Imprimir acórdão
Processo n.º 810/2004
2.ª Secção Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de reclamação, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que figura com reclamante A. e como reclamados o Ministério Público, B. e outra, e C.., o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa decidiu não pronunciar os arguidos pelos crimes de que vinham acusados. O Ministério Público interpôs recurso. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 14 de Janeiro de 2004, ordenou a substituição da decisão recorrida por outra que pronunciasse o arguido A. pela prática de três crimes de homicídio negligente (artigo 137º, nº 1, do Código Penal) e por um crime de explosão negligente [artigo 272º, nº 1, alínea b), e nº
3, do Código Penal]. O arguido invocou a nulidade do acórdão de 14 de Janeiro de 2004, arguição que foi indeferida por acórdão de 24 de Março de 2004.
2. O arguido interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
A., arguido nos autos acima referenciados, notificado do douto despacho que indeferiu e manteve a nulidade do acórdão por alteração substancial dos factos, vem nos termos dos artigos 70°, n° 1, alínea b), 72°, n° 1, alínea b) e 75° da Lei n° 28/82 de 15 de Novembro e 280°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa, INTERPOR RECURSO PARA O VENERANDO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, suscitando que seja apreciada a inconstitucionalidade dos artigos 309°, 358°,
359º e 379°, n° 1, alínea c) do Código de Processo Penal por violação do artigo
32, n° 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, com a interpretação com que foram aplicados na decisão recorrida, questões já suscitadas no requerimento de arguição de nulidade do acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação, recurso que sobe imediatamente e em separado, com efeito suspensivo.
O recurso de constitucionalidade não foi admitido por despacho de 12 de Maio de
2004 com o seguinte teor:
O arguido A. veio, através do requerimento junto a fls. 1292, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70° da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão desta Relação proferido em 14 de Janeiro de 2004, pretendendo que seja apreciada a conformidade constitucional dos artigos 309°, 358°, 359° e 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal, com a interpretação com que foram aplicados na decisão recorrida, por os mesmos violarem os nºs 1 e 5 do artigo 32° da Lei Fundamental, dizendo que tais questões já haviam sido suscitadas no requerimento de arguição de nulidade do acórdão. Ora, salvo o devido respeito, entendemos que o recurso interposto pelo arguido não pode ser admitido. Em primeiro lugar, porque na indicada peça processual o recorrente não suscita qualquer inconstitucionalidade normativa limitando-se a afirmar que o acórdão (e não qualquer norma por ele aplicada) “está a violar despudoradamente os mais elementares direitos de defesa do arguido” e viola “o preceituado no artigo
379°, alínea b) do Código de Processo Penal e o artigo 32°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa”. Depois, porque um requerimento de arguição de nulidade não é o meio próprio para se suscitar uma questão de constitucionalidade se se queria que a mesma tivesse sido apreciada no acórdão cuja nulidade se argui. Mas, mesmo que nada disso sucedesse, sempre haveria que assinalar que o arguido interpôs o recurso de constitucionalidade fora do prazo indicado no n° 1 do artigo 75° da LTC, pelo que o requerimento não podia ser admitido sem que ele pagasse a multa correspondente a um dia de atraso. Na verdade, tendo sido informado do teor do acórdão que apreciou a invocada nulidade através de carta registada datada de 25 de Março, deve considerar-se notificado no dia 30 desse mesmo mês (artigo 113°, n° 2, do Código de Processo Penal). Contado o prazo de 10 dias a partir do dia 31 de Março (descontando o período das férias judiciais - artigo 12° da Lei n° 3/99, de 3 de Janeiro –
“Domingo de Ramos à segunda-feira de Páscoa”), verifica-se que ele terminou no dia 19 de Abril, uma segunda-feira. Ora, tendo o arguido apresentado o requerimento de interposição do recurso no dia 20 desse mesmo mês, não se pode deixar de considerar que o fez fora do prazo assinalado. Assim, e pelo exposto, não admito o recurso interposto pelo arguido A. para o Tribunal Constitucional.
3. O arguido vem agora reclamar, ao abrigo do disposto nos artigos 76º e 77º da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
A., arguido nos autos acima referenciados, tendo sido notificado do despacho que indeferiu o requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, vem nos termos do n° 4 do artigo 76° da Lei n° 28/82 de 15 de Novembro, RECLAMAR PARA O VENERANDO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, reclamação que será apreciada em sede de conferência, nos termos do n° 1 do artigo 77° da supra aludida lei, o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. Interpôs o ora reclamante recurso para o Tribunal Constitucional do douto despacho que indeferiu e manteve a nulidade do acórdão por alteração substancial dos factos, nos termos dos artigos 70º, nº 1, alínea b), 72° n° 1, alínea b) e
75° da Lei n° 28/82 de 15 de Novembro e 280º, n° 1 da Constituição da República Portuguesa, suscitando que fosse apreciada a inconstitucionalidade dos artigos
309º, 358°, 359º e 379º, n° 1, alínea c) do Código de Processo Penal por violação do artigo 32º, nº 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
2. O recurso não foi admitido com o fundamento de inadmissibilidade legal e por ser extemporâneo.
3. Analisemos as diversas questões pela ordem inversa do despacho de que agora se reclama. a) Do prazo
4. Salvo o devido respeito, equivocou-se o digníssimo Senhor Desembargador Relator a contar o prazo.
5. Com efeito, o reclamante aceita sem reservas as doutas considerações acerca da contagem dos prazos, que leva a concluir que o último dia do prazo seria o dia 19 de Abril, segunda- feira.
6. Ora, o requerimento de interposição de recurso foi remetido por correio sob registo precisamente no dia 19 de Abril (doc. nº 1), valendo como data do acto processual o da efectivação do respectivo registo postal (artigo 104°, n° 1 do Código de Processo Penal e artigo 150° do Código de Processo Civil).
7. Mas mesmo que assim não tivesse sido e se o requerimento apenas tivesse dado entrada no dia 20 de Abril, um dia após o prazo, o mesmo deveria ser também considerado como entrado dentro do prazo, mas neste caso a secretaria judicial deveria ter enviado as guias para pagamento da respectiva multa processual. b) Meio Idóneo
8. Qualquer meio, nomeadamente um requerimento de arguição de nulidade, é idóneo para suscitar a inconstitucionalidade.
9. Ao dizer-se “porque um requerimento de arguição de nulidade não é o meio próprio para se suscitar uma questão de constitucionalidade se se queria que a mesma tivesse sido apreciada no acórdão cuja nulidade se argui” está a afirmar-se que as eventuais questões de constitucionalidade teriam de ser suscitadas em momento anterior para que fosse apreciadas no acórdão.
10. Tal raciocínio peca por ser absurdo e de difícil concretização. Como pode adivinhar o arguido que o acórdão irá padecer na sua formulação final de inconstitucionalidade? Se o arguido suscitasse todas as eventuais, hipotéticas e académicas violações da Constituição antes da prolação do acórdão, para além de tal não ser viável, iria logo ser acusado de litigância de má fé.
11. No caso em apreço e uma vez que a inconstitucionalidade alegada apenas se dá no acórdão, o único meio de a suscitar seria necessariamente após a sua prolação. c) Normas Violadas
12. Não concorda o reclamante que não tenha, no seu requerimento de arguição de nulidade do acórdão, suscitado qualquer inconstitucionalidade normativa.
13. Ao dizer-se que o acórdão recorrido viola “o preceituado no artigo 379º, alínea b) do Código de Processo Penal e o artigo 32º, n° 1 da Constituição da República Portuguesa”, está precisamente a dizer-se que ao não reconhecer-se que o acórdão padece de nulidade por alteração substancial dos factos
(interpretação do artigo 379º, alínea b) do CPP) está a violar-se o artigo 32° da Constituição da República Portuguesa.
14. Mas como se tal não bastasse, o próprio despacho que indefere e manteve o acórdão, não reconhecendo, a nulidade do acórdão por alteração substancial dos factos, ele próprio na sua formulação e fundamentação, padece de inconstitucionalidade pois a aplicação dos artigos 309º, 358°, 359º e 379º, n°
1, alínea c) do Código de Processo Penal violam o artigo 32º, n° 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, com a interpretação com que foram aplicados. Pelo exposto, a presente reclamação deverá ser atendida e em consequência ser admitido o recurso para o Venerando Tribunal Constitucional.
O Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos:
A presente reclamação é manifestamente improcedente, já que o reclamante não suscitou, em termos procedimentalmente adequados, na peça processual em que arguiu nulidade do acórdão condenatório, proferido no seu confronto, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de servir de base ao recurso de fiscalização concreta, interposto da decisão da Relação que indeferiu as invocadas nulidades do acórdão.
Cumpre apreciar.
4. Sendo o recurso que o reclamante pretende ver admitido interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário, para que se possa tomar conhecimento do seu objecto, que a questão de constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. O Tribunal Constitucional tem entendido este requisito num sentido funcional. De acordo com tal entendimento, uma questão de constitucionalidade normativa só se pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo. Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem igualmente entendido que a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada antes da prolação da decisão recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela. Não se considera assim suscitada durante o processo a questão de constitucionalidade normativa invocada somente no requerimento de aclaração, na arguição de nulidade ou no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (cf., entre muitos outros, o Acórdão nº 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995). O reclamante não suscitou durante os autos, nem sequer no requerimento de arguição de nulidade do acórdão de 14 de Janeiro de 2004, qualquer questão de constitucionalidade normativa susceptível de constituir objecto de um recurso de constitucionalidade interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional do acórdão que indeferiu essa arguição de nulidade (acórdão de 24 de Março de 2004). Com efeito, em tal requerimento de arguição de nulidade (fls. 61 e ss.), o reclamante sustentou a ocorrência de uma alteração substancial dos factos, bem como a violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição pelo próprio acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa. Não foi, assim, suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa. Nessa medida, o recurso de constitucionalidade não podia ter sido admitido, por não se verificarem os respectivos pressupostos, pelo que a presente reclamação é manifestamente improcedente.
5. Alcançada esta conclusão, afigura-se inútil a análise dos demais fundamentos do despacho reclamado.
6. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando, consequentemente, o despacho reclamado.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 4 de Novembro de 2004
Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos