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Processo n.º 955/04
1.ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. deduziu reclamação do despacho do Conselheiro Relator que, no Supremo Tribunal de Justiça, não admitiu o recurso que pretendia interpor para o Tribunal Constitucional.
2. Resulta dos autos que:
2.1. No Tribunal do Trabalho da Comarca de Braga, B. intentou, em Novembro de 1999, contra A., acção emergente de contrato individual de trabalho, formulando pedido de indemnização fundado em despedimento ilícito.
Após audiência de discussão e julgamento com gravação da prova, foi proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente e condenando a Ré a pagar ao Autor a quantia de 25.252.835$00, acrescida de juros de mora desde a citação.
2.2. Em recurso de apelação, a Ré A. impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto, requereu a respectiva ampliação, suscitou questões relativas ao cálculo e ao carácter retributivo das comissões de venda atribuídas ao Autor e à existência de justa causa de despedimento e invocou a violação do disposto no artigo 69º do Código de Processo de Trabalho de 1981.
O Tribunal da Relação do Porto rejeitou o recurso na parte respeitante à impugnação da matéria de facto por considerar que a recorrente não tinha efectuado, na sua alegação, a transcrição, através de escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se fundava, conforme impunha o artigo 690º-A, n.º 2, do Código de Processo Civil. Quanto ao mais, negou provimento à apelação.
2.3. No recurso de revista que interpôs da decisão do Tribunal da Relação, A. formulou, entre outras, as seguintes conclusões nas alegações que apresentou
(fls. 946 e seguintes dos presentes autos):
“[...]
3. O Acórdão recorrido absteve-se de apreciar o recurso da matéria de facto, rejeitando-o nessa parte, na medida em que considerou ter a Recorrente violado o disposto no n.° 2 do artº 690°-A do CPC dado não ter procedido à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que funda a sua pretensão.
4. Tal entendimento é apenas correcto na redacção original do n.° 2 do artº
690º-A do CPC, a qual foi alterada pelo DL n.° 183/2000, de 10 de Agosto.
[...]
7. O DL n.° 183/2000 veio alterar o regime do recurso da matéria de facto, desonerando o recorrente da transcrição dactilografada dos depoimentos gravados.
[...]
9. Ao rejeitar o recurso de apelação na parte relativa à reapreciação da matéria de facto, em virtude da não transcrição, por via de escrito dactilografado, dos depoimentos em que a Recorrente funda a sua pretensão, a decisão recorrida violou o disposto no artº 690º-A do CPC, na redacção introduzida pelo DL n.°
183/2000, de 10 de Agosto.
[...]
22. De qualquer modo, para que fosse admissível a condenação para além do pedido impunha-se a prévia audição dos interessados, requisito que não foi respeitado, razão pela qual a douta decisão enferma de inconstitucionalidade por violação do princípio do estado de direito democrático, acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e da função jurisdicional, consagrados nos artºs 2º, 20º e 202º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa.
[..].”.
Nas suas contra-alegações, o Autor da acção, A., pronunciou-se no sentido da confirmação da decisão impugnada (fls. 967 e seguintes).
Por sua vez, o representante do Ministério Público emitiu parecer em que concluiu pelo não provimento do recurso (fls. 1020 e seguintes), tendo sustentado, para o que aqui releva:
“[...] A presente acção foi instaurada na data de 22/11/1999, como consta de fls. 2. E embora a apelação tenha sido interposta na data de 29/1/2002, como se vê de fls.
826, de uma sentença proferida em 7/12/2001, como se vê de fls. 818, à tramitação do recurso não era de aplicar o disposto no DL 183/2000, de 10 de Agosto. Uma vez que, embora este diploma legal tenha entrado em vigor na data de
1/1/2001, ao abrigo do disposto no seu art. 8º, o respectivo regime apenas é de aplicar aos processos pendentes nessa data nos quais a citação do réu ou de terceiros não tivesse ainda sido efectuada ou ordenada, como dispõe o seu art.
