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Processo n.º 584/04
3.ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
(Conselheiro Vítor Gomes)
Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Por decisão da 2ª Vara Criminal de Lisboa foram os ora recorrentes, A. e B., condenados, respectivamente, nas penas de 4 anos de prisão e de 3 anos de prisão com execução suspensa, pela prática dos crimes de passagem de moeda falsa e de burla informática. Inconformados, recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, alegando, nomeadamente, para o que agora releva, o seguinte:
“[...] O pedido de informações, por uma entidade (C.) a outra (vários bancos estrangeiros) via fax, bem como a resposta a esse pedido de informações consubstanciam verdadeiras declarações não podendo as mesmas ser valoradas porquanto não respeitam o prescrito nos artigos 128º, 129º, 138º e 111º do CPP. A interpretação do douto acórdão é inconstitucional porquanto colide com o estatuído no art.º 32º da CRP. Por outro modo o douto acórdão valorou documentos, não assinados por um dos intervenientes (entidade bancária) ou apenas com uma rubrica. Esta interpretação do art.º 164º é inconstitucional porquanto colide com o estatuído no art.º 32º da CRP. [...] Conclusões
[...]
4- O douto acórdão socorreu-se, para formar a sua convicção, de vários documentos (fax's enviados para entidades bancárias estrangeiras) cuja valoração lhe estava vedada.
5 - Estes documentos consubstanciam declarações da testemunha D. e de pessoas não identificadas, dos bancos respectivos, sendo certo que as declarações não podem ser prestadas por documento.
6 - Acresce ainda que esses documentos apenas se encontram assinados pela testemunha D. (C.) não existindo identificação nem sequer assinatura da pessoa que alegadamente responde ao pedido de informações.
7 - De todo o modo, os cartões utilizados no Restaurante 'E.' e 'Boutique F.' não foram apreendidos, pelo que a testemunha D. não tem conhecimento directo se os mesmos são ou não fraudulentos.
8 - O conhecimento do D. advém-lhe da informação que lhe é dada pelo banco emissor dos cartões de crédito e por sua vez o conhecimento destes resulta da informação que alegadamente lhes foi fornecida pelos titulares dos cartões.
9 - Os recorrentes não puderam contraditar o depoimento do D. porquanto o seu conhecimento é duplamente indirecto.
10 - Resulta ainda que os documentos aludidos (fax's) estão escritos em língua inglesa o que os inquina de nulidade.
11.ª A interpretação dada pelo douto tribunal aos artigos 111º, 128º, 129º e
138º do CPP, inquina essas normas de inconstitucionalidade por contender com o estatuído com o art.º 32º da CRP.
12ª Por outro lado a interpretação que o douto tribunal deu ao art.º 164º do CPP, quando valora um documento anónimo, inquina essa norma de inconstitucionalidade por contender com o estatuído com o art.º 32º da CRP.
[...] Violaram-se as seguintes disposições: Artigo 32º da CRP; Artigos 111º, 128º, 129º, 138º, 164º e 374º do CPP, Artigos 70º, 71º e 72º do CP.”
2. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 17 de Março de 2004, concedeu parcial provimento ao recurso, fixando a pena da arguida recorrente em 3 anos de prisão, com execução suspensa. Escudou-se para tanto, designadamente, na seguinte fundamentação, constante de fls. 59 e 60 do acórdão recorrido:
“[...] D) - A arguida [...] e outro, contestam o depoimento de D. que qualificam de indirecto e por isso ineficaz como meio de prova. Efectivamente, a testemunha, D., inspector da C. permitiu perceber o modo de utilização dos cartões, o funcionamento dos terminais de pagamento bem como os códigos que nos visores destes terminais aparecem quando existe algum problema com o uso dos cartões, também explicou relativamente ás listas de fls. 76 a 94 os códigos que na mesma figuram e que em alguns casos impunham que o operador do terminal contactasse o C., o que não se verificou em qualquer dos casos, foram ainda explicadas as comunicações havidas com os bancos pretensamente emissores desses cartões e que deram origem a comunicações de utilização fraudulenta de que são exemplos o teor de fls. 130 e 134 dos autos, também confirmou os valores totais das transacções autorizadas e recusadas confirmando assim os valores constantes da acusação. Ora, em nosso entender, não se pode afirmar como o fez a recorrente que se trata de um depoimento indirecto.
É evidente que a C. é a entidade que está vocacionada para obter informações sobre os cartões de crédito que emite e tem todo o direito de obter junto dos bancos informações relativas á utilização ilícita de tais cartões. O depoimento do inspector bancário da C. reporta-se a factos dos quais este tem conhecimento directo e privilegiado, advindo das suas funções profissionais e, também, dos necessários conhecimentos técnicos para elucidar o Tribunal. Mais, na parte em que reflecte conhecimento advindos do que lhe foi transmitido, por terceiros, esse depoimento é admissível, nos termos da parte final, do n.º
1, do art. 129°, do C.P.P.. E não se diga que foram valorados documentos anónimos, pois que, relativamente a todos eles, é possível estabelecer a sua autoria - banco - . Mais, o facto de se encontrarem redigidos em língua estrangeira, não constitui nulidade, vício que só existirá se estiver tipificado na lei, nos termos dos arts. 118° a 120°, do aludido compêndio adjectivo, o que não ocorre. Portanto, não se vislumbra que o Tribunal “a quo” tenha violado os artigos 111°,
128º, 129º, 138º e 164º todos do CPP . Assim como não se verifica violação de garantia de defesa dos arguidos, resultando, tal como se refere na resposta do M.P .: 'a impossibilidade de estes exercerem o contraditório do facto de não terem quaisquer argumentos válidos e convincentes para porem em causa a prova produzida'. Assim não existe qualquer violação do art.º 32° do CRP.[...]”.
3. É deste acórdão que vem interposto o presente recurso, através de um requerimento do seguinte teor:
“[...], recorrentes nos autos, à margem identificados, vêm interpor recurso para o COLENDO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, nos termos do disposto na al. b) do n° 1 do art.º 70° da Lei 28/82 de 15/11, por não se conformarem com o douto acórdão supra indicado, para o que têm legitimidade e estão em tempo. Com efeito, o douto acórdão interpretou os artigos 111º, 128°, 129° , e 138° do CPP, com o sentido de que é admissível valorar o depoimento de testemunha que reflecte conhecimento vindos do que lhe foi transmitido, por terceiros, sem chamar estes a depor. Entendemos que as supra citadas normas devem ser interpretadas com o sentido de que não é permitido valorar depoimento indirecto quando a fonte não é chamada a depor. No caso concreto não só a fonte não foi chamada a depor como não vem demonstrada a sua impossibilidade. A interpretação que foi dada pelo douto acórdão viola o estatuído no artigo 32° n.° 1 e 5 da CRP. Mais interpretou o douto acórdão o artigo 164° com o sentido de que um documento proveniente de uma entidade bancária, com milhares de funcionários, em que se lhe apõe uma rubrica não é anónimo. Mais interpretou esse preceito com o sentido de que é possível valorar o conteúdo desse documento sem que o mesmo se mostre assinado por pessoa devidamente identificada. Entendemos que um documento ainda que seja proveniente de um banco deve vir assinado por o seu representante legal, ou, pelo menos, por pessoa identificável, a fim de ser possível contraditá-lo. A interpretação que foi dada, pelo douto acórdão, colide com o estatuído no artigo 32°, n° 1 e 5° da CRP. São, pois, inconstitucionais aquelas normas quando interpretadas com o sentido que lhes foi dado pelo douto tribunal a quo. O recorrente suscitou a inconstitucionalidade das normas supra identificadas na sua motivação de recurso interposto para o venerando Tribunal da Relação de Lisboa.”
4. Já no Tribunal Constitucional foi o recorrente notificado para alegar, o que fez.
5. Contra-alegou o Ministério Público - recorrido, tendo concluído da seguinte forma:
“1. Não deve conhecer-se do recurso sempre que a interpretação e aplicação normativa em causa não constitui a “ratio decidendi”, mas antes simples “obter dicta”.
2. Obsta igualmente ao conhecimento do recurso, a constatação de que da eventual declaração de inconstitucionalidade de uma dada interpretação normativa, nenhum efeito útil se retiraria relativamente à questão de mérito discutida no processo.
3. Não deve o Tribunal Constitucional apreciar a conformidade constitucional de preceito legal, quando ele não foi aplicado na decisão recorrida com o sentido que lhe foi imputado.
4. Termos em que, não deverá conhecer-se do recurso.”.
6. Notificados da questão prévia suscitada pelo representante do Ministério Público, os recorrentes nada disseram
7. Pelo relator, foi, entretanto, proferido o seguinte despacho:
“[…] O recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (art. 72º, n.º 2, da LTC). Ora, nas alegações de recurso perante o Tribunal da Relação não se vislumbra uma motivação substanciada das razões pelas quais se afirma a inconstitucionalidade das normas em causa. A este propósito, seja no corpo das alegações, seja nas respectivas conclusões, não se descortina senão a afirmação de que a interpretação dada pelo acórdão do tribunal colectivo às normas em causa é inconstitucional porquanto colide com o estatuído no art.º 32º da CRP. Não se enunciam minimamente as razões em que se sustenta esse juízo de desconformidade com o preceito constitucional, que é complexo e comporta vários princípios. Pode razoavelmente sustentar-se que esse não é um modo processualmente adequado de colocar perante o tribunal a quo uma questão de constitucionalidade normativa para que o referido ónus de suscitação se considere cumprido, pelo que, sendo plausível que venha a decidir-se não conhecer do objecto do recurso com este fundamento, determino a notificação dos recorrentes e do Ministério Público para se pronunciarem, querendo, sobre tal questão.”
8. Notificadas as partes, vieram os recorrentes responder, sustentando, em síntese, que a questão de constitucionalidade se considera suscitada durante o processo quando seja colocada em termos de o tribunal a quo ficar em condições de saber que tem de se pronunciar sobre ela, o que no caso terá sucedido, como se vê a fls. 59 e 60 do acórdão recorrido. O Ministério Público, por seu turno, admitiu que, aos obstáculos ao conhecimento do recurso que já suscitara, acresça o que se perspectivou no despacho do relator.
Tendo havido mudança de relator, por vencimento, cumpre formular a decisão.
II - Fundamentação
9. Admitido o recurso no Tribunal da Relação de Lisboa e não obstante ter sido determinada a produção de alegações, cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do seu objecto.
Emitido o parecer do relator, vieram os recorrentes propugnar pelo conhecimento do recurso, nos termos supra transcritos, alegando fundamentalmente que a questão de constitucionalidade se considera suscitada durante o processo quando seja colocada em termos de o tribunal a quo ficar em condições de saber que tem de se pronunciar sobre ela, o que no caso terá sucedido.
Não têm, porém, razão os recorrentes. E não tem razão, em rigor, não só porque, por um lado, não se pode considerar que, durante o processo, tenha sido suscitada uma questão de constitucionalidade normativa susceptível de abrir uma via de recurso de constitucionalidade para este Tribunal, mas também porque, por outro lado, manifestamente, não foi suscitada, de modo processualmente adequado, perante o tribunal recorrido, uma tal questão de constitucionalidade normativa que, agora, pelo Tribunal Constitucional possa vir a ser apreciada.
9.1. De facto, como é sabido, o recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, visa submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a constitucionalidade de norma(s) aplicada(s) pela decisão recorrida. É, por isso, jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada que, estando em causa a própria decisão em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da Lei n.º 28/82, e assim tem sido afirmado pelo Tribunal Constitucional em inúmeras ocasiões. Na verdade, ao contrário dos sistemas em que é admitido recurso de amparo, nomeadamente na modalidade de amparo dirigido contra decisões jurisdicionais que, alegadamente, violam directamente a Constituição, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal não se destina ao controlo da decisão judicial recorrida, como tal considerada, como sucede quando a discordância se dirige a esta última, mas, pelo contrário, ao controlo normativo de constitucionalidade da norma aplicada.
Dos presentes autos resulta que os recorrentes consideraram, nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que teriam sido violados, entre outros, os artigos 111º, 128º, 129º, 138º e 164º do CPP - aqueles cuja constitucionalidade pretendem ver apreciada - e o artigo 32º da Constituição - norma que serviria de parâmetro para a aferição da respectiva constitucionalidade. Ora, como se afirmou no Acórdão n.º 489/2004 (disponível na página Internet do Tribunal em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), “se se utiliza uma argumentação consubstanciada em vincar que foi violado um dado preceito legal ordinário e, simultaneamente, violadas normas ou princípios constitucionais, tem-se por certo que a questão de desarmonia constitucional é imputada à decisão judicial, enquanto subsunção dos factos ao direito, e não ao ordenamento jurídico infra-constitucional que se tem por violado com essa decisão, pois que se posta como contraditório sustentar-se que há violação desse ordenamento e este é desconforme com o Diploma Básico. Efectivamente, se um preceito da lei ordinária é inconstitucional, não deverão os tribunais acatá-lo, pelo que esgrimir com a violação desse preceito, representa uma óptica de acordo com a qual ele se mostra consonante com a Constituição.” E se é certo que, questionada a constitucionalidade da própria decisão judicial não é legítimo às instâncias deixarem de apreciar uma tal questão, também não deixa de ser pacífico que a mera suscitação dessa mesma questão - respeitante à constitucionalidade da decisão - não abre a via de recurso para o Tribunal Constitucional.
Não pode, assim, conhecer-se do presente recurso.
9.2. No presente caso, é manifesto que se não pode considerar que uma questão de constitucionalidade normativa tenha sido “suscitada, pelo recorrente, de modo processualmente adequado, perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida”, conforme exige o n.º 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional.
Com efeito, na referência que à problemática é feita nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, os recorrentes limitam-se a afirmar que a interpretação - que, em caso algum identificam - dada pelo tribunal aos artigos Código de Processo Penal que questionam, “inquina essas normas de inconstitucionalidade por contender com o estatuído com o art.º 32º da CRP.” Ora, uma tal forma de proceder é manifestamente insuficiente para que se possa considerar cumprido o ónus, que impende sobre o recorrente, de, caso pretenda vir a recorrer para o Tribunal Constitucional, suscitar previamente, perante o tribunal recorrido, de modo processualmente adequado, uma questão de constitucionalidade normativa que por este possa vir a ser apreciada.
Na verdade, este pressuposto de admissibilidade do recurso só é, em regra, de considerar preenchido quando o interessado, pelo menos, identifica a norma que reputa de inconstitucional, menciona a norma ou princípio constitucional que considera infringido e justifica, ainda que de forma sumária, mas de modo claro e preciso, as razões que, no plano constitucional, invalidam a norma e impõem a sua “não aplicação” pelo tribunal da causa, ao abrigo do disposto no artigo 204º da Constituição. O que, de todo em todo, não aconteceu no presente caso.
E nem se diga que basta que, apesar de uma hipotética deficiência da colocação da questão de constitucionalidade por parte do(s) recorrente(s), o tribunal a quo se tenha efectivamente ocupado dela e assumido que a tinha como objecto de pronúncia obrigatória. Não basta. Por um lado, porque o tribunal a quo poderá estar confrontado com uma questão de inconstitucionalidade da decisão judicial sobre a qual não pode deixar de se pronunciar, sem, que tal suscitação da questão abra o recurso para o Tribunal Constitucional; por outro lado, porque, no nosso sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade, tal como se encontra constitucional e legalmente desenhado, não é admissível substituir o
ónus de suscitação atempada de uma questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a decisão por uma qualquer pronúncia que este, por qualquer imaginável razão, venha a produzir.
Também por este motivo, aliás por si só suficiente, não pode conhecer-se do presente recurso.
9.3. Assim sendo, em face do exposto, não pode efectivamente o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do recurso, por se verificar que o recorrente não suscitou, durante o processo e de modo processualmente adequado, uma questão de constitucionalidade normativa.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 10 (dez) unidades de conta, por cada um.
Lisboa, 21 de Dezembro de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Vítor Gomes (vencido, conforme declaração junta). Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, conforme declaração do Sr. Cons. Vítor Gomes, no essencial). Artur Maurício
Declaração de voto
Como primitivo relator apresentei a seguinte proposta de solução para a questão que conduziu ao não conhecimento do objecto do recurso, na qual fiquei vencido:
“A primeira interrogação a que, na sequência do despacho de fls.2503 importa responder, é a de saber se deve considerar-se suscitadas pelos recorrentes, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, as concretas questões de constitucionalidade que agora submetem ao Tribunal Constitucional. A dúvida a que esse despacho dá voz justifica-se pelo facto de, no corpo da motivação do recurso do acórdão do tribunal colectivo perante o Tribunal da Relação, os recorrentes, depois de criticarem a interpretação e aplicação das normas em causa pela sentença de 1ª instância, no que respeita à violação de normas e princípios constitucionais se limitarem a afirmar a inconstitucionalidade dessa interpretação por violação do artigo 32.º da Constituição, sem uma argumentação autónoma tendente a demonstrar tal imputação, e a concluir nos termos seguintes:
“ ( ...)
11 - A interpretação dada pelo douto tribunal aos artigos 111.º, 128.º, 129.º e
138.º do CPP, inquina essas normas de inconstitucionalidade por contenderem com o estatuído com o artigo 32.º da CRP.
12 – Por outro lado a interpretação que o douto tribunal deu ao artigo 164.º do CPP, quando valora um documento anónimo, inquina essa norma de inconstitucionalidade por contender com o estatuído no artigo 32.º da CRP.”
O Tribunal começa por lembrar que, em princípio, a colocação da questão de constitucionalidade em termos adequados a abrir a via de recurso previsto na alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC exige um esforço argumentativo por parte do recorrente em ordem a procurar convencer o tribunal a quo de que deve recusar a aplicação da norma de direito ordinário, exigência que não se basta com a mera afirmação abstracta de que uma dada interpretação é inconstitucional. Este requisito só é, em regra, de considerar preenchido quando o interessado identifica a norma que reputa de inconstitucional, menciona a norma ou princípio constitucional que considera infringidos e justifica, ainda que de forma sumária, mas de modo claro e preciso, as razões que, no plano constitucional, invalidam a norma e impõem a sua “não aplicação” pelo tribunal da causa ao abrigo do disposto no artigo 204.º da Constituição. Sem prejuízo disso, nas circunstâncias do caso, tem de julgar esse requisito como verificado, por estar atingido o fim legal para que foi instituído e o legitima no sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade. Efectivamente, a expressão “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”, introduzida pelo legislador ordinário ao abrigo do n.º 4 do artigo
280.º da Constituição, é corolário da natureza e do sentido do sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade das normas, em especial da estrutura de recurso que assume a intervenção do Tribunal Constitucional como órgão jurisdicional competente para dizer a última palavra na matéria, reservando a primeira palavra para os tribunais da causa (Cfr. art.ºs 204.º e 280.º, n.ºs 1 e 4, da CRP). O recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da LTC pressupõe que o tribunal recorrido tenha sido colocado em condições de ter ou dever ter formado um juízo de não inconstitucionalidade sobre a norma aplicada. Mas também nesta vertente, os critérios normativos de decisão hão-de ser critérios funcionais, que façam passar a decisão de saber se o conteúdo de determinada peça processual deve ser considerado idóneo pela averiguação concreta da aptidão daquele conteúdo para realizar as funções que legitimam a exigência legal. Nesta perspectiva, ao menos em casos de fronteira, não se justifica dar o apontado requisito por não verificado quando, apesar da deficiência na colocação da questão de constitucionalidade, o tribunal a quo se tenha efectivamente ocupado dela como ratio decidendi e assumido que a tinha como objecto de pronúncia obrigatória. Entendimento que se impõe, ainda, por ser o de maior conformidade à regra de que a concreta conformação da relação processual, também no que respeita à questão incidental de constitucionalidade perante o tribunal da causa, escapa à competência do Tribunal Constitucional. Ora, no caso, as conclusões 11 e 12 da motivação do recurso perante a Relação enunciam questões de constitucionalidade referidas a normas jurídicas, respeitantes à admissão e valoração da prova. A escassez da substanciação que lhes corresponde no corpo da motivação não impediu o acórdão recorrido de conhecer de tais questões, embora de modo lacónico. Na alínea D), do ponto “2.4- Das [q]uestões do recurso”, depois de se ocupar das questões de direito ordinário relativos à admissibilidade dos meios de prova em causa, o acórdão recorrido, embora com sucinta fundamentação, não deixou de considerar que a interpretação e aplicação das normas em causa pelo tribunal de 1ª instância, que coonestou, não conduz a violação das garantias do arguido nos termos do artigo
32.º da Constituição. Entendeu, portanto, a questão de constitucionalidade como colocada em termos suficientes para se dever ocupar dela, julgando-a improcedente em vez de rejeitá-la.. Nestas circunstâncias, considera-se alcançada a finalidade última visada com a exigência legal estabelecida pela parte final da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º, em conjugação com a 2ª parte do n.º 2 do artigo 72.º da LTC…”.
Mantenho esta posição, em que estão suficientemente espelhados os meus pontos de encontro e desencontro com o entendimento que prevaleceu. Apenas acrescento que esta solução, eu meu entender, não equivale à substituição do
ónus de suscitação atempada da questão de constitucionalidade normativa por uma qualquer pronúncia do tribunal a quo na matéria. Limita-se a reconduzi-lo ao sentido que, numa interpretação teleológica das normas processuais, me parece adequar-se à natureza recursória da intervenção do Tribunal em fiscalização concreta ou, por outro ângulo, à exigência suficiente para assegurar a
“repartição” de tarefas no sistema português de controlo da constitucionalidade de normas jurídicas.
Vítor Gomes