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Processo n.º 759/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, na 2.ª secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. O Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Albufeira vem reclamar para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, do despacho proferido pelo Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Albufeira, de 31 de Maio de 2004, que não admitiu o recurso por si interposto para o Tribunal Constitucional da decisão daquele mesmo Juiz, de 2 de Abril de
2004, pela qual foi “declarada a inconstitucionalidade material e orgânica do artigo 336º, n.º 1, do Código de Processo Penal (ou 335º, n.º 3, na redacção dada pela Lei n.º 59/98, de 25/08), no entendimento que permite entender a declaração de contumácia como causa de suspensão do procedimento criminal à luz do artigo 119º, n.º 1, do Código Penal de 1982, por violar o disposto nos artigos 2º, 20º, n.º 4, parte final, 27º, n.º 1, 29º, n.º 1, 30º, n.º 1, e 32º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, não se aplicando o respectivo dispositivo, ao abrigo do disposto no artigo 204º da Lei Fundamental.” Diz o reclamante:
“(...)
5 – No entendimento do Magistrado do Ministério Público o despacho que declara a inconstitucionalidade material e orgânica do art.º 336º, n.º 1, do C. Processo Penal (ou 335º, n.º 3, na redacção dada pela Lei n.º 59/98, de 25/08), no entendimento que permite entender a declaração de contumácia como causa de suspensão do procedimento criminal à luz do art.º 119º, n.º 1 do C. Penal de
1982, só indirectamente é contrário à jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, não sendo portanto objecto de recurso obrigatório, nos termos do art.º 446º, C. P. Penal;
6 – Trata-se aqui tão só da declaração de inconstitucionalidade de uma norma, que foi objecto de recusa de aplicação por um Tribunal, curando-se de saber, com o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, se efectivamente tal norma deve ou não ver confirmado o juízo de inconstitucionalidade formulado.” O Ex.mº Procurador-Geral Adjunto em funções Tribunal Constitucional pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação, uma vez que “conforme vem sendo reiteradamente decidido em situações perfeitamente análogas à dos presentes autos, tem precedência sobre o recurso de constitucionalidade, previsto na alínea a) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, o recurso obrigatório para uniformização de jurisprudência a que alude o art.º 446º do CPP, pelo que será de julgar improcedente – em consonância com tal entendimento – a presente reclamação.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
2. Consultando a decisão de que se pretendeu interpor recurso de constitucionalidade, com fundamento no artigo 70º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, verifica-se que nela se afirma não se perfilhar
«o entendimento expresso no Acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ, n.º 10/2000, que fixou jurisprudência no sentido de que “no domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal”». Por essa razão, julgou-se “o artigo 336º, n.º 1, do Código de Processo Penal (ou
335º, n.º 3, na redacção dada pela Lei 59/98, de 25 de Agosto) orgânica e materialmente inconstitucional no entendimento de que permite entender a declaração de contumácia como causa de suspensão do procedimento criminal à luz do artigo 119º, n.º 1, do Código Penal de 1982”, tendo sido com este fundamento que foi julgado extinto o procedimento criminal. Registou-se, pois, uma recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, recusa, essa, que constituiu a ratio decidendi da decisão recorrida. Verifica-se, porém, que tal entendimento constituiu também expressa divergência de jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no citado acórdão do Plenário das Secções Criminais n.º 10/2000, tratando-se, pois, de caso de recurso obrigatório previsto no artigo 446º do Código de Processo Penal, suscitando-se a questão de saber se este recurso obrigatório tem precedência sobre o recurso de constitucionalidade, previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Sobre um caso em tudo análogo ao presente, e igualmente com origem numa similar recusa de aplicação no Tribunal Judicial da Comarca de Albufeira, escreveu-se no Acórdão n.º 31/2004 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt):
«2. A questão do não conhecimento imediato do recurso de constitucionalidade interposto de decisão de recusa de aplicação de interpretação normativa consagrada em acórdão de uniformização de jurisprudência penal do Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento em inconstitucionalidade dessa interpretação, foi recentemente abordada por esta 2.ª Secção do Tribunal Constitucional em caso em que também estava em causa uma recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, das normas dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugados com o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 (redacção originária), na interpretação, dada pelo Supremo Tribunal de Justiça no “Acórdão de Uniformização de Jurisprudência” n.º
10/2000, segundo a qual a declaração de contumácia constitui causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal, assumindo-se claramente tal decisão – como a dos presentes autos – como dissidente da jurisprudência uniformizada. Referimo-nos ao Acórdão n.º 412/2003, que, a respeito desta questão, expendeu o seguinte:
“2.4.2. Relativamente à recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, das normas dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugados com o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 (redacção originária), na interpretação, dada pelo Supremo Tribunal de Justiça no «Assento» n.º 10/2000, segundo a qual a declaração de contumácia constitui causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal, (...) entende-se, pelas razões expendidas pelo próprio recorrente, na sua alegação, que não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento desta parte do objecto do recurso, por força do disposto no n.º 5 do artigo 70.º da LTC e atenta a natureza obrigatória do recurso previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal. Trata-se de entendimento já seguido por este Tribunal nos Acórdãos n.ºs 281/01 e
282/01 (o primeiro publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol., pág. 587), também em casos de recursos interpostos pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, de decisões que haviam recusado, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação das normas constantes dos artigos 119.º do Código Penal de 1982 (redacção originária), e
336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação, feita pelo
«Assento» do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2000, de que, no domínio de vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão do procedimento criminal, sem que previamente tivesse sido interposto pelo mesmo Ministério Público o recurso obrigatório previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal «de quaisquer decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça». Escreveu-se no Acórdão n.º 281/01 (cuja fundamentação foi reproduzida no Acórdão n.º 282/01):
«4. Na verdade, segundo o n.º 5 do artigo 70.º citado [da LTC], “não é admitido recurso para o Tribunal Constitucional de decisões sujeitas a recurso ordinário obrigatório, nos termos da respectiva lei processual”. Ora, no presente recurso, a decisão recorrida, afastando a aplicação do Assento n.º 10/2000 por inconstitucionalidade, está, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 446.º do Código de Processo Penal, sujeita a recurso obrigatório por parte do Ministério Público. Sucede, porém, que o Código de Processo Penal qualifica este recurso como um recurso extraordinário (...); assim, coloca-se a questão de saber se este caso está ou não abrangido pelo citado n.º 5 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82.
5. Para o efeito, cabe averiguar se a razão que justifica o regime previsto neste n.º 5 – apenas recorrer para o Tribunal Constitucional da decisão que proferir a última palavra na ordem dos tribunais que julgaram a causa – ocorre no caso presente, e, em caso afirmativo, se deve prevalecer, não obstante se tratar, por um lado, de um recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, e, por outro, de um recurso obrigatório extraordinário.
É sabido que a Lei n.º 28/82 apenas impõe a prévia exaustão das vias de recurso no âmbito dos recursos interpostos ao abrigo do disposto nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, ou seja, interpostos de decisões que aplicaram norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade foi suscitada durante o processo; e que, diferentemente, abre recurso directo para o Tribunal Constitucional de decisões não definitivas (ainda susceptíveis de recurso ordinário) de recusa de aplicação de normas, pelos mesmos motivos, como é o caso presente. Ora, quer num caso, quer no outro, a não ser interposto previamente o recurso obrigatório dentro da ordem a que pertence o tribunal que julgou a causa, pode vir a subsistir uma decisão sujeita a recurso obrigatório que versa exactamente sobre a norma julgada pelo Tribunal Constitucional; e o problema põe-se da mesma forma quando é o recurso previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal que está em causa, apesar de ser qualificado por lei como recurso extraordinário. Vejamos o caso, precisamente, do recurso imposto por este preceito. A ser julgado primeiro o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por recusa de aplicação de uma norma, se o Tribunal Constitucional confirmar o juízo de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, subsiste uma decisão contrária a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça – logo, ainda sujeita a recurso obrigatório, que não pode deixar de ser interposto. Interposto esse recurso – e vamos admitir que chegamos ao Supremo Tribunal de Justiça –, este Tribunal, para respeitar o caso julgado formado no processo sobre a questão de constitucionalidade, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 80.º da Lei n.º 28/82, tem de alterar a orientação jurisprudencial que definiu, revendo o assento, sem ter tido a oportunidade de se pronunciar sobre a decisão que recusou a respectiva aplicação por inconstitucionalidade. Do ponto de vista das relações institucionais entre o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional, há-de concordar-se não ser esta a melhor solução. Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, o intérprete há-de presumir, ao fixar o sentido da lei, que o legislador consagrou a solução mais acertada. E essa directriz leva-nos a não distinguir, para efeitos de aplicação do disposto no n.º 5 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, entre recursos ordinários e o recurso previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal. Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso, por não ter sido previamente interposto o recurso obrigatório previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal.»
É entendimento que ora se reitera, sendo certo que dele não resulta, contrariamente ao sustentado na decisão recorrida, qualquer «fraude ao sistema constitucional de garantia da Constituição». Na verdade, as decisões das instâncias penais contrárias a jurisprudência uniformizada são decisões necessariamente precárias porque sujeitas a obrigatória impugnação na ordem dos tribunais judiciais e, assim, fatalmente destinadas a serem substituídas por decisões das instâncias superiores, que as confirmarão ou revogarão. O eficaz funcionamento do sistema de fiscalização da constitucionalidade não reclama a imediata abertura de recurso para o Tribunal Constitucional dessas decisões «precárias», bastando-se com a normal admissibilidade de recurso das decisões «definitivas» das instâncias superiores, a interpor, nos termos gerais, designadamente nas hipóteses das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo
70.º, pelas partes para tal legitimadas. O que desvirtuaria quer o sistema de fiscalização da constitucionalidade quer o sistema de revisão de jurisprudência uniformizada seria a artificial provocação, por iniciativa de juízes de instância discordantes da doutrina de determinado «assento», da intervenção, a destempo, do Tribunal Constitucional, perturbadora daquele sistema de revisão, que deve decorrer no âmbito da ordem jurisdicional comum, sem prejuízo – repete-se – de o resultado final ficar sempre sujeito ao controlo de constitucionalidade, nos termos gerais.”
É orientação – reiterada nos Acórdãos n.ºs 480/03, 503/03, 545/03 e 558/03, e ainda, em reclamações em tudo idênticas à presente, também oriundas do Tribunal Judicial da Comarca de Albufeira, nos Acórdãos n.ºs 470/03, 559/03 e 3/04 – que se mantém.»
É esta mesma orientação que – superando as dúvidas que poderiam resultar da consequente limitação, quando existir um acórdão de uniformização de jurisprudência, à faculdade de todo e qualquer tribunal provocar, mediante a recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, a intervenção imediata do Tribunal Constitucional, para decisão desta questão (e sendo certo que sempre resta à parte interessada a via do recurso ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, da decisão que venha a decidir o recurso obrigatório da decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça) – cumpre reiterar nos presentes autos, consequentemente indeferindo a presente reclamação. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, acordam em indeferir a presente reclamação. Sem custas.
Lisboa, 2 de Dezembro de 2004 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos