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Processo n.º 665/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, na 2.ª secção do tribunal constitucional
I. Relatório
1. A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo
78º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, da Decisão Sumária do relator, de 14 de Julho de 2004, que decidiu não tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade por ela interposto e condená-la em custas, com sete unidades de conta de taxa de justiça. Tal decisão teve o seguinte teor:
«1. A. interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 25 de Março de 2003, que confirmara a decisão da 1ª instância, julgando improcedente o pedido de resolução do contrato de arrendamento de natureza comercial, celebrado entre a recorrente e B., e o subsequente despejo. Nas alegações de recurso formulou as seguintes conclusões:
“1ª) – A decisão da 1ª instância violou o caso julgado formal, por não ter dado qualquer valor aos documentos e aos factos não impugnados, incorrendo na mesma violação o acórdão agravado, por se ter limitado a confirmá-la com base no art.
713º, n.º 5, do CPC.
2ª) – Mas o acórdão em mérito incorreu, ainda, em violação de outra espécie de caso julgado, ao declarar-se na impossibilidade de sindicar e reapreciar a matéria de facto, com o fundamento de que o despacho a fixar a base instrutória já havia transitado.
3ª) – O que não sucedeu, violando, assim, o Assento n.º 14/94, de 26/05.” Por acórdão de 20 de Novembro de 2003, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso, com os seguintes fundamentos:
«(...) III – Assim, a Autora começa por alegar, entre os fundamentos da sua impugnação, a violação do caso julgado formal. Todavia, para que possa haver lugar a recurso fundado na ofensa de caso julgado, torna-se necessário que a decisão recorrida seja contrária a outra proferida em momento anterior, e já transitada em julgado, em que sejam as mesmas as partes intervenientes, tendo tal decisão incidido sobre o mesmo objecto e sendo apoiada na mesma causa de pedir, nos termos do estatuído nos arts. 497º, 498º e 671º do CPC – Manual dos Recursos do Cons. Amâncio Ferreira, pág. 82 – ou seja, em casos em que se verifique uma violação de caso julgado material antecedentemente formado. Ora, atendendo a que tal indicado circunstancialismo não foi objecto de alegação por parte da recorrente, não pode colher acolhimento deste Supremo Tribunal, a por aquela invocada irrelevância dada pelas instâncias a documentos e factos constantes do processo, que manifestamente não integra o instituto de caso julgado, relevante para efeitos da apontada admissibilidade de recurso. IV – Invocou, igualmente, a recorrente a violação do conteúdo do Assento n.º
14/94, de 26/05, em virtude de, na decisão agravada, se ter recusado a sindicação da matéria de facto, com o fundamento do trânsito em julgado do despacho que fixou a base instrutória. Com efeito, através de tal Assento, hoje entendido com o valor de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência – art. 17º, n.º 2, do DL n.º 329-A/95, de 12/12
–, decidiu-se pela livre reformabilidade da especificação elaborada, até ao trânsito em julgado da decisão final, mantendo-se tal doutrina no domínio da reforma intercalar de 1995/96 – Estudos do Prof. Teixeira de Sousa, págs. 313 e
314. Ora, na peça objecto do presente recurso, e quanto a tal matéria, escreveu-se:
“Oportunamente foi lavrado o despacho saneador e organizado o mapa de factos assentes e a base instrutória. Nesta última peça, o M. Juiz seleccionou, dos factos alegados, os que eram relevantes para a decisão da causa, que considerou controvertidos, tudo nos termos do disposto no art. 511º do Cód. Proc. Civil. Assim, com base em tais factos, foram elaborados os quesitos constantes do mapa de fls. 50v e 51, de entre os quais os 1º a 9º, 11º, 13º e 22º. Foi, também, o douto mandatário da recorrente devidamente notificado para reclamar contra a selecção da matéria de facto, tendo o mesmo, porque nada veio reclamar, aceitado a base instrutória tal como fora organizada. Daí que não se compreenda que venha agora dizer que as obras referidas nesses quesitos estão expressamente confessadas. Seja como for, de uma simples leitura dos arts. 11º, 12º e 13º da contestação é de concluir que não se pode afirmar – como o faz a Ré (deverá querer dizer-se a A.) – que a Ré confessou, na contestação as obras em causa. Por isso, é também de concluir que a base instrutória, na parte ora em causa, foi correctamente organizada. Diga-se, ainda, que os documentos juntos pela Ré, nomeadamente a escritura a que a recorrente faz referência, não dispensa a alegação e prova testemunhal dos factos integrados nos quesitos cujas respostas a recorrente pretende ver alteradas. Não vislumbramos, portanto, que, do transcrito, se possa extrapolar a ocorrência de qualquer recusa dos Exm.ºs Desembargadores subscritores do Acórdão agravado, para, com fundamento no trânsito em julgado do despacho proferido sobre a matéria de facto tida como assente pelo tribunal de 1ª instância, se eximirem a apreciar a reclamação da recorrente, relativamente a factos que no entender da mesma se encontravam comprovadamente provados. Assim, o que pode, isso sim, concluir-se, é que houve lugar à apreciação concreta da referida reclamação, a qual, porém, não mereceu acolhimento. Não se verifica, portanto, qualquer violação à livre alterabilidade da matéria de facto tida como assente, decorrente da invocação do trânsito em julgado do despacho sobre a mesma proferido, mas sim, e apenas, a sua inalterabilidade por força da inexistência de quaisquer factos alegados, susceptíveis de conduzir à ocorrência de tal alteração.» A recorrente veio arguir a nulidade desta decisão, nos seguintes termos:
«Conclusões:
(...) B – Razões de direito a) Não reapreciando a matéria de facto e deixando incólumes as respostas aos quesitos, com base no trânsito em julgado do despacho que seleccionara a matéria controvertida – por do mesmo não ter havido reclamação por parte da Autora – tanto se violou na RP o caso julgado formal pela positiva, como pela negativa, por comissão como por omissão. b) Destarte, não é lícito concluir-se, como se fez, agora, no douto acórdão em mérito, que “houve lugar à apreciação concreta da referida reclamação”, rectius quando este Venerando Tribunal - suscitando-se aqui as mesmas questões que já haviam sido levadas às conclusões da apelação - veio também a limitar-se à temática das obras que, se não é de todo inócua, constitui a de menor relevância, do ponto de vista da resolução do contrato. c) Assim, ao julgar-se este Agravo improcedente com aquele fundamento, incorreu este Venerando Tribunal ad quem, não apenas na prática da nulidade prevista no art. 668º-1-d) do CPC – por deixar de conhecer das questões vindas de referir – mas, também, em corolária violação do Assento 14/94. d) O que tudo poderá suprir-se em sede de ampliação e reformulação da matéria de facto, devendo, para tanto, os autos baixar à Relação do Porto. e) Tanto mais que não se tiraram ali – e importa que se tirem – as devidas ilações dos factos contemplados nas als. a), b), c) e e) da especificação nem das respostas aos quesitos 12º, 18º, 19º e 28º e, muito menos, se procedeu à respectiva subsunção jurídica dos factos plasmados nas respostas aos quesitos
16º, 17º, 24º, 25º, 26º, 27º, 29º, 30º, 31º e 32º.
4ª – Impõe-se, pois, a anulação do douto acórdão que antecede, pois louvando-se no pretenso caso julgado formal – e dizemos assim porque, embora se afirme que a RP se pronunciou sobre as conclusões da apelante, tal não aconteceu – desviou-se o mesmo da J. U. do STJ, maxime do Ass. 14/94.
5ª – Acresce que, na economia do art. 678º-2 do CPC, não afastou o legislador a possibilidade de se recorrer também para o STJ quando ocorra violação do caso julgado formal, pelo que só por lapso material é que no douto acórdão em mérito se deixou exarado o entendimento de que, à luz desse normativo, apenas caberia a hipótese do caso julgado material.
6ª – Tal asserção não pode, assim, manter-se, por constituir doutrina que esse Venerando Tribunal nunca perfilhou, não perfilha, nem poderia perfilhar, sob pena de ficar completamente adulterada a letra e o espírito daquele normativo.
7ª – E, ao contrário deste douto aresto, a referência no acórdão agravado “às obras constantes do mapa de fls. 50 v e 51” e aos quesitos “1º a 9º, 11º, 13º e
22º”, não significa que a RP não se tenha recusado, como recusou, a reapreciar a matéria de facto, com base no caso julgado formal do saneador.
8ª – É que, a RP apercebeu-se perfeitamente de que havia mais partes em causa, designadamente aquelas a que se reportam as conclusões da apelação 6ª, 7ª, 18ª,
19ª, 20ª, 21ª, 22ª, 23ª, 24ª, 25ª, 26ª, 27ª, 28ª e 29ª, as quais, em virtude daquele entendimento, acabaram por ficar sem resposta, já que no acórdão agravado se considerou que “a base instrutória, na parte em causa – ou seja, na respeitante às tais obras – fora bem organizada.”
9ª – Mas esta abordagem constitui pura mistificação do thema decidendum, em que o douto acórdão em mérito não atentou, na medida em que, focalizando factos de menor relevância e espartilhando-os sob as expressões “de entre os quais” e
“nomeadamente”, não chegou a RP a tomar posição concreta sobre nenhuma das questões que a recorrente lhe colocara.
10ª – Ali – e, agora, também aqui – à revelia das disposições combinadas nos arts. 158º, 659º-3, 660º-2, 668º-1, d) do CPC e Ass. 14/94.
11ª – Nessa omissão assenta, pois, a certeza de que a RP se recusou a reapreciar todos os quesitos que contemplavam o pedido e os factos que o sustinham, quer relativos à caducidade do contrato, com base na violação do 1038º, g) do CC quer
à resolução deste, com base na violação do 64º-1, b), d), f) e h) do RAU.
12ª – E é inverosímil que a RP não se tenha apercebido perfeitamente da existência destas DUAS CAUSAS DE PEDIR, não sendo, portanto, de atribuir a simples erro de julgamento o facto de nem uma só ter exaurido, pelo que tal omissão ficou a dever-se, ao fundamento de que “a Autora não reclamara da selecção da matéria de facto, aceitando a B. I. tal como fora organizada”.» O Supremo Tribunal indeferiu o pedido, por acórdão de 3 de Fevereiro de 2004:
“(...) II – Como se verifica da análise do aresto objecto da presente reclamação, no mesmo foi devidamente esclarecido o motivo determinante da inaplicabilidade à situação em apreço do conteúdo daquele Acórdão Uniformizador. Com efeito, e em virtude da matéria de facto que, na tese da agravante, foi indevidamente julgada pelo tribunal de 1ª instância, ter sido objecto de apreciação concreta no Acórdão da Relação, o deferimento da sua pretensão redundaria na apreciação, no agravo, de matéria de facto decidida pelas instâncias, o que se traduziria, então, na violação do estatuído nos arts. 684º, n.º 1, e 755º, n.º 1, do CPC.
(...)” Veio, então, a recorrente requerer a reforma deste último acórdão, “com base em violação da Lei Processual Civil” e “por violação da CRP”, alegando, no que a esta última questão respeita, que:
“(...) II – DA REFORMA, por violação da CRP
1. Por outro lado, a recusa em aplicar o Assento 14/94 e em ver desrespeito pelo caso julgado – nos precisos termos que foram levados ao requerimento que este antecede – integram violação dos preceitos constitucionais, designadamente dos
ínsitos nos arts. 2º - com referência ao art. 27°, onde vêm consagradas a certeza e a segurança do direito – art. 204º – e, bem assim, nos arts. 13º-1 e
20º-4, todos da CRP, referindo-se estes dois últimos à força do caso julgado.
2. Inconstitucionalidade que resulta, com meridiana clareza, das disposições combinadas: a) No art. 156º-1 do CPC, na medida em que “os juizes têm o dever de administrar justiça, proferindo despacho ou sentença sobre as matérias pendentes e cumprindo, nos termos da lei, as decisões dos tribunais superiores. b) No art. 204º da CRP, na medida em que “os Tribunais não podem, nos feitos sujeitos a julgamento, aplicar ou deixar de aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou nos princípios nela consignados”.
3. E como não pode a impetrante recorrer, desde logo, ao Tribunal Constitucional, com vista à apreciação da ilegalidade de que enfermam os acórdãos em mérito, sem que, antes, este Tribunal – que passará, então, a instância a quo – se pronuncie sobre a sua inconstitucionalidade, é mister que Vossas Excelências o possam fazer, procedendo à reforma daquelas doutas decisões.” Em 23 de Fevereiro de 2003, deu entrada no Supremo Tribunal de Justiça um requerimento da recorrente com o seguinte teor:
“A., com os sinais dos autos em que é RECORRENTE, dando-se agora conta, ao reler a cópia do requerimento para pedido de reforma que antecede, que o ponto II-1 do mesmo enferma de um lapso grosseiro, por troca do texto-base, de natureza informática, cometido por quem o processou e de que o signatário não se chegou a aperceber quando lhe apôs a sua assinatura (por ter sido enviado à noite e via fax) vem agora requerer a Vossa Excelência lhe permita rectificá-lo. Assim, O referido ponto II - 1 deverá ter a seguinte redacção: II – DA REFORMA, por violação da CRP
1. Por outro lado, a recusa em aplicar o Assento 14/94 e em ver desrespeito pelo caso julgado – nos precisos termos que foram levados ao requerimento que este antecede – integram violação dos preceitos constitucionais, designadamente dos
ínsitos nos arts. 2º e 20º – onde vêm consagrados e assegurados o acesso ao direito, a certeza, segurança e o direito a que uma causa seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo; nos arts. 202º, 204º,
205º – este, contemplando a força do caso julgado, a do Assento 14/94 e apontando para a interpretação restritiva que vem agora dar-se ao art. 755º do CPC, em si mesma contraditória e contrária à própria ratio dos normativos a que se refere e que são os arts. 712º-1, a), b); 713º- 6; 646º-4; 716º-1, 2, 731º,
732º, 754º-2, 3 e 722º-2, 2ª parte e 3, todos do CPC.” Por acórdão datado de 20 de Abril de 2004, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu o solicitado pedido de reforma de acórdão, dizendo:
“(...) II – Ora, analisando o prolixo requerimento apresentado, constata-se, nomeadamente da parte final do mesmo, que a recorrente pretende que haja lugar à reforma da decisão proferida por este Supremo sobre a nulidade que havia invocado no seu antecedente requerimento de fls. 175 e segs., com a subsequente anulação do Acórdão que recaiu sobre o objecto do agravo pela mesma interposto. Todavia, no domínio do direito processual nacional, inexiste a atribuição às partes intervenientes em lide forense da faculdade de requererem a reforma da decisão proferida sobre anterior pedido das mesmas, relativo à existência de vício processual do Acórdão inicial, enquadrável no n.º 1 do art. 668º do CPC – arts. 670º, n.º s 1 e 3, a contrario, 716º, 749º e 762º, n.º 1, da mesma codificação. Com efeito, o deferimento do pretendido pela ora recorrente, traduzir-se-ia no protelamento, temporalmente ilimitado, do trânsito em julgado da decisão constante do Acórdão inicialmente proferido, dada a inexistência, em tais circunstâncias, de quaisquer limites, no domínio da continuada reforma das decisões, que, sucessivamente, viessem a ser proferidas. Por outro lado, tal entendimento traduzir-se-ia na “descoberta” do expediente legal conducente à violação da disjuntiva constante do n.º 3 do citado art. 670º do CPC.”
2. A recorrente apresentou então um requerimento onde invocava, primeiro,
“omissão de pronúncia”, e, depois, dizia:
«III– DO RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL A – DA MOTIVAÇÃO
1. Depara-se a recorrente com fundamentos pretensamente justificativos da não alteração da matéria de facto e da decisão que recaiu sobre o mérito do pedido que, vindos de quem vêm, são, no mínimo, perturbadores, para quem já abandonou Coimbra há mais de três décadas e tem imolado toda a sua vida na defesa desta dama que é a Justiça.
2. É que, achamos impossível que Vossas Excelências se tenham recusado a lançar mão do Ac. Un. 14/94 e, logo, a reapreciar as questões em mérito e a alterar a matéria de facto, com os fundamentos de que (citamos):
- “... tal seria violar o estatuído no art. 755º-1 do CPC.”
- “... tal entendimento traduzir-se-ia na descoberta do expediente legal conducente à violação da disjuntiva constante do art. 670º-3 do CPC”
- “... o deferimento da pretensão redundaria na apreciação, no agravo, de matéria de facto decidida pelas instâncias, o que se traduziria, então, na violação do estatuído nos arts. 684º-1 (?!...) e 755º-1 do CPC”
3. Torna-se mesmo incompreensível que esta suprema instância haja sufragado o entendimento da Relação, na parte em que ali se argumentara que, não tendo a recorrente reclamado do despacho saneador, deixara-o transitar e que, por isso, lhe estava vedado pretender que a matéria de facto fosse reapreciada e alterada. Mais, ainda. Para fundamentar o acórdão que julgou o agravo improcedente, esta suprema instância deixou exarado que “... para haver lugar a recurso fundado na ofensa de caso julgado (na perspectiva do 678º-2 do CPC) torna-se necessário... que haja violação do caso julgado material”.
4. Porque este considerando nos pareceu ter ficado a dever-se a puro lapso – pois recusamo-nos a crer que o mesmo provenha de tão ilustres Magistrados, cujo saber e experiência todos lhes reconhecemos – logo a recorrente se apressou a arguir a nulidade do douto acórdão, na expectativa de vermos esse lapso rectificado.
5. Efectivamente, se ubi lex non distinguit non distinguire debemus, mal se compreenderia que se tenha arredado da abrangência do art. 678º, 2, do CPC a inclusão do caso julgado formal previsto no art. 672º, quando não é esse o sentido e, muito menos, a letra daquele normativo processual.
6. Como se vê da leitura do Acórdão que recaiu sobre aquela arguição de nulidades, Vossa Excelência silenciou a questão, seguramente por se ter apercebido de que tal entendimento, dizemo-lo com respeito, fora menos feliz. Mas, como se vê do mesmo acórdão, vem ali produzido um considerando que veio fazer luz sobre as razões por que, afinal de contas, entendeu esse colendo Tribunal que não seria possível reapreciar a matéria de facto.
É que, como ali se diz, para além de a RP já o ter feito – o que não sucedeu, como se vê do respectivo acórdão, com o fundamento de que a recorrente não reclamara do saneador e que, por isso, o despacho fizera caso julgado formal, acabando, no mais, por confirmar a sentença nos termos do 713º-5 – “o deferimento da pretensão da recorrente traduzir-se-ia, então, na violação do estatuído nos arts. 684º-1 e 755º-1 do CPC”.
7. Tal entendimento é inconstitucional, já o dissemos, pois, pondo de parte o primeiro normativo - cuja citação terá sido feita por lapso material - diremos que o segundo, ou seja, o art. 755º, vem precisamente reforçar aquilo por que tem vindo a agravante a bater-se. Basta atentar no seu teor, onde se prescreve que o agravo interposto na 2ª instância para o STJ “pode ter por fundamento as nulidades dos arts. 668º e 716º”. E, além disso, “é-lhe aplicável o disposto no n.º 2 do art. 722º”, sendo que a 2ª parte deste último normativo vem dar inteira razão à recorrente.
8. De facto, e pour en cause, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais pode ser objecto de agravo interposto na 2ª instância para o STJ, ex vi do cit. 755º-2, sempre que haja ofensa de uma disposição expressa na lei que exige certa espécie de prova para a existência (ou inexistência) do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
9. Ora, basta aplicar o disposto nos arts. 352º, 355º-1, 356º e 393º todos do C. Civil, à confissão de determinados factos e aos documentos juntos aos autos, não impugnados, para se alcançar linearmente que há elementos no processo – e já se disseram quais, tanto nas alegações de apelação como nas do agravo – que devem ser tidos como assentes, pese o facto de não terem sido contemplados na especificação ou que não tivesse havido, como, aliás, houve, reclamação do saneador. E o que, inequivocamente, resulta do disposto no art. 646º-4 e do Assento 14/94, que o Acórdão proferido nesta suprema instância se recusou a aplicar, fazendo daquele aresto uniformizador e do citado art. 755º uma interpretação, repetimos, inconