desse acórdão recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 16 de Outubro de 2003 (fls. 283 e segs.) rejeitou também esse recurso, com fundamento em inadmissibilidade, quer por força da alínea e), quer da alínea f) do nº1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal.
O arguido interpôs, então, recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), visando a apreciação da inconstitucionalidade das normas constantes dos alíneas e) e f) do nº1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal em síntese, pelo seguinte (conclusões das alegações):
“1ª O S.T.J. interpretou e aplicou as normas constantes do artº 400º, n.º 1, als. e) e f), do C.P.P., no sentido de que para o efeito de recurso, para aquele Alto Tribunal, parte-se da pena, concreta, aplicada, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, já em recurso, e não da pena aplicável, definida pela moldura penal respectiva;
2ª Tais normas, assim interpretadas, violam o disposto no artº 32º, nº. 1 , da C.R.P. (direito ao recurso, em sede de garantias de processo criminal);
3ª “É a gravidade abstracta do crime (aferida, legalmente, pela “pena aplicável”) e não a sua concreta gravidade (aferida, judicialmente, pela “pena aplicada”) que determina a recorribilidade ou irrecorribilidade, para o S.T.J., dos acórdãos proferidos em recurso pelas Relações (S.T.J., de 27/3/2003, recurso
870/03-5, CARMONA DA MOTA)”;
4ª A interpretação dada às normas, em questão, pelo S.T.J., não é aceitável do ponto de vista da igualdade de armas, pelo que, também deste ponto de vista, viola previsões constitucionais, entre outras, nomeadamente, a do artº 32º, n.º
1, da C.R.P.;
5ª Tendo as normas constantes das als. e) e f), do n.º 1, do artº 400º, do C.P.P., sido interpretadas com o condicionalismo e alcance supra referidos, mostram-se as mesmas, assim aplicadas, afectadas de inconstitucionalidade material, por contrariarem , directamente, o disposto no artº 32º, n.º 1, da C.R.P., já que, desse modo, restringem, inaceitavelmente, a garantia constitucional, em causa (direito ao recurso).”
O Ministério Público contra-alegou, sustentando, em síntese:
“- que se mostra assegurado ao arguido o duplo grau de jurisdição, não podendo inferir-se da consagração constitucional do “direito ao recurso” o sistemático acesso ao Supremo Tribunal de Justiça;
- que os critérios acolhidos na decisão recorrida, como forma de “seleccionar” o acesso ao Supremo, não se configuram como violadores dos princípios da igualdade e proporcionalidade, ao mostrarem-se fundados na gravidade da pena cominada ao arguido pelas instâncias e a existência de uma “dupla conforme”, decorrente de duas decisões condenatórias das instâncias.”
2. O acórdão recorrido, rejeitou o recurso, por inadmissível, com base na seguinte fundamentação:
“No presente caso apenas o arguido interpôs recurso para este Supremo Tribunal. Assim, há que ter em conta o disposto no artº 409º do C.P.P. no que concerne à proibição da “reformatio in pejus”, segundo a qual, interposto recurso da decisão final somente pelo arguido – que é o caso que ora releva – o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos , ainda que não recorrentes – v. o n.º 1 do referido artº 409º. Isto significa que a pena aplicável pelo tribunal de recurso – mormente a de prisão (v. o n.º 2 daquele artº 409º) – a cada um dos crimes, por cuja prática o arguido foi condenado, não pode ser superior à pena aplicada pelo tribunal recorrido a cada um dos mesmos crimes - v., entre outros, os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 11-4-2002 (proc. n.º 150/02 – 3ª Secção), dois de 27-3-2003
(procºs. nºs. 859/03 e 870/03, ambos da 5ª Secção), de 5-6-2003 (procº. n.º
2150/03 – 5ª Secção) e de 3-7-2003 (procº. n.º 2445/03 – 5ª Secção). Ora, “in casu”, a Relação de Lisboa, ao confirmar a decisão da 1ª Instância, aplicou ao arguido, aqui recorrente, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a pena de quatro anos de prisão. Assim, por um lado, dado que a pena aplicável pela via de novo recurso – agora que este Supremo Tribunal – não pode exceder a que foi aplicada pela Relação, sendo a mesma de quatro anos de prisão, não é admissível o presente recurso para o disposto o artº 400º, nº 1, al. e), do C.P.P., pelo que o mesmo tem de ser rejeitado nos termos dos artºs. 414º, n.º 2 e 420º, n.º 1 do C.P.P.. Por outro lado, estamos perante um acórdão condenatório da Relação que confirmou a decisão da 1ª instância, em processo por crime ao qual, pela via de novo recurso, não é aplicável pena de prisão superior (pena de prisão superior) à já aplicada pela Relação, pelo que, face ao disposto no artº 400º, n.º 1 al. f), do C.P.P., sendo a mesma inferior a oito anos de prisão, também não é admissível o presente recurso, que, assim, ainda tem de ser rejeitado por este motivo nos termos dos artºs. 414º, n.º 2 e 420º, n.º 1 do C.P.P. (...).”
3. As normas cuja (in)constitucionalidade o recorrente pretende que este Tribunal sindique têm a seguinte redacção:
“Artigo 400.º
1. Não é admissível recurso: a) […] e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3; f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções, g) […].”
O acórdão recorrido rejeitou o recurso com dupla fundamentação, ou seja, pelo preenchimento da hipótese normativa das duas normas acima transcritas, qualquer delas considerada suficiente para esse resultado. Efectivamente, no pressuposto comum à interpretação das duas normas de que o que releva no conceito de “pena aplicável” é a pena máxima que possa vir a ser aplicada pelo tribunal ad quem (e não a pena abstractamente cominada no tipo legal) e de que o Supremo Tribunal de Justiça, em recurso interposto pelo arguido (ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse daquele), não pode agravar a pena (proibição da reformatio in pejus), tendo a Relação confirmado a condenação do recorrente em 4 anos de prisão, entendeu-se:
- que se preenche a hipótese da alínea e) porque a pena aplicável é inferior a cinco anos;
- que se preenche a hipótese da alinea f) porque se verifica a dupla conforme e a pena aplicável é inferior a oito anos.
Nas alegações para este Tribunal – fazendo, aliás, eco de um voto de vencido lavrado no acórdão recorrido –, o recorrente, além de questionar o acerto da interpretação que fez vencimento no plano do direito ordinário, sustenta a inconstitucionalidade da interpretação subjacente a esta decisão, quanto a qualquer das normas em causa:
- por violação do direito ao recurso, em sede de garantias do processo criminal;
- por violação do princípio de igualdade de armas.
Questiona, assim, a conformidade constitucional destas normas na dimensão interpretativa – correspondente ao seu segmento ou âmbito de previsão coincidente – segundo a qual, tendo sido confirmada pelo Tribunal da Relação, uma condenação em pena de prisão de 4 anos, por crime cuja moldura penal abstracta é superior a oito anos de prisão, não é admissível recurso do acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, quando o recurso for interposto apenas no interesse da defesa, dada a proibição da reformatio in pejus.
Cumpre, antes de mais, fazer duas advertências.
A primeira é a de que não cabe na competência deste Tribunal aferir do bem ou mal fundado desta interpretação, designadamente do seu decisivo pressuposto interpretativo que consiste em a gravidade da “pena aplicável” que o legislador tomou como referente ser a pena (máxima) que, nas circunstâncias concretas da limitação ao poder cognitivo do tribunal ad quem inerente à proibição da reformatio in pejus, possa ser judicialmente aplicada e não aquela que corresponda ao limite máximo da moldura penal abstracta fixada no correspondente tipo legal.
A segunda consiste em que, atendendo à natureza instrumental da fiscalização concreta da constitucionalidade, bastará que improceda a arguição de inconstitucionalidade relativamente a uma das normas, para que seja negado provimento ao recurso interposto para este Tribunal. Acresce, como se viu, que a inconstitucionalidade é imputada ao segmento normativo em que as normas são concorrentes (ou o âmbito de aplicação dos preceitos legais se intercepta), pelo que a apreciação que se fizer a propósito de uma delas vale mutatis mutandis para a outra.
4. Qualquer destas normas foi já sujeita ao escrutínio de constitucionalidade, quanto à perspectiva da violação do direito ao recurso, questão que se reconduz ao problema de saber se o direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição impõe um triplo grau de jurisdição. Sempre sem sucesso, como pode ver-se nos Acórdãos n.ºs 49/03 e 377/03 [no que toca à norma da alínea e)] e nos Acórdãos n.ºs 189/01, 336/01, 369/01, 495/03 e
102/04 [no que respeita à alínea f)], todos disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt.
Lembrando esta jurisprudência, disse-se no Acórdão n.º 495/03 (que pode consultar-se em http://www.tribunalconstitucional.pt), o seguinte:
“Ora é exacto que o Tribunal Constitucional já por diversas vezes observou que
«no nº 1 do artigo 32º da Constituição consagra-se o direito ao recurso em processo penal, com uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido. Mas a Constituição já não impõe, directa ou indirectamente, o direito a um duplo recurso, ou a um triplo grau de jurisdição. O Tribunal Constitucional teve já a oportunidade para o afirmar, a propósito dos recursos penais em matéria de facto: “não decorre obviamente da Constituição um direito ao triplo grau de jurisdição, ou ao duplo recurso” (Acórdão nº 215/01, não publicado)». Esta afirmação, feita no Acórdão n.º 435/01 (disponível, tal como o Acórdão n.º
215/01, em http://www.tribunalconstitucional.pt) foi proferida justamente a propósito da apreciação da alegada inconstitucionalidade da “norma do artigo
400º, nº1, alínea f) do CPP', tendo o Tribunal Constitucional concluído, tal como, aliás, já fizera nos Acórdãos n.ºs 189/01 e 369/01 (também disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt) que “ não viola o princípio das garantias de defesa, constante do artigo 32º, nº1 da Constituição”. A verdade, todavia, é que a apreciação então realizada tomou sempre como objecto tal norma interpretada no sentido de que a mesma se “refere (...) claramente à moldura geral abstracta do crime que preveja pena aplicável não superior a 8 anos: é este o limite máximo abstractamente aplicável, mesmo em caso de concurso de infracções que define os casos em que não é admitido recurso para o STJ de acórdão condenatórios das relações que confirmem a decisão de primeira instância” (cit. Acórdão n.º 189/01). Sucede, porém, que o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a questão de constitucionalidade que o ora reclamante pretende que seja apreciada no recurso que interpôs, no Acórdão n.º 451/03 (também disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), nos seguintes termos:
«É certo que a interpretação normativa agora em causa não coincide com a que foi apreciada no Acórdão n.º 189/01 - neste a questão tinha directamente a ver com a pena aplicável em caso de concurso de infracções.
A verdade, porém, é que, no confronto com o artigo 32º n.º 1 da Constituição, a questão da conformidade constitucional da interpretação normativa adoptada no acórdão recorrida se coloca nos mesmos termos.
Com efeito, a resolução da questão de constitucionalidade passa por saber quais os limites de conformação que o artigo 32º n.º 1 da CRP impõe ao legislador ordinário, em matéria de recurso penal.
E a resposta é dada no Acórdão n.º 189/01 no sentido de não haver vinculação a um triplo grau de jurisdição e de ser constitucionalmente admissível uma restrição ao recurso se ela não for desrazoável, arbitrária ou desproporcionada.
Ora, não podendo o Tribunal Constitucional censurar as interpretações normativas que, no estrito plano do direito infraconstitucional, são feitas nas decisões recorridas, a inadmissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de uma decisão proferida em 2º grau de jurisdição que confirma a condenação decretada em 1ª instância, - quando esse recurso é apenas interposto pelo arguido e, por força da proibição da reformatio in pejus, o STJ nunca poderá impor pena superior a 7 anos de prisão -, afigura-se racionalmente justificada, pela mesma preocupação de não assoberbar o STJ com a resolução de questões de menor gravidade (como sejam aquelas em que a pena aplicável, no caso concreto, não ultrapassa o referido limite), sendo certo que, por um lado, o direito de o arguido a ver reexaminado o seu caso se mostra já satisfeito com a pronúncia da Relação e, por outro, se obteve consenso nas duas instâncias quanto
à condenação.
Tanto basta para entender que a questionada interpretação normativa não incorre em violação do artigo 32º n.º 1 da Constituição.
(...)
No caso, o que sucedeu foi que o tribunal 'a quo' integrou no conceito de
'pena aplicável' constante da norma do artigo 400º n.º 1 alínea f) do CPP, também, as situações em que, confirmada pela relação a decisão condenatória proferida em 1ª instância e sendo o recurso apenas interposto pelo arguido, nunca o STJ pudesse aplicar pena superior a oito anos de prisão».
Estas razões, mais directamente dirigidas à alínea f) mas que valem para o domínio de previsão comum (e, no caso, concorrente) das duas normas, que está na base da dupla fundamentação adoptada pelo acórdão recorrido – neste passo, o problema de constitucionalidade é sempre o do terceiro grau de jurisdição ou do duplo grau de recurso –, são suficientes para concluir que o sentido normativo questionado não viola o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, na vertente do direito ao recurso em processo penal.
5. Sucede que o recorrente pretende o contraste das normas em causa também com o “princípio da igualdade de armas”.
A propósito do denominado princípio da igualdade de armas em processo penal, embora fiscalizando norma de sentido inverso àquelas cuja validade constitucional agora apreciamos – questionava-se aí o artigo 646.º, n.º
6, do Código de Processo Penal de 1929, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 402/82, de 23 de Setembro, com a interpretação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Maio de 1987, que vedava ao assistente e ao Ministério Público uma via de recurso que o sistema facultava ao arguido – disse este Tribunal, no Acórdão n.º 132/92, publicado no Diário da República, II série, de 24 de Julho de 1992, o seguinte:
“[ .. ] No estrito âmbito do direito de defesa, o princípio da igualdade em matéria de recursos só pode conceber-se em benefício da defesa, isto é, tem de ser uma igualdade ao serviço do acusado; caso contrário, já estaremos fora do direito de defesa, já estaremos no âmbito do direito de acesso à justiça. Com efeito, enquanto instrumento do direito de defesa, o direito ao recurso só pode operar no sentido de evitar que o arguido seja colocado em situação de desfavor face à acusação, no âmbito dos meios processuais que podem ser validamente utilizados na formação da convicção do tribunal, isto é, das bases argumentativas da decisão.
É certo que este Tribunal já postulou a necessidade de uma igualdade entre a acusação e a defesa, e justamente em matéria de recursos, no Acórdão n.º 17/86 e no Acórdão n.º 8/87, suplemento ao Diário da República I série, de 9 de Fevereiro de 1987. Mas tal posição foi depois abandonada nos Acórdãos n.ºs 398/89 e 496/89 (Diário da República, 2ª série, de 14 de Setembro de 1989 e de 1 de Fevereiro de 1990, respectivamente), que aderiram expressamente a uma observação feita por Figueiredo Dias a propósito do principio da «igualdade de armas) «Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal», in O Novo Código de Processo Penal, «Jornadas de direito processual penal», Ed. Almedina, Coimbra,
1988, pp. 30-31): Este princípio - que, de um ponto de vista jurídico-positivo, a doutrina e a jurisprudência dos países do Conselho da Europa retiram do disposto no artigo
6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem – não pode, sob pena de erro crasso, ser entendido como obrigando ao estabelecimento de uma igualdade matemática ou sequer lógica. Fosse assim e teriam de ser fustigadas pela crítica numerosas normas com bom fundamento – e, na verdade, ainda maior número delas referentes a faculdades concedidas ao arguido do que ao Ministério Publico! Desde logo feririam aquela «igualdade» princípios – até jurídico-constitucionais
– como os da inviolabilidade do direito de defesa. da presunção de inocência do arguido ou do in dubio pro reo. Mas feri-la-iam também faculdades especificamente conferidas ao arguido no julgamento e que não têm qualquer correspondência quanto à acusação [...] E sobretudo – se ali se tratasse de uma igualdade puramente formal – tornar-se-ia necessário, ou desligar o Ministério Público do seu dever (estrito) de objectividade, ou pôr um dever correspondente a cargo do arguido! Torna-se assim evidente que a reclamada «igualdade» de armas processuais – uma ideia em si prezável e que merece ser mantida e aprofundada – só pode ser entendida com um mínimo aceitável de correcção quando lançada no contexto mais amplo da estrutura lógico-material da acusação e da defesa e da sua dialéctiva. Com a consequência de que uma concreta conformação processual só poderá ser recusada como violadora daquele princípio de igualdade quando dever considerar-se infundamentada, desrazoável ou arbitrária; como ainda quando possa reputar-se substancialmente discriminatória à luz das finalidades do processo penal, do programas político-criminal que àquele está assinado, ou dos referentes axiológicos que o comandam.
[ ... ]”
Depois de recordar que o processo penal português não é um processo de partes e de realçar jurisprudência e doutrina no sentido de que, em processo penal, o princípio da igualdade de armas tem sido chamado a “opera[r] essencialmente no
âmbito do direito de defesa, no âmbito da preocupação de não colocar o arguido em desvantagem relativamente aos meios processuais de que dispõe a acusação com vista à formação da convicção do tribunal”, o Acórdão n.º 132/92 conclui que “o princípio da igualdade de armas não é um princípio absoluto em processo penal e, portanto, só tem de ser aplicado, em toda a sua plenitude, para nivelar a posição dos sujeitos processuais dentro do âmbito do direito de defesa, e em favor da mesma defesa”.
Na linha deste entendimento, importa saber se, não sendo o processo penal português concebido como um processo de partes, sem prejuízo da tendencial igualdade de armas que, dentro do processo, se procurou estabelecer entre a acusação e a defesa (Figueiredo Dias, “Os princípios estruturantes do processo e a revisão de 1998 do Código de Processo Penal”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 8, Fasc. 2º, pág. 205), ainda satisfaz as exigências constitucionais de um processo equitativo a norma que, perante decisão proferida em 2º grau de jurisdição, permite à acusação interpor recurso com o objectivo de agravamento da pena e veda à defesa a interposição de recurso
(autónomo) em ordem a obter a redução da mesma pena ou a absolvição.
Efectivamente, para concluir pela violação do referido princípio não basta que, na interpretação adoptada pelo acórdão recorrido, as normas em causa coloquem o arguido e o Ministério Público (ou o assistente) numa posição assimétrica. Igualdade de armas significa a atribuição à acusação e à defesa de meios jurídicos igualmente eficazes para tornar efectivos os direitos estabelecidos a favor da acusação e da defesa. O que, como diz Cunha Rodrigues,
“Sobre o princípio da igualdade de armas”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 1, Fasc. 1, pag. 91, “tendo em conta o lastro histórico relativo à evolução da opinião jurídica sobre o problema, conduzirá a que o princípio funcione como sensor do maior ou menor grau com que, na prática, se efectivam os direitos da defesa”. Retomando a expressão de Figueiredo Dias transcrita no Acórdão n.º 132/92, “uma concreta conformação processual só poderá ser recusada como violadora daquele princípio de igualdade quando dever considerar-se infundamentada, desrazoável ou arbitrária; como ainda quando possa reputar-se substancialmente discriminatória à luz das finalidades do processo penal, do programa político-criminal que àquele está assinado, ou dos referentes axiológicos que o comandam”.
Ora, já vimos que tem fundamentação material reservar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça aos casos considerados pelo legislador como mais importantes e que não é desrazoável ou arbitrário um critério que arranque da gravidade da pena que possa ser imposta (critério da “determinação concreta da competência” estendido à fase de recurso). Nesta perspectiva, a defesa e a acusação estão em posição substancialmente diferente. A pretensão processual
(lato sensu) da acusação é que o Supremo imponha uma pena que se situa nesse patamar de gravidade sancionatória eleito como critério de relevância da sua intervenção, enquanto que a da defesa quando recorre da aplicação de uma pena que não atingiu esse patamar é a inversa (obter uma pena inferior e, portanto, mais afastada do indicador de relevância do caso que foi escolhido pelo legislador como critério de acesso ao Supremo). Pelo que, por este ângulo, não estando constitucionalmente assegurado o 3º grau de jurisdição e cabendo o referido critério na margem de discricionariedade legislativa na conformação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em matéria de processo penal (Cf., supra n.º 4) a diferenciação de tratamento entre a acusação e a defesa não é arbitrária ou desrazoável, antes corresponde ao objectivo, que não é constitucionalmente ilegítimo, de reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para os casos mais importantes, aferida esta importância directamente pela potencialidade de inflicção de uma pena que ultrapasse um estipulado grau de gravidade e não pelo desvalor social daquele tipo de ilícito, indiciado pela moldura penal abstracta.
Finalmente, ainda dentro deste parâmetro, importa averiguar se essa diferenciação passa o teste de constitucionalidade “à luz das finalidades do processo penal, do programa político-criminal que àquele está assinalado e dos referentes axiológicos que o comandam”, para utilizarmos a formulação acima transcrita.
Num primeiro exame, poder-se-ia dizer que, a um programa constitucional do processo penal “orientado para a defesa” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição ..., 3ª ed., pág. 202) e comandado pela fundamental opção de que é preferível a absolvição de um culpado à condenação de um inocente, quadra mal numa norma que abre à acusação uma via de recurso com vista ao agravamento da condenação, do mesmo passo que a fecha à defesa – ao mesmo arguido, perante a mesma sentença – para obter a diminuição da pena ou, até, a absolvição. E seria tentador reclamar a intervenção do “princípio da igualdade de armas” para “nivelar a posição dos sujeitos processuais dentro do âmbito do direito de defesa, e em favor da mesma defesa”, domínio em que a jurisprudência deste Tribunal já afirmou que o referido princípio “tem de ser aplicado em toda a sua plenitude” (Cfr. cit. Acórdão n.º 132/92).
Todavia, daqui não decorre que essa solução seja constitucionalmente imposta ou, dito de outro modo, que a norma sob escrutínio de constitucionalidade viole a dimensão de igualdade das partes (lato sensu) perante o juiz, que integra o direito a um processo equitativo.
Efectivamente, o princípio da igualdade de armas assume inquestionável especificidade no âmbito do processo penal, aparecendo estreitamente conexionado com a matéria das garantias de defesa, consagradas no artigo 32.º da Constituição (Cfr., além dos acórdãos anteriormente referidos, Carlos Lopes do Rego, “Acesso ao Direito e aos Tribunais”, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, págs. 69, 70 e 76, maxime). Assim, desde que ficou admitido que, pelo ângulo do artigo 32º da Constituição, não é constitucionalmente vedado fazer depender o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça da gravidade da pena aplicável, i.e., que o arguido condenado em pena menos grave que um certo limiar estabelecido não tem constitucionalmente garantido o direito a fazer examinar a sua causa pelo Supremo Tribunal de Justiça, só constituiria violação desta dimensão do processo equitativo que se expressa pelo “princípio da igualdade de armas” não serem reconhecidos à defesa todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação na nova fase processual desencadeada por iniciativa do Ministério Público ou do assistente. Afinal, a nivelação dos sujeitos processuais (ainda que, porventura, dando “uma espada mais comprida a quem tem o braço mais curto”) só tem de existir “dentro do
âmbito do direito de defesa” e é pacífico que a garantia de 2º grau de recurso não está compreendida no âmbito constitucional do direito de defesa. Ora, a norma em causa veda ao arguido a iniciativa perante o Supremo Tribunal porque a sua pretensão se não situa no patamar que justifica a intervenção deste
de acordo com um pressuposto objectivo: a gravidade da pena aplicada ou que se quer ver aplicada. Mas não afecta o seu estatuto processual uma vez desencadeada a nova fase processual, podendo não só contrariar a pretensão do agravamento da condenação, como pugnar pela sua atenuação ou, até, pela absolvição. Consequentemente, a norma em causa também não viola o princípio da igualdade de armas entre a acusação e a defesa em processo penal.
6. Resta considerar, embora sumariamente porque à sua pouca consistência se junta (talvez pour cause) o diminuto investimento argumentativo do recorrente quanto a ele, um outro parâmetro de constitucionalidade. Efectivamente, embora não dêem expressamente como violado o n.º 9 do artigo 32.º da Constituição, nem confiram destaque conclusivo a esse parâmetro, as alegações de recurso fazem referências que respeitavam ao princípio do juiz natural ou do juiz legal e que devem ser ponderadas.
O Tribunal já se pronunciou sobre este princípio a propósito de diversas normas, como por último e detalhadamente dá conta o Acórdão n.º 614/2003, publicado no Diário da República, II série, de 10 de Abril de 2004. Como neste acórdão se disse:
“11. O princípio do “juiz natural”, ou do “juiz legal”, para além da sua ligação ao princípio da legalidade em matéria penal, encontra ainda o seu fundamento na garantia dos direitos das pessoas perante a justiça penal e no princípio do Estado de direito no domínio da administração da justiça. É, assim, uma garantia da independência e da imparcialidade dos tribunais (artigo 203º da Constituição). Designadamente, a exigência de determinabilidade do tribunal a partir de regras legais (juiz legal, juiz predeterminado por lei, gesetzlicher Richter) visa evitar a intervenção de terceiros, não legitimados para tal, na administração da justiça, através da escolha individual, ou para um certo caso, do tribunal ou do(s) juízes chamados a dizer o Direito. Isto, quer tais influências provenham do poder executivo – em nome da raison d’État – quer provenham de outras pessoas
(incluindo de dentro da organização judiciária). Tal exigência é vista como condição para a criação e manutenção da confiança da comunidade na administração dessa justiça, “em nome do povo” (artigo 202º, n.º 1, da Constituição), sendo certo que esta confiança não poderia deixar de ser abalada se o cidadão que recorre à justiça não pudesse ter a certeza de não ser confrontado com um tribunal designado em função das partes ou do caso concreto. A garantia do “juiz natural” tem, assim, um âmbito de protecção que é, em larga medida, configurado ou conformado normativamente – isto é, pelas regras de determinação do juiz “natural”, ou “legal” (assim G. Britz, ob. cit, pág. 574, Bodo Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte II, 14ª ed., Heidelberg, 1998, pág.
269).
[ ...] Para além desta dimensão positiva, incluindo o aspecto de organização interna dos tribunais, o princípio tem, igualmente, uma vertente negativa, consistente na proibição de afastamento das regras referidas, num caso individual – o que configuraria uma determinação ad hoc do tribunal. Afirma-se, assim, a ideia de perpetuatio jurisdictionis, com “proibição do desaforamento” depois da atribuição do processo a um tribunal, quer a proibição de tribunais ad hoc ou ex post facto, especiais ou excepcionais – a qual deve, aliás, ser relacionada também com a proibição, constante do artigo 209º, n.º 4, da Constituição, de
“existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes”, salvo os tribunais militares durante a vigência do estado de guerra (artigo 213º da Constituição).”
Ora, é manifesto que a norma em causa não colide com a vertente positiva ou com a vertente negativa do princípio do juiz natural, assim identificadas. O pressuposto de admissibilidade do recurso (só isso e não qualquer outro aspecto, designadamente relativo à determinação do tribunal competente ou à sua composição, se coloca) está legalmente predeterminado por um factor objectivo: a gravidade da pena [Afirmação esta de que seria ilegítimo inferir, a contrario, juízo desfavorável sobre critérios de base menos quantitativa ou com margem de apreciação (leave to appeal ou congéneres) quanto ao acesso ao órgão de topo da jurisdição, que não estão em apreço]. Essa objectividade não é desvirtuada pelo facto de o eventum litis que abre o recurso por banda do arguido ser a fixação concreta da pena imposta pelo tribunal recorrido, que não é legítimo colocar sob suspeita sistemática de manipulação tendente a subtrair essa possibilidade de recurso.
7. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 25 unidades de conta, sem prejuízo do regime de apoio judiciário de que beneficia.
Lisboa, 12 de Novembro de 2004
Vítor Gomes Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Artur Maurício