7º, n.º 3. E assim esta disposição transitória afasta a regra de que aos diversos actos processuais se aplica, como lei reguladora, aquela que estiver em vigor no tempo da sua prática. Ora, como refere a própria «A.» nas suas alegações de recurso (cfr. o primeiro parágrafo de fls. 948), o entendimento do Tribunal da Relação que conduziu ao não conhecimento da impugnação deduzida na apelação sobre a matéria de facto que deve ser considerada no processo «é efectivamente correcto na redacção original do preceito em questão (n.º 2 do art. 690º-A do CPC)». Razão pela qual improcederá a primeira pretensão suscitada pela «A.» no presente recurso.
[...].”.
2.4. Por acórdão de 9 de Março de 2004, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida (fls. 1042 e seguintes).
Lê-se nesse acórdão, na parte que agora importa considerar:
“[...] A primeira questão a dirimir respeita a saber se a recorrente, no recurso de apelação que interpôs perante o Tribunal da Relação, cumpriu o formalismo processual legalmente exigido para a impugnação da decisão de facto. O artigo 690°-A do CPC, aditado pelo Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, na sequência da admissibi1idade do registo das provas produzidas em audiência de julgamento – medida inovadora que havia sido introduzida por esse diploma em vista a garantir um efectivo segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto –, veio impor ao recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto um especial ónus de alegação no que respeita à delimitação do objecto do recurso e
à sua fundamentação (cfr. preâmbulo do diploma). Dispõe esse preceito, na sua primitiva redacção:
[...] Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, no propósito de implementar algumas medidas simplificadoras ao nível do processo civil declarativo comum que pudessem, de algum modo, favorecer a celeridade processual, veio substituir aquele regime de transcrição das passagens da gravação por um novo sistema de indicação dos depoimentos por mera remissão para o início e termo da respectiva audição que estiver assinalado na acta. O Decreto-Lei n.º 183/2000 entrou em vigor, conforme prevê o seu artigo 8°, no dia 1 de Janeiro de 2001. No entanto, o artigo 7°, sob a epígrafe Disposições finais e transitórias, estipula um conjunto de regras atinentes à respectiva produção de efeitos, e entre estas, a do seu n.° 3, que estabelece o seguinte:
«O regime estabelecido no presente diploma é imediatamente aplicado aos processos pendentes em que a citação do réu ou de terceiros ainda não tenha sido efectuada ou ordenada». Esse preceito tem, pois, o valor de uma norma de direito transitório material, indicando o momento a partir do qual a lei produz os seus efeitos, no tocante às diversas situações aí contempladas, solucionando, assim, as questões de aplicação da lei processual no tempo que poderiam vir a suscitar-se quanto a esses aspectos (cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1993, págs. 229-230). Não se põe em dúvida que, em regra, a lei processual nova aplica-se imediatamente aos actos processuais que houverem de praticar-se a partir do momento da sua entrada em vigor. Só que no caso vertente a lei nova contém um critério específico de aplicação da lei no tempo que necessariamente afasta o funcionamento do princípio geral. Ora, no caso em apreço, a acção foi intentada em 29 de Novembro de 1999 e os réus citados para os seus termos em 3 de Dezembro seguinte, pelo que, encontrando-se a acção pendente numa fase processual ulterior à da citação do réu, no momento em que entrou em vigor a nova redacção do artigo 690°-A do Código de Processo Civil, não havia lugar à aplicabilidade imediata do novo mecanismo de identificação dos depoimentos gravados para efeito de recurso. Assim a recorrente, ao impugnar a decisão de facto da primeira instância, teria de proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda essa impugnação, ónus que, como ela própria reconhece, não satisfez, por se ter antes limitado a sintetizar os depoimentos ou a indicar os locais da gravação onde se encontram. Por identidade de razão também não é possível retirar qualquer ilação útil do disposto no actual n.º 5 do citado artigo 690°-A do CPC – que foi aditado pelo Decreto-Lei n.º 183/2000 –, porquanto a faculdade que esse preceito confere ao tribunal apenas poderia ser utilizada no caso em que tivesse aplicação o novo regime do n.º 2, na redacção dada por esse diploma. Poderá ainda discutir-se se, não obstante não ter sido efectuada a transcrição dos depoimentos gravados, não deveria a Relação, antes de rejeitar o recurso, convidar a recorrente a cumprir esse ónus, por aplicação analógica do n.º 4 do artigo 690° do C PC. Neste ponto, o acórdão do STJ (secção social) de 16 de Outubro de 2002, no processo n.º 2244/02, cuja orientação entretanto foi reafirmada pelo acórdão de
26 de Novembro de 2003, no processo n.º 2430/03, veio definir como a solução mais equilibrada aquela que passa pela distinção entre a falta total de menção das especificações exigidas e da transcrição das passagens relevantes e o mero cumprimento defeituoso desses ónus. E escreveu-se a esse propósito o seguinte:
«Na primeira hipótese, o recorrente desprezou completamente os encargos que a lei lhe atribuiu como requisito para poder beneficiar de um verdadeiro segundo grau de jurisdição em matéria de facto; na segunda hipótese, tentou cumprir esse
ónus, mas fê-lo de forma incorrecta ou incompleta. As sanções a essas falhas devem ser proporcionais à sua gravidade: na primeira hipótese, parece claro que o legislador cominou a ‘rejeição’ imediata do recurso da decisão da matéria de facto, à semelhança da imediata declaração de deserção do recurso no caso de falta (absoluta) de alegação (n.º 3 do artigo 690º); na segunda hipótese, justificar-se-á a prévia formulação de convite para completamento ou correcção da alegação ou da transcrição, à semelhança do que ocorre quando a alegação apresente irregularidades (n.º 4 do artigo 690º)». Ora, analisando a alegação da apelação da recorrente (fls. 830 a 852), constata-se que, na parte em que defende a alteração da decisão da matéria de facto com base em depoimentos prestados na audiência de julgamento e objecto de gravação, a recorrente procede à identificação precisa dos correspondentes locais de gravação, a que acrescenta, relativamente a cada uma das situações, uma síntese do depoimento em referência. A recorrente não efectua, em nenhum caso, a reprodução integral ou parcial dos depoimentos e as referências feitas ao material probatório, na medida em que não constituem simples transcrições, correspondem a meras interpretações da matéria de facto apurada, e que, como tal, apenas poderiam relevar no plano argumentativo em vista ao uso pela Relação do seu poder de modificar a decisão de facto. A recorrente não cumpriu, portanto, minimamente o ónus de transcrição dos depoimentos e, na linha da orientação jurisprudencial há pouco exposta, não poderá haver lugar ao convite para completamento ou aperfeiçoamento da alegação, justificando-se antes a rejeição do recurso à semelhança do que sucede, na correspondente disposição do artigo 690° do CPC, com a falta de alegações. Sendo assim, a decisão recorrida, ao rejeitar o recurso, nessa parte, com base no não cumprimento do ónus alegatório não merece qualquer censura.
[...].”.
2.5. A. veio arguir a nulidade e requerer a aclaração e a reforma do acórdão proferido, através de um extenso requerimento (fls. 1075 a 1089), em que, para o que aqui releva, disse o seguinte:
“[...] XIX. Falta, pois, a fundamentação de facto dessa decisão – também de facto –, ou seja, da conclusão dos apontados excertos reproduzidos das cassetes não são, afinal, reproduções nenhumas. XX. Deste modo, mostra-se violado o disposto no artº 668º, n.º 1, al. b) do CPC, ou, assim não se entendendo, se pede esclarecimento, nos termos do disposto no artº 669º, n.º 1-a) do mesmo diploma. XXI. E não se diga que essa norma não obriga a uma fundamentação objectivamente perceptível, justificada, coerente e lógica, pois que, nesse entendimento, desde já se invoca que o artº 668º, n.º 1, al. b) do CPC viola os normativos dos artºs
2º e 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa [...].
[...] XXXI. Aliás, se fosse possível considerar-se fundamentada aquela aplicação que Vossas Excelências fizeram do normativo do artº 690º-A-2 do CPC no sentido de que reproduzida nas alegações uma selecção de mais de cem excertos de gravações para fundamentação da diversa decisão da matéria de facto pretendida pela Ré relativamente a duas questões, mesmo assim, aquele normativo impõe a rejeição imediata do recurso da matéria de facto, sem qualquer prévio convite de aperfeiçoamento, então o dito dispositivo (artº 690º-A-2 do CPC), viola os Princípios da Proporcionalidade, da Justiça e da Fundamentação dos actos Judiciais consagrados nos artigos 2º, 20º, e 205º, n.º 1, da Constituição – como se alega –, XXXII. Para além de se tratar de uma aplicação do direito contrária aos actuais princípios do nosso sistema jurídico (vertidos, nomeadamente, nos artigos 3º, n.º 3 (parte final), 265º, n.º 2, 508º, n.º 1, e 704º, n.º 1, do CPC, e 87º, n.º
1-a), 88º, n.ºs 1 e 2, e 116º do Cód. de Proc. dos Trib. Administrativos), que são corolários daqueles mesmos princípios constitucionais.
[...].”.
A reclamação foi indeferida pelo acórdão de 13 de Julho de 2004
(fls. 1119 e seguintes), em que pode ler-se:
“[...] A reclamante invoca ainda a inconstitucionalidade do artº 668º, n.º 1, alínea b), bem assim do artº 690º-A, n.º 2, do CPC, quando aplicados nos termos em que o foram, por violação, respectivamente, dos artigos 2º e 205º, n.º 1, e dos artigos 2º, 20º, e 205º, n.º 1, da Constituição. Não invoca porém um único argumento em que possa basear-se uma tal arguição, o que permite logo inferir que a reclamante não pretende mais do que protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão, antevendo ainda uma possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional; e, além do mais, a eventual inconstitucionalidade apenas poderia determinar a revogação do acórdão, por indevida aplicação de norma, e não o suprimento de nulidade ou da obscuridade. No presente contexto, em que se pretende obter a declaração de nulidade do acórdão por falta de fundamentação ou a sua aclaração, não tem, pois, qualquer cabimento aludir a uma pretensa inconstitucionalidade das citadas disposições legais.
[...].”.
2.6. Notificada deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, A. pretendeu interpor recurso para o Tribunal Constitucional, através do requerimento de fls.
1129 e seguinte, nos seguintes termos:
“[...] Vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos previstos no artº 70º, n.º 1, al. b) e n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional. Porque está em tempo e para tal possuindo legitimidade, deve o presente recurso ser admitido com efeito suspensivo (artº 78º, n.º 4 da LTC). As normas cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie são as dos artigos 668º, n.º 1, al. b) e artº 690º-A, n.º 2 (aditado pelo Dec-Lei n.º
39/95, de 15 de Fevereiro, na redacção original alterada pelo Dec-Lei n.º
183/2000, de 10 de Agosto), ambas do CPC, na interpretação sufragada no douto acórdão recorrido segundo a qual, reproduzidos nas alegações de recurso mais de cem excertos de gravações, com reprodução rigorosa das declarações das testemunhas entre aspas, permite a conclusão de que tal não constitui reprodução, ao menos parcial, de tais depoimentos (inconstitucionalidade do artº
690º-A, n.º 2 – na redacção original –, do CPC), e que tal conclusão não carece de uma fundamentação, objectivamente inteligível perceptível, justificada, coerente e lógica (inconstitucionalidade do artº 668º, n.º 1, al. b), do CPC), ademais impondo, em tais circunstâncias, a rejeição imediata do recurso da matéria de facto, sem qualquer prévio convite de aperfeiçoamento
(inconstitucionalidade do mesmo artº 690º-A, n.º 2, do CPC, na citada redacção). Os princípios constitucionais que se consideram violados são os Princípios do Estado de Direito, da Proporcionalidade, da Justiça e da Fundamentação dos actos judiciais, consagrados nos artºs 2º, 20º e 205º, n.º 1, da Constituição. A peça processual em que a recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade foi o requerimento em que foi arguida a nulidade, aclaração e reforma do acórdão de 09/03/2004.
[...].”.
2.7. O Conselheiro Relator decidiu não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional (despacho de 30 de Setembro de 2004, a fls. 1134 e v.º), com os seguintes fundamentos:
“A recorrente vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do art. 70º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, da Lei de Organização e Funcionamento do Tribunal Constitucional, invocando a inconstitucionalidade das normas dos arts.
668º, n.º 1, alínea b), e 690º-A, n.º 2, do Código de Processo Civil, na interpretação feita pelo acórdão de fls. 219 e segs. [trata-se do acórdão constante de fls. 1119 e seguintes dos presentes autos], que seria violadora dos princípios constitucionais ínsitos nos arts. 2º, 20º e 205º, n.º 1, da Lei Fundamental. Sucede que a questão de inconstitucionalidade foi suscitada pela primeira vez, conforme reconhece a recorrente no requerimento de interposição de recurso (fls.
1129-1130), na reclamação em que arguiu a nulidade e requereu a aclaração e a reforma do acórdão anterior que decidiu o recurso de revista (fls. 1042 e segs.). E no acórdão que apreciou tal reclamação – agora sob recurso para o Tribunal Constitucional – não se tomou conhecimento de questão de inconstitucionalidade, entendendo-se que a reclamante não aduziu qualquer argumento em que pudesse basear-se tal arguição e que, além disso, a eventual inconstitucionalidade não seria relevante para o pretendido suprimento de nulidade ou obscuridade que vinha reclamar. Ou seja, no caso, constata-se que a recorrente não suscitou a questão de constitucionalidade nos termos de poder ser considerada, em tempo útil, na decisão que apreciou o objecto do recurso de revista; por outro lado, a pretensa inconstitucionalidade das normas em causa não poderia ter qualquer reflexo sobre a apreciação da reclamação; por fim, a decisão recorrida não tomou conhecimento da questão de inconstitucionalidade suscitada, não tendo emitido qualquer pronúncia sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade das referidas normas que pudesse ser apreciada pelo Tribunal Constitucional em via de recurso. O recurso para o Tribunal Constitucional mostra-se, assim, manifestamente infundado, pelo que, nos termos do art. 76º, n.º 2, da Lei de Organização e Funcionamento do Tribunal Constitucional, não poderá ser admitido.
[...].”.
2.8. A. veio, sem invocar qualquer disposição legal, deduzir reclamação do despacho de não admissão do recurso para o Tribunal Constitucional, através do requerimento de fls. 1141 e seguintes, em que disse, entre o mais:
“[...]
1. Apreciando o requerimento de arguição de nulidade, onde voltaram a reproduzir-se os excertos que já haviam sido rigorosamente transcritos, entre aspas, nas alegações da Apelação, o douto acórdão de 13-07-2004 não justifica por que nega o conceito de «transcrição» ou «reprodução» –àquelas cento e tal reproduções, antes as qualifica de «sínteses» e «meras interpretações» – o que conclui sem qualquer justificação, pois que nem naquele acórdão de 13/7, nem no da Revista, nem no da Apelação foi ou fora feita a mínima crítica quanto ao rigor (ou falta de rigor) de transcrição de qualquer das citadas reproduções.
2. O requerimento em que se arguiu a nulidade da Revista, por falta de fundamentação, é ainda peça processual capaz de abarcar a suscitação da questão da constitucionalidade do artigo 668º, n.º 1, al. b) do CPC quando interpretado no sentido de que não ocorre nulidade, apesar de faltar, de todo, qualquer fundamentação (objectivamente inteligível, perceptível, justificada e lógica) para a conclusão de que cento e tal transcrições – cujo rigor de reprodução do teor do depoimento não foi, em concreto, posto em causa em qualquer das reproduções, assinaladas entre aspas – são, afinal, «sínteses» ou «meras interpretações».
3. O requerimento em que se arguiu a nulidade e/ou aclaramento da Revista, por falta ou grosseira ininteligibilidade de fundamentação, é ainda peça processual capaz de abarcar a suscitação da questão da constitucionalidade do disposto no artigo 690º-A, n.º 2, do CPC, na interpretação segundo a qual, embora reproduzidos nas alegações de recurso mais de cem excertos de gravações, com reprodução rigorosa das declarações das testemunhas entre aspas, é permitida a conclusão de que tal não constitui reprodução, ainda que parcial, de tais depoimentos;
4. O requerimento em que se arguiu a nulidade e/ou aclaramento da Revista, por falta ou grosseira ininteligibilidade de fundamentação, é ainda peça processual capaz de abarcar a suscitação da questão da constitucionalidade do disposto no artigo 690º-A, n.º 2, do CPC, na interpretação segundo a qual tal norma impõe, em tais circunstâncias (apesar dos referidos suficientes excertos entre aspas), a rejeição imediata do recurso da matéria de facto, sem qualquer prévio convite de aperfeiçoamento.
5. É manifesto que a inconstitucionalidade de tais normas, se reconhecida no acórdão que apreciou o requerimento de arguição de nulidade e/ou aclaramento determinaria o suprimento da nulidade arguida, determinaria o provimento da Revista e, por isso, era da máxima relevância. Na verdade, se tivesse concluído pelo entendimento de que o artigo 668º, n.º 1, al. b) do CPC, enquanto afasta a nulidade das faltas grosseiras de fundamentação, viola o disposto nos artºs, 2º, 20º e 205°, n.º 1, da Constituição, então, teria de concluir-se que não existe fundamentação possível para a identificação, feita na Revista, entre «transcrição» ou «reprodução», por um lado, e «síntese» ou «interpretação», por outro. Ora, verificado o cumprimento do ónus de transcrição, o acórdão de 13/7 só poderia ter concluído por reparar a Revista no sentido de ter sido cumprido o disposto no artigo 690º-A, n.º 2, do CPC.
- A menos que esta norma também devesse ser interpretada com um sentido inconstitucional, seja o de que deve ser rejeitado, sem convite de aperfeiçoamento, o conhecimento do recurso da matéria de facto por falta de transcrição em suporte de papel separado, apesar de as respectivas alegações integrarem transcrições rigorosas e suficientes.
6. Finalmente, salvo o devido respeito, do facto de o acórdão de 13/7 não tomar
– até tomou! – conhecimento da inconstitucionalidade das normas suscitada no requerimento que apreciou, não resulta a preclusão do recurso para o Tribunal Constitucional – questão é que as normas inconstitucionais tenham sido aplicadas, como o foram. Em conclusão, parece demonstrado que a questão da constitucionalidade foi suscitada oportunamente, se for reconhecida – como deve – terá o máximo reflexo na decisão de 13/7, ao ponto de inverter a respectiva conclusão e o direito ao recurso constitucional exige a suscitação da inconstitucionalidade das normas no tribunal recorrido e a aplicação destas, mas não exige o conhecimento da questão da inconstitucional no recorrido [assim, no original].
[...].”.
No Supremo Tribunal de Justiça, o Conselheiro Relator manteve o despacho reclamado (fls. 1144).
3. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional emitiu parecer (fls. 1148 v.º e 1149), nos seguintes termos:
“A reclamação é manifestamente improcedente. Poderá, desde logo, questionar-se que a entidade recorrente haja conseguido delinear uma questão de inconstitucionalidade normativa, já que aquilo que – em termos substanciais – se pretende colocar ao Tribunal se traduz em apurar se os «excertos de gravações» incluídos na sua alegação consubstanciam cumprimento adequado do ónus de transcrição, imposto ao recorrente pelo art. 690º-A do CPC, na versão anterior ao DL 183/2000. Por outro lado – e mesmo que assim fosse – as normas não teriam sido aplicadas com o sentido, alegadamente inconstitucional, especificado pela recorrente, limitando-se a decisão recorrida a considerar, sem mais, que «a recorrente não efectua, em nenhum caso, a reprodução integral ou parcial dos depoimentos e as referências feitas ao material probatório, na medida em que não constituem simples transcrições, correspondem a meras interpretações da matéria de facto apurada» – e não cabendo obviamente nos poderes cognitivos deste Tribunal interpretar a peça processual em causa, de modo a apurar se a mesma satisfaz ou não as exigências legais. Finalmente – e no que toca à pretensa necessidade de prolação de um convite ao aperfeiçoamento das deficiências no cumprimento do ónus de transcrição do recorrente – o recurso seria de configurar como «manifestamente infundado», já que, em processo civil, não pode inferir-se dos princípios constitucionais a existência de um genérico «direito» ao aperfeiçoamento de todas as deficiências
– mesmo profundas e substanciais, decorrente de um «desprezo completo» dos ónus e encargos que a lei lhe comete – das peças processuais produzidas pelo recorrente (cfr. o Ac. 140/04, cuja doutrina vale no processo civil).”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. A ora reclamante interpôs recurso para este Tribunal, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Julho de 2004, que indeferiu a arguição de nulidade e o pedido de aclaração deduzido em relação ao acórdão de
9 de Março de 2004, através do qual o mesmo Supremo negara provimento ao recurso de revista da decisão, desfavorável à ora reclamante, proferida pelo Tribunal da Relação do Porto em acção emergente de contrato individual de trabalho que corre termos no Tribunal do Trabalho da Comarca de Braga.
Através de tal recurso, pretendia a ora reclamante que o Tribunal Constitucional apreciasse a inconstitucionalidade das normas dos artigos 668º, n.º 1, alínea b), e 690º-A, n.º 2, do Código de Processo Civil, na interpretação alegadamente perfilhada no acórdão recorrido “segundo a qual, reproduzidos nas alegações de recurso mais de cem excertos de gravações, com reprodução rigorosa das declarações das testemunhas entre aspas, permite a conclusão de que tal não constitui reprodução, ao menos parcial, de tais depoimentos
(inconstitucionalidade do artº 690º-A, n.º 2 – na redacção original –, do CPC), e que tal conclusão não carece de uma fundamentação, objectivamente inteligível perceptível, justificada, coerente e lógica (inconstitucionalidade do artº 668º, n.º 1, al. b), do CPC), ademais impondo, em tais circunstâncias, a rejeição imediata do recurso da matéria de facto, sem qualquer prévio convite de aperfeiçoamento (inconstitucionalidade do mesmo artº 690º-A, n.º 2, do CPC, na citada redacção)”.
O Conselheiro Relator no Supremo Tribunal de Justiça não admitiu o recurso por entender que: “a recorrente não suscitou a questão de constitucionalidade nos termos de poder ser considerada, em tempo útil, na decisão que apreciou o objecto do recurso de revista”; que “a pretensa inconstitucionalidade das normas em causa não poderia ter qualquer reflexo sobre a apreciação da reclamação”; que “a decisão recorrida não tomou conhecimento da questão de inconstitucionalidade suscitada, não tendo emitido qualquer pronúncia sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade das referidas normas que pudesse ser apreciada pelo Tribunal Constitucional em via de recurso”. Em suma, o Conselheiro Relator considerou inadmissível o recurso para o Tribunal Constitucional por se mostrar “manifestamente infundado” (supra, 2.7.).
5. Não merece censura o despacho reclamado.
5.1. Antes de mais, importa esclarecer que os problemas suscitados pela ora reclamante se prendem essencialmente com a questão de saber se era aplicável no caso dos autos a norma do artigo 690º-A do Código de Processo Civil na versão original ou na versão emergente do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto.
A ora reclamante pretende afinal que o Tribunal Constitucional verifique se as normas do direito infraconstitucional com base nas quais o Supremo Tribunal de Justiça decidiu o problema jurídico suscitado nos autos eram ou não aplicáveis ao caso.
Como sublinhou o Senhor Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu neste Tribunal, a questão que, em termos substanciais, se pretende colocar ao Tribunal Constitucional traduz-se em “apurar se os «excertos de gravações» incluídos na sua alegação consubstanciam cumprimento adequado do ónus de transcrição, imposto ao recorrente pelo art. 690º-A do CPC, na versão anterior ao DL 183/2000”.
Ora, tal pretensão excede obviamente a competência do Tribunal Constitucional, que, no tipo de recurso interposto pela ora reclamante, se limita à apreciação da conformidade constitucional das normas efectivamente aplicadas pelo tribunal a quo na decisão recorrida.
5.2. Mas ainda que se considerasse ser idóneo o objecto do presente recurso, outra razão haveria para dele não se conhecer.
Na verdade, a ora reclamante não suscitou, “durante o processo”, as questões de inconstitucionalidade que pretende ver apreciadas por este Tribunal e, no caso dos autos, não poderia considerar-se a então recorrente dispensada do
ónus de suscitar tais questões perante o tribunal recorrido, tendo em conta as circunstâncias do processo e considerando a jurisprudência do Tribunal Constitucional neste domínio.
Nas alegações do recurso de revista, a ora reclamante limitou-se a sustentar que “a decisão recorrida violou o disposto no artº 690º-A do CPC, na redacção introduzida pelo DL n.° 183/2000, de 10 de Agosto” e que “a douta decisão enferma de inconstitucionalidade por violação do princípio do estado de direito democrático, acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e da função jurisdicional, consagrados nos artºs 2º, 20º e 202º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa “(cfr. supra, 2.3.).
Só no requerimento em que arguiu a nulidade e requereu a aclaração e a reforma do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 9 de Março de
2004 é que a ora reclamante imputou o vício de inconstitucionalidade a normas constantes do Código de Processo Civil – o que, de resto, a própria reclamante reconhece no requerimento através do qual interpôs o recurso para o Tribunal Constitucional (cfr. supra, 2.6.).
Todavia, já o Tribunal da Relação do Porto tinha rejeitado o recurso, interposto pela ora reclamante, da decisão da 1ª instância, na parte respeitante à impugnação da matéria de facto, por considerar que a então recorrente não tinha efectuado, na sua alegação, a transcrição, através de escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se fundava, conforme impunha o artigo 690º-A, n.º 2, do Código de Processo Civil. Competia, portanto,
à ora reclamante, suscitar as questões de inconstitucionalidade nas alegações do recurso de revista.
Tem assim de concluir-se que a ora reclamante não cumpriu o ónus de invocação das questões de inconstitucionalidade “durante o processo”, tal como exigem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, sendo certo que o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto e que, portanto, a ora reclamante teve oportunidade processual de confrontar o tribunal recorrido com tais questões.
6. Não estando verificados, no caso em apreço, os pressupostos processuais estabelecidos na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 – a alínea invocada como fundamento do recurso pela ora reclamante – não é admissível o recurso interposto.
Tanto basta para concluir que a reclamação tem de ser indeferida.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 16 de Dezembro de 2004
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos