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Processo n.º 991/04
3.ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por decisão da 9ª Vara Criminal de Lisboa, de 16 de Junho de 2003, foi o ora recorrente, A., condenado, pela prática de três crimes de sequestro, em cúmulo jurídico, na pena unitária de 3 anos e 6 meses de prisão. Inconformado, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo este Supremo Tribunal, por acórdão de
23 de Outubro de 2003, considerado nulo, por carência de fundamentação decisória, o acórdão recorrido e determinado a baixa dos autos “à 1ª instância, para, pelo mesmo Tribunal e Juízes, se possível, ser proferida decisão que contemple o estatuído no artigo374º, n.º 2, 2ª parte do CPP.”
2. Em 15 de Março de 2004, a 9ª Vara Criminal de Lisboa, cumprindo o acórdão do STJ, reformulou a decisão condenando o ora recorrente pela prática dos referidos três crimes de sequestro, em cúmulo jurídico, na pena unitária de 3 anos e 6 meses de prisão. A decisão não foi lida publicamente, sendo, todavia, notificada ao ora recorrente. Inconformado com esta decisão o arguido recorreu de novo para aquele Supremo Tribunal, tendo alegado, designadamente e para o que agora importa, o seguinte:
“[...] Assim, se a sentença (aqui acórdão), não for lida publicamente, é nula nos termos do art.º 87° n° 5 do C.P.P. por aplicação do art.º 321º n° 2 do mesmo diploma. E nem se diga, sempre com o devido respeito por superior e melhor opinião, que em caso de reformulação de sentença anteriormente declarada nula, não é obrigatória a sua leitura, porquanto essa interpretação iria restringir, de forma inadmissível o conteúdo da norma dos art°s 321° n.º 2 e 87° n° 5 do C.P.P., em clara violação ao art.º 206° da nossa Lei Fundamental.[...]”
3. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 22 de Setembro de 2004, negou provimento ao recurso. Ponderou, nomeadamente, aquele Tribunal:
“[...]Como regra a audiência é pública, sob pena de nulidade insanável, nos termos do artº 321.º, n.º 1, do CPP e 211º, da CRP; a publicidade comporta o genuíno sentido de que o local de realização é de abertura ao público e do seu desenrolar é consentido relato, mesmo pelos órgãos de comunicação social, com exclusão das restrições consentidas pela lei ordinária e CRP. Este STJ ordenou à 1ª instância que emitisse novo acórdão, anulando o primitivo, em ordem à estruturação formal das sentenças e ao imperativo dever de fundamentação decisória, previsto no n.º 2, do art.º 374º, do CPP, porém o cumprimento desse limitado, porém faltoso dever de fundamentação, não demandava a realização da audiência de julgamento, com observância das regras da publicidade, pois se não destinava ao conhecimento final do objecto do processo
(art.º 97.º a), do CPP), aos fins indicados no n.º3, do art.º 374º, do CPP, sendo a sanação daquela nulidade (art.º 379.º, n.º1, a), do CPP) inteiramente compatível com a restrita emissão de acórdão fundamentando a sentença, à margem da exigência da publicidade imposta àquela. [...]”.
4. Veio, então o recorrente aos autos com um requerimento solicitando o esclarecimento de uma alegada obscuridade do acórdão:
“[...] o douto acórdão a esclarecer é obscuro quanto à interpretação que faz do art.º 321.º, n.º 2 do CPP, ex vi art.º 87.° do mesmo diploma porquanto, admite que a audiência é pública sob pena de nulidade insanável, nos termos do art.º
321° n° 1 do CPP, mas que no caso, porque se tratou pura e simplesmente do
'imperativo dever de fundamentação decisória', a sua leitura fica 'à margem da exigência da publicidade imposta àquela', não perseguindo o raciocínio relativamente à interpretação das normas acima indicadas? Isto é: se no caso de reformulação de acórdão anteriormente declarado nulo, em caso algum tem aplicação o art.º 321° n.º 2 e art° 87° n.º 5 do C.P.P. ? Em todo o caso e na positiva, conforme motivado, se essa interpretação normativa, no entender de V .Exas restringe ou não de forma inadmissível o conteúdo normativo dos art°s 321° n° 2 e 87° n° 5 do CPP, por violação do art.º
206° da C,R.P e porquê?[...]”
5. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 20 de Outubro de 2004, desatendeu o pedido de esclarecimento, afirmando, nomeadamente, o seguinte:
“O arguido, [...] a pretexto de obscuridade patente no acórdão deste STJ no aspecto em que nele se decidiu que em caso de o STJ anular a decisão do Colectivo a fim de que este melhor fundamente o seu veredicto não se torna imperativo que se publique, em audiência, o novo acórdão, expurgado do vício antes detectado, interpelou este Tribunal no sentido de o esclarecer se a interpretação antes adoptada, com pertinência ao art.º 321.º n.º 2, do CPP,
'restringe ou não de forma inadmissível o conteúdo normativo dos art.ºs 321.º, n.º 2 e 87.º n.º 5 , do CPP , por violação do art.º 206.º, da CRP e porquê ( sublinhado nosso ) [do acórdão do STJ] ?'.
[...] Repete-se ao arguido, e agora com mais ênfase, a significar que tendo o STJ, em recurso, a fls.660, ordenado à l.ª instância, que fundamentasse mais amplamente os específicos conteúdos das provas, cujo exame crítico faltava em absoluto - fls. 658 - não determinou que se procedesse a novo e público julgamento, mas apenas a consolidar aquele défice de estruturação da decisão, nos termos do art.º 374.º n.º 2, do CPP, por apelo às provas antes produzidas; o acórdão a proferir limitar-se-ia, pois, a estabelecer a eficácia e a coerência interna e externa do decidido, de forma a uma melhor compreensão dos seus termos, antes lacunares, padecendo de incompletude. Nesta conformidade, cumprido esse dever, não se tornaria necessário, salvo o respeito devido por opinião contrária, proceder a nova audiência, publicitar o decidido, actos inúteis, mas apenas colmatar aquela anomalia e proceder, como se fez, à notificação do acórdão sequentemente emanado do Colectivo, ora recorrido. Esta interpretação em nada afecta direitos de defesa do arguido, a quem assistia, como fez, o direito de impugnar o acórdão proferido e nem a obrigação de publicidade da audiência beliscada, por a ela não haver lugar, sendo bastante a notificação efectuada. Delibera-se, neste STJ, desatender ao pedido de esclarecimento mantendo inalterado o decidido, sem ofensa constitucional ao art.º 206.º, da CRP, com o que se responde à interpelação do arguido. [...]”
6. Vem, então, o recorrente interpor recurso para este Tribunal, através de um requerimento do seguinte teor:
“[...] face à improcedência do presente recurso com a respectiva aclaração, pretende interpor recurso para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, ao abrigo do n° 1 al. b) do artº 70° da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro com as recentes alterações introduzidas pela Lei n° 13-A/98, de 26 de Fevereiro, com vista a apreciação da constitucionalidade das norma do 321.º n.º 1 e 2 ex vi artº 87° n° 5 do do C.P.P., por violação do artº 206.º da nossa Lei Fundamental. A questão da constitucionalidade fundamento do presente recurso foi suscitada em motivação do recurso interposto para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, e subsequente aclaração, quando interpretado o art.º 321 n° 2 ex vi art.º 87° n.º
5 do C.P.P. no sentido, em que o foi pelo acórdão recorrido, de em caso de reformulação de acórdão anteriormente declarado nulo não se tornar necessário
“proceder a nova audiência, publicitar o decidido, actos inúteis, mas apenas colmatar aquela anomalia e proceder, como se fez à notificação do acórdão sequentemente emanado do Colectivo, ora recorrido.”
Na verdade essa interpretação conflitua de uma forma clara com o princípio da publicidade dos actos processuais insíto no art.º 206° da nossa Lei Fundamental.[...]”
7. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
“A- A fundamentação da sentença deve assegurar, pelo conteúdo, e extraprocessualmente, um princípio efectivo da legalidade da decisão, uma vez que os destinatários dessa decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade. B- Daí o processo penal e os actos a ele inerente deverem ser públicos, constitui uma garantia, aliás com assento constitucional (art.º 206° da C.R.P.). C- Assim, se a sentença (aqui acórdão), não for lida publicamente, é nula nos termos do art.º 87° n° 5 do C.P.P. por aplicação do art.º 321º n° 2 do mesmo diploma. D- Ora o Tribunal ora recorrido, ao interpretar que em caso de reformulação do acórdão, 'por faltoso dever de fundamentação', não implica violação à publicidade imposta pela norma do art.º 321° n° 1 e 2 e art.º 87° n° 5 da C.R.P.
é violadora do art.º 206° da lei Fundamental. E- Assim e em conclusão e na sequência da publicidade da 'Audiência' e como corolário do imperativo constitucional previsto no art.º 206° da C.R.P., ter-se-á que interpretar o art.º 321° n° 1 e 2 e art.º 87° n° 5 do C.P.P. como impeditivo que em 'caso algum' (mesmo em caso de reformulação de acórdão declarado nulo ), possa ser excluída a “leitura da sentença”.
8. Notificado para responder, querendo, à alegação do recorrente, disse o Ministério Público, a concluir:
“1 - O princípio constitucional da publicidade das audiências dos tribunais não implica que todos os actos decisórios do juiz devam ser precedidos da realização de uma audiência pública que culmine na leitura da decisão proferida pelo tribunal.
2- Compete à lei de processo definir os casos em que certo acto decisório tem lugar no termo de uma audiência pública, distinguindo-os daqueles em que a prolação da decisão dos juízes depende da realização de uma simples conferência ou reunião do colectivo, não implicando violação do princípio constante do artigo 206° da Constituição da República Portuguesa a interpretação normativa que consente o suprimento de certo vício de natureza procedimental do acórdão mediante simples reunião dos juízes que integram o colectivo.
3 - Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Cumpre decidir.
II - Fundamentação.
9. Entende o recorrente que a norma extraída da conjugação dos artigos 321º, n.º
2 e 87º, n.º 5, ambos do Código de Processo Penal, no sentido de que, em caso de reformulação de acórdão condenatório declarado nulo por insuficiência de fundamentação, é dispensada a leitura da decisão reformulada, é inconstitucional, por violação do princípio da publicidade da audiência, consagrado no artigo 206º da Constituição. Vejamos.
9.1. É, desde logo, muito duvidoso que a questão de constitucionalidade normativa que vem colocada - relativa à exigência e forma de publicitação da decisão - possa ser imputada a uma interpretação do artigo 321º do Código de Processo Penal, que se refere à publicidade da audiência, e não a uma interpretação dos artigos 372º, designadamente do seu n.º 4, e 373º do mesmo diploma que, esses sim, se referem, expressamente, à publicidade da sentença.
Admitindo, porém, que, no caso dos autos, tal interpretação normativa possa ter sido efectivamente extraída das disposições conjugadas daqueles artigos 321º, n.º 2 e 87º, n.º 5, a verdade é que, como se verá já de seguida, a mesma não contraria o princípio constitucional da publicidade da audiência consagrado no artigo 206º da Constituição.
9.2. Acerca da função constitucional do princípio da publicidade da audiência referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, p. 801) que “a publicidade das audiências dos tribunais
[...] é seguramente uma exigência do próprio conceito de Estado de direito democrático (art. 2º)”, que se justifica pela necessidade de “reforçar as garantias de defesa dos cidadãos perante a justiça mas também em proporcionar o controlo popular da justiça, robustecendo, por isso, a legitimidade pública dos tribunais”. No mesmo sentido se pronunciou também já o Tribunal Constitucional, designadamente no acórdão n.º 110/85 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 6º vol., pág. 273 e seguintes), onde, depois de se afirmar que a razão de ser histórico-constitucional do princípio da publicidade da audiência deve encontrar-se numa “conquista que foi contra o secretismo do processo inquisitorial do «antigo regime»”, se acentua, acerca da sua função constitucional, que se trata “sobretudo de garantir uma espécie de controlo da justiça pela colectividade, tornando possível a todo e qualquer cidadão o acesso
à sala de audiência e possibilitando o conhecimento público de todas as declarações e depoimentos aí produzidos, bem como a discussão da causa que aí tenha lugar, permitindo a final apreciar fundadamente a sentença que vier a ser produzida”. E o mesmo se pode afirmar que resulta do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cujo n.º 1 refere, expressamente, que “qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente”. Como afirma Irineu Cabral Barreto (“Direito ao Exame da Causa Publicamente”, disponível em http://www.gddc.pt/direitos-humanos/sist-europeu-dh/ce-convencao-dh/cons-europa-conv-dh-irineu-cbarreto.html)
“com esta publicidade pretende-se proteger o indivíduo de uma justiça secreta que escape ao controlo do público”, contribuindo a mesma “para preservar a confiança nos tribunais, transmitindo transparência à administração da justiça”, traduzindo-se, assim, “numa garantia para todos os intervenientes directos no processo e para a própria comunidade de uma correcta e impoluta administração da justiça”, sendo certo que, “com esta publicidade [se] pretende[] contribuir para a realização de um objectivo essencial: toda a causa deve ser decidida através de um processo equitativo”.
9.3. Por outro lado, e no que respeita agora ao âmbito material de aplicação daquele princípio, pode seguramente afirmar-se que, independentemente das dúvidas que possam legitimamente colocar-se sobre o exacto alcance do conceito de “audiência”, tal como ele é utilizado no artigo 206º da Constituição, o mesmo abrange, além da própria audiência de discussão e julgamento, a decisão judicial a proferir na sequência da mesma. Nesse sentido se pronunciam Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit., loc. cit.), que referem, a dado passo, “pela mesma razão [antes apontada para a publicidade da audiência] carecem de publicidade não apenas as audiências dos tribunais mas também as decisões judiciais; não estando a publicidade destas explicitamente garantida pela Constituição, ela decorre porém, directamente, do mencionado princípio do Estado de direito democrático”.
9.4. Mas, isto dito - ou seja, que dos princípios constitucionais da publicidade da audiência (artigo 206º) e do Estado de direito democrático (artigo 2º) deriva a obrigatoriedade, também constitucional, de publicitação das decisões judiciais
- a verdade é que daí não decorre, como pretende o arguido, que essa publicitação tenha de ser levada a efeito, em todos os casos ou em relação a todas as decisões, através da sua leitura, de viva voz, na sala de audiência. Em suma: mesmo que se admita que a Constituição impõe uma obrigação de publicitar as decisões judiciais, a verdade é que daí não decorre, pelo menos para todos os casos e em todas as circunstâncias, a obrigatoriedade de o fazer, necessariamente, de uma determinada forma, nomeadamente através da sua leitura, de viva voz, em audiência pública.
9.5. Precisamente neste mesmo sentido se tem, aliás, pronunciado o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que já por mais de uma vez teve oportunidade de concluir que do direito à publicidade da audiência ou da obrigatoriedade de publicitação da decisão, consagrado no artigo 6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, não decorre, necessariamente, que a decisão tenha de ser lida, de viva voz, ao público.
9.5.1. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem teve ocasião de se pronunciar expressamente sobre a necessidade de uma audiência pública para a publicitação das decisões dos tribunais, desde logo, no caso “Pretto e outros v. Itália”
(7984/77, 1983, ECHR 15 – 8 de Dezembro de 1983). Estava, então, em causa um recurso interposto para o Tribunal de Cassação italiano, ao qual foi negado provimento. O respectivo acórdão foi depositado na secretaria, nos termos do artigo 133º do Código de Processo Civil italiano, sendo notificado às partes, sem que, todavia, se tivesse procedido à sua leitura. Na sua queixa, Pretto afirmava, designadamente, que o acórdão não tinha sido objecto de leitura em audiência pública, como seria exigido pelo n.º 1 do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, pelo contrário, concluiu que não havia violação de tal preceito.
Aquele Tribunal, depois de constatar que, aparentemente, o teor da Convenção parece mais estrito que o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos - cujo artigo 14º prevê, apenas, que “qualquer sentença pronunciada em matéria penal ou civil será publicada” (made public, em vez de pronounced publicly como se escreve na Convenção) -, possibilitando uma interpretação no sentido da exigência da leitura em voz alta da decisão, considerou, porém, que os Estados membros do Conselho de Europa têm uma longa tradição de recurso a outros meios para publicitação das decisões dos seus tribunais e que, por consequência, embora fosse difícil encontrar traço nos trabalhos preparatórios, os autores da Convenção não podiam deixar de ter tido em conta tal tradição. Assim sendo, o Tribunal não se sentia vinculado a efectuar uma interpretação literal. Pelo contrário, entendia que, em cada caso, a forma de publicidade a ser dada à decisão pelo direito interno de cada Estado-membro deveria ser apreciada em função das características especiais do processo em causa, bem como do fim do n.º 1º do artigo 6º da Convenção. Daí que, considerando o papel do Tribunal da Cassação, que apenas podia rejeitar o recurso - o que fez - ou ao anular o julgamento, e que aquele tribunal conduzira uma audiência pública, o Tribunal concluiu que - não tendo a posição do recorrente sido alterada - a falta de leitura do acórdão não violava o n.º 1 do artigo 6.º, até porque, neste caso, o acórdão estava disponível para todos na secretaria judicial.
Do ponto de vista do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o objectivo almejado pelo n.º 1 do artigo 6º da Convenção – assegurar o escrutínio das decisões judiciais pelo público, de modo a salvaguardar um processo equitativo – não seria menos atingido, em processo de recurso, pelo depósito da decisão judicial na secretaria – tornando-a integralmente acessível a qualquer um – do que pela leitura, em audiência, as mais das vezes truncada, dessa mesma decisão. Aliás, já no caso Axen c. Allemagne (acórdão de 29 de Junho de 1982, Série A n°
72, p. 14, § 32), o Tribunal considerara, por exemplo, que a prolação pública de uma decisão de um Supremo Tribunal não era necessária, tendo as decisões dos tribunais inferiores sido tornadas públicas.
9.5.2. Mais recentemente, no caso “Ernst e outros v. Bélgica” (acórdão de
15.10.2003), o Tribunal voltou a ter oportunidade de se pronunciar sobre as exigências de publicidade das audiências e de publicitação das decisões judiciais. O Tribunal começou por salientar que a publicidade da audiência constitui um princípio fundamental consagrado no n.º 1 do artigo 6º, na medida em que protege os arguidos contra uma justiça secreta, que escapa ao controlo do público, e constitui igualmente um dos meios de preservar a confiança nos tribunais. Assim, “pela transparência que ela dá à administração da justiça, ajuda a realizar o fim do n.º 1 do artigo 6º: o processo equitativo, cuja garantia constitui um dos princípios de qualquer sociedade democrática (Axen v. Alemanha, acórdão de 8 de Dezembro de 1983, série A, n.º 72, p.12, §25).” Considerou, depois, que tal princípio comportava, todavia, excepções – inclusivamente previstas no próprio artigo 6º - e salientou que, mesmo em hipóteses de tribunais de plena jurisdição, tal preceito não implica sempre o direito a uma audiência pública, independentemente da natureza das questões a decidir. Assim, como resultava já do caso Varela Assalino v. Portugal (decisão de 25 de Abril de 2002), quando apenas estivessem em causa questões de direito ou altamente técnicas poderia não haver audiência pública, sem violação do citado artigo 6º, n.º 1, da Convenção. Neste caso, aliás, o Tribunal concluíra que nenhuma questão se suscitava que não pudesse ser resolvida com base nos dados do processo, uma vez que os factos estavam já definitivamente estabelecidos.
O Tribunal passou, depois, à análise da questão da falta de leitura pública da decisão. Neste ponto, começou por recordar que, não obstante a ausência de restrições, a exigência segundo a qual a decisão deve ser tornada pública tem sido interpretada com uma certa “souplesse”. Assim, “considerou que convinha, em cada caso, apreciar, à luz das particularidades do processo de que se trata e em função do fim e do objecto do n.º 1 do artigo 6º, a forma de publicidade da
«decisão» prevista pelo direito interno do Estado em causa (Pretto e outros c. Itália, acórdão de 8 de Dezembro de 1983, série A n.º 71, pág. 12, §26, B. e P. c. Reino Unido, n.ºs 36337/97 e 35974/97, §§45-46, TEDH 2001-III). No caso Sutter c. Suíça (acórdão de 22 de Fevereiro de 1984, Série A n.º 74, §33) o Tribunal decidiu que a exigência de publicidade das decisões não devia tomar necessariamente a forma de uma leitura em voz alta do acórdão e declarou que as exigências do artigo 6º tinham sido satisfeitas porque qualquer pessoa legitimada de um interesse podia consultar o texto integral dos acórdãos do tribunal militar de cassação. No caso concreto, alguns dias após a prolação do acórdão em secção do conselho, os requerentes obtiveram o texto através de uma diligência junto do escrivão. Por outro lado, o acórdão do Tribunal de Cassação, de 1 de Abril de 1996, foi publicado na colectânea oficial (Pasicrisie), acompanhado do requisitório e das conclusões do procurador-geral. Esta publicação tornou assim possível que um certo controlo do público se exerça sobre a jurisprudência do Tribunal de Cassação (ver Sutter c. Suíça, supracitado, pág. 14, §34).” Deste modo, o Tribunal concluiu que as exigências de publicidade colocadas pelo n.º 1 do artigo 6º tinham sido suficientemente respeitadas.
9.5.3. Verifica-se, assim, que os Estados gozam de alguma liberdade na escolha dos meios de publicitar as decisões judiciais, sendo certo que a leitura em voz alta da decisão pode, nalguns casos, ser dispensada, bastando o seu depósito na secretaria. Aliás, como afirma Irineu Cabral Barreto (op. cit, loc. cit.)
“quando se procede à leitura pública da decisão, a Comissão constatou, em matéria penal, uma prática corrente nos Estados partes na Convenção: a motivação
é muitas vezes escrita posteriormente à data da publicação da sentença; no decurso da audiência, a leitura é limitada à parte dispositiva.”
9.6. No caso que nos ocupa, foi feita a leitura da decisão inicial, de 16 de Junho de 2003, que condenou o recorrente pela prática de três crimes de sequestro, em cúmulo jurídico, na pena unitária de 3 anos e 6 meses de prisão. O que vem questionado é uma interpretação normativa dos preceitos em causa no sentido de que é dispensada a leitura de uma decisão que reformula um acórdão declarado nulo por um tribunal superior. Ora, a decisão que foi objecto de notificação às partes, em obediência a uma decisão de tribunal superior, proferida em recurso, completou, na parte relativa à fundamentação da matéria de facto, uma outra decisão que já havia sido proferida e lida, de viva voz, na sala de audiência, estabelecendo, assim, a eficácia e a coerência interna e externa do decidido e permitindo uma melhor compreensão dos seus termos. Não resolveu nenhuma questão que não pudesse ser resolvida, única e exclusivamente, com base nos dados existentes no processo, uma vez que todos os factos estavam já definitivamente estabelecidos. Não alterou rigorosamente em nada a posição do recorrente – fora condenado, pela prática de três crimes de sequestro, em cúmulo jurídico, na pena unitária de 3 anos e 6 meses de prisão e condenado, pela prática de três crimes de sequestro, em cúmulo jurídico, na pena unitária de 3 anos e 6 meses de prisão continuou. Foi notificada às partes, que dela obviamente receberam cópia integral, e está acessível a qualquer um que esteja legitimado por um interesse no seu conhecimento. Tudo isto é suficiente para garantir o respeito pelas exigências que são pressupostas pelo princípio de que as decisões judiciais devem ser publicitadas.
Pelo exposto, não se pode deixar de concluir que não implica qualquer violação da Constituição, nomeadamente do seu artigo 206º, uma interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 321º, n.º 2 e 87º, n.º 5, ambos do Código de Processo Penal, no sentido de que, em caso de reformulação de acórdão condenatório declarado nulo por insuficiência de fundamentação e em que o acórdão a proferir em nada se afastou da matéria de facto dada como provada, é dispensada a leitura da decisão reformulada, sendo a mesma notificada às partes e estando acessível a qualquer um que esteja legitimado por um interesse no seu conhecimento.
III - Decisão.
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 15 de Dezembro de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Artur Maurício