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Processo n.º 920/2004
2.ª Secção Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que figura como recorrente A. e como recorrida B., a Relatora proferiu a seguinte Decisão Sumária:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que figura como recorrente A. e como recorrida B., o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 17 de Junho de
2004, no âmbito de uma acção de despejo, considerou o seguinte:
A recorrente colocou à consideração deste Tribunal, no essencial duas questões: A caducidade do direito ao arrendamento e a aplicação do regime da renda condicionada. Encontram-se provados os seguintes factos:
-a)- A Autora é dona do prédio sito ---------------------------, nº ---, em Lisboa, inscrito sob o artigo ---- da matriz predial urbana da freguesia d---
-----------------, em Lisboa.
-b)- Em 17.2.1965 a aqui Autora, juntamente com C., D., e E., como senhorios, e F., como inquilino, subscreveram de comum acordo o escrito de fls. 9 dos presentes autos, designado por 'arrendamento', pelo qual disseram ajustar 'entre si o arrendamento do r/chão Esq. do prédio sito -------------------- ------, nº
---- em Lisboa, acima referido, pela renda mensal de 1.400$00, pelo prazo de seis meses, renovável, com o início em 1.3.1965.
-c)- Por morte do mencionado F. sucedeu na mencionada posição de inquilino ou arrendatário a sua mulher G., a qual veio a falecer em 7.9.1997.
-d) - A 1ª R. nasceu em 3.5.1973, filha dos identificados F. e G., tendo casado em 25.9.1999 com o 2º R./interveniente H..
-e) - A identificada 1ª R. viveu sempre na fracção indicada acima - em B) - desde o seu nascimento, e continuou aí a viver mesmo após o falecimento de sua mãe em 7.9.1997, sendo que em conjunto com o 2º R., após o casamento de ambos em
25.9.1999.
-f)- No prédio de que é proprietário o acima referido a A) nestes últimos cinco a seis anos, deu em arrendamento duas outras fracções pelas rendas mensais, respectivamente, de Esc. 100.00$00 e Esc. 85.00$00.
-g)- O prédio referido em c) foi construído na época Pombalina e tem uma fachada de azulejos.
-h)- A mencionada fracção tem seis divisões, cozinha, casa de banho e um quintal.
-i) - A lª R. remeteu à Autora e esta recebeu, em 29.9.1997, uma carta registada com AR de comunicação à Autora do falecimento de sua mãe e da sua habitação no locado, com inclusão de duas certidões - de óbito e nascimento - e de um atestado da Junta de freguesia do ----------, tal como se documenta a fls. 46/51 dos autos. Estes os factos provados e que se mostram relevantes para se apreciar das questões colocadas a este Tribunal. Dispõe o art. 85º da R.A.U. - Dec.-Lei nº 321-B/90 de 15/10
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver: a) Cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e de facto: b) Descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano. Ao arrendatário F. sucedeu-lhe seu cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto – G., que veio a falecer a 7.9.1997.
À G., sucedeu sua filha, a ora Ré B., nascida em 3.5.1973 e casada com o R. interveniente H.. A Ré B., viveu sempre na fracção objecto da presente acção, consequentemente não mais de um ano, à data do falecimento de sua mãe, contando portanto com 24 anos e quatro meses de idade. Ora, nos termos do art. 87º do R.A.U., os contratos transmitidos para descendentes com mais de 20 anos de idade e menos de 65 ... É aplicável o regime chamado condicionado - nº 1 - e o nº 2. - dispõe: Aos contratos transmitidos para descendentes ou afins menores de 20 anos aplica-se o regime do número anterior quando estes completam aquela idade e desde que decorrido um ano sobre a morte do arrendatário.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, deve o transmissário comunicar ao senhorio, por declaração escrita, a data em que completa 26 anos de idade, com a antecedência mínima de 30 dias. Conforme as disposições acabadas de referir, a ré B., à data do falecimento de sua mãe, arrendatária na ocasião por ter sucedido ao seu cônjuge em consequência da morte deste, sucedeu ao direito de arrendamento na sua mãe. Conforme, o nº 3 no art. 87º do R.A.U., o transmissário, deve comunicar ao senhorio, por escrito, a data em que completa 26 anos de idade, com a antecedência mínima de 30 dias. A transmissária - Ré B., na ocasião do falecimento de sua mãe, comunicou ao senhorio o falecimento de sua mãe e deu-lhe ainda conta da sua idade, enviando-lhe as respectivas certidões de óbito (de sua mãe) e de nascimento, o que aconteceu a 29.9.1997, por carta registada com aviso de recepção, carta que foi recebida pela Autora ora recorrente. Foi assim a senhoria informada pela 1ª Ré, com antecedência bem superior aos 30 dias previstos no nº 2 do art. 87º da R.A.U. como cumpriu o disposto no art. 89º do mesmo diploma legal. Não tinha assim a Ré que efectuar nova comunicação com 30 dias de antecedência da data em que prefazia os 26 anos de idade. Na verdade, dispõe o art. 89º do R.A.U.:
1. O transmissário não renunciante deve comunicar ao senhorio, por carta registada com aviso de recepção, a morte do primitivo arrendatário ou do cônjuge sobrevivo, enviada nos 180 dias posteriores à ocorrência.
2. A comunicação referida no número anterior deve ser acompanhada dos documentos autênticos ou autenticados que comprovem os direitos do transmissário. Conforme ficou provado a ré enviou os documentos conforme o imposto pelo sempre referido art. 89º e fê-lo atempadamente e em cumprimento do disposto não só no artigo 87º nº 3, como ainda do nº 89º. Não tinha assim que repetir a comunicação nem tinha que enviar novos documentos, conforme pretende e não há que fazer qualquer referência ao art. 89º-D do R.A.U. pois que não houve qualquer incumprimento dos prazos fixados. Aliás, este preceito - art. 89º - D - só tem aplicação supletiva, isto é, nos casos em que outra sanção, expressa ou implícita, não tiver sido especialmente cominada cfr. Jorge Alberto Aragão Seia - Arrendamento Urbano, anotado e comentado, 2ª edição, pág. 473 em anotação ao referido art. 89º- D.-.
- Quanto à 2ª questão - aplicação do regime de renda condicionada: Com efeito dispõe o art. 89º do R.A.U.:
1. Os contratos transmitidos para descendentes com mais de 26 anos de idade e menos de 65, para descendentes com menos de 65 anos e afins na linha recta, nas mesmas condições, é aplicável o regime de modo condicionado.
2. Aos contratos transmitidos para descendentes ou afins de 26 anos aplica-se o regime do número anterior quando estes completarem aquela idade e desde que decorrido um ano sobre a morte do arrendatário.
3. Para efeitos do disposto no número anterior, deve o transmissário comunicar ao senhorio, por declaração escrita, a data em que completa 26 anos de idade, com a antecedência mínima de 30 dias. A transmissária, ora recorrida, à data da transmissão do contrato tinha menos de
26 anos de idade, pelo que seria aplicável o disposto no nº 2 do referido art.
87º do R.A.U. Com a aplicação deste regime de renda - renda condicionada em função da idade dos descendentes quis-se permitir uma actualização das rendas antigas. Tal regime é aplicável, quando se transmite o arrendamento para parentes ou afins com idade inferior a 26 anos de idade, apenas a partir do momento em que o arrendatário/transmissário completa os 26 anos de idade - e nunca antes de decorrido um ano sobre a morte do arrendatário. E a razão, entre outras pela qual se impõe que o transmissário comunique ao senhorio, por escrito e com a antecedência mínima de 30 dias, da data em que completa 26 anos de idade. A Ré, com o transmissário procedeu a tal declaração, enviando documento autêntico com antecedência superior aos 30 dias, dando assim conhecimento da sua idade e data em que completava os 26 anos de idade, mais não tinha que fazer. Nos termos do art. 405º do Cód. Civil, dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos nestes as cláusulas que lhes aprouver. Ora, tendo a senhoria tido conhecimento da data em que a ré completou os 26 anos de idade e tendo essa conhecimento com uma antecedência de mais de dois anos, se nada fez para proceder à alteração da renda, passando-a a renda condicional, nada fez ! Não pode por isso de qualquer modo responsabilizar a arrendatária por tal facto, como não pode exigir neste momento o pagamento de tal montante desde a data que a arrendatária completou os 26 anos. Perante tal facto, o pagamento da renda condicionada, apenas seria exigível a partir da citação para a presente acção e nunca retroactivamente. Acontece, para além disso, que a senhoria e a inquilina não se mostram de acordo quanto ao montante de renda pedida pelo que, tal questão teria de ser solucionada com o recurso à avaliação através da respectiva comissão nos termos do Código de Avaliação - art. 80º do R.A.U. - Assim e por todo o exposto nega-se provimento ao presente recurso de Apelação e confirma-se a decisão recorrida, embora com outros fundamentos.
2. A. interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
A., apelante no processo à margem indicado, tendo sido notificada do, aliás douto, acórdão que negou provimento ao recurso, dele vem recorrer para o Tribunal Constitucional. O recurso tem fundamento na alínea g) do n° 1 do art° 70 da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, por aplicação do art° 80 do R.A.U. aprovado pelo D.L. n° 321-B/90, de 15 de Outubro, disposição legal que remete para o art° 36 do mesmo Dec-Lei, que prevê recurso a comissão especial de avaliação. A referida disposição legal foi julgada inconstitucional pelo Ac. n° 33/96 n°
789/92 da 1ª Secção do Tribunal Constitucional de 17/01/96 publicado no D.R. II Série n° 102, de 02/5/96 e Acórdão do Tribunal Constitucional n° 114/98 publicado na I Série do D.R. n°
61/98, de 13/3/98. O recurso tem efeito suspensivo e sobe nos próprios autos. Por ser o próprio e estar em tempo, Requer-se a V. Exa se digne admiti-lo, seguindo-se os demais trâmites.
Cumpre apreciar.
3. O recurso de constitucionalidade previsto na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional cabe de decisão que aplique norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional. A recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a norma do artigo 80º do Regime do Arrendamento Urbano, cuja redacção é a seguinte:
Artigo 80º
(Valor actualizado dos fogos) Para efeitos do disposto no artigo anterior, o valor actualizado dos fogos é o seu valor real, fixado nos termos do Código das Avaliações.
Ora, tal preceito remete para o Código das Avaliações e não para o artigo 36º do Regime do Arrendamento Urbano, ao contrário do que a recorrente afirma. A recorrente indica, por outro lado, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs
33/96 e 114/98, como arestos que julgaram inconstitucional a norma impugnada. Contudo, tais arestos não julgaram inconstitucional a norma do artigo 80º do Regime do Arrendamento Urbano, mas sim a do artigo 36º desse regime. Nessa medida, a norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional nos arestos indicados não foi a norma que a recorrente impugnou
(e aplicada nos autos), pelo que não se verifica o pressuposto processual de recurso da alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, consistente na aplicação pela decisão recorrida da norma julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional. Não se tomará, portanto, conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
4. Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente recurso.
2. A Recorrente vem agora reclamar para a Conferência, ao abrigo do nº 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
A., recorrente no processo à margem indicado, tendo sido notificada do, aliás douto, despacho que decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso, vem reclamar do mesmo despacho para a conferência, nos termos do art° 78-A da Lei Orgânica o que faz com os fundamentos seguintes:
1. É verdade que a sentença refere a comissão a que se refere o art° 80 do R.A.U. Mas fá-lo incorrectamente, pois, nestes casos de avaliação da renda condicionada que é aplicada no caso dos autos se não se verificar a caducidade do direito à sucessão no contrato de arrendamento. Na realidade, o cálculo da renda condicionada é efectuado de acordo com a fórmula indicada nos art°s 17° a 19° da P.I.
2. Ora, notificado o cálculo efectuado pelo senhorio, de acordo com o Dec.-Lei n° 13/86, 23 de Janeiro, com os índices aí definidos e devidamente apresentados nos artigos 17° e 18° da Petição Inicial, o inquilino haveria de os impugnar e apresentar na contestação e culminaria no valor final da renda.
3. Só a partir daí se levantava a questão do recurso à comissão prevista no art° 36 do R.A.U. e nunca do art° 80 do mesmo R.A.U. Desta forma, o acórdão do Tribunal da Relação cujo fundamento se não aceita por remeter erradamente para a avaliação do art° 80 do R.A.U. quando só poderia fazê-lo para o art° 36 do R.A.U., que, por sua vez, já foi declarado inconstitucional. Nestes termos, Requer-se a V. Exa se digne que seja submetido à conferência o despacho de não conhecimento do objecto do recurso que é prejudicial à recorrente.
A reclamada pronunciou-se do seguinte modo:
B., nos autos à margem referenciados, vem responder ao requerimento de reclamação para a conferência nos termos seguintes:
1º A norma julgada inconstitucional pelos Acórdãos referidos pela reclamante foi a do art. 36º do RAU.
2º Sucede que a reclamante não impugnou essa norma mas a do art. 80º do mesmo RAU.
3º Sendo assim, como é, não se verifica o pressuposto processual de recurso da alínea g) do nº 1 do artº 70º da Lei do TC.
4º Quanto ao resto seria problema das Instâncias... se ainda as houvesse...
Cumpre apreciar.
3. O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo da alínea g) do nº
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a recorrente submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a norma do artigo 36º do Regime do Arrendamento Urbano, norma julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional nos Acórdãos nºs 33/96 e 114/98. No entanto, a norma aplicada pela decisão recorrida foi o artigo 80º do Regime do Arrendamento Urbano. A reclamante sustenta que o tribunal a quo aplicou erradamente o referido artigo
80º do Regime do Arrendamento Urbano, afirmando não aceitar o fundamento do acórdão recorrido “por remeter erradamente para a avaliação do artigo 80º do RAU, quando só poderia fazê-lo para o artigo 36º”. Ora, não cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a correcta ou incorrecta aplicação, in casu, do artigo 80º do Regime do Arrendamento Urbano. Com efeito, no âmbito de um recurso interposto ao abrigo da alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional cabe ao Tribunal averiguar se a norma impugnada foi aplicada pela decisão recorrida e se tal norma foi julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional no aresto invocado. No presente caso, a norma impugnada foi a do artigo 36º do Regime do Arrendamento Urbano. A norma aplicada pela decisão recorrida foi, porém, a do artigo 80º do Regime do Arrendamento Urbano (como resulta da transcrição feita na Decisão Sumária agora reclamada). Verifica-se, portanto, como de resto se demonstrou na Decisão Sumária impugnada, que a norma invocada pela recorrente não foi aplicada pela decisão recorrida. Se o tribunal a quo fez errada aplicação do direito infraconstitucional, o mecanismo processual a utilizar não será o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade previsto na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, que apenas tem por objecto a apreciação de questões de constitucionalidade normativa. Como a recorrente não configurou perante o tribunal a quo a questão que pretende ver apreciada de modo a abranger o artigo 80º do Regime do Arrendamento Urbano, norma efectivamente aplicada na decisão recorrida (não cabendo no presente recurso apreciar se bem ou mal), há agora que confirmar a Decisão Sumária reclamada.
4. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a Decisão Sumária reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 17 de Dezembro de 2004
Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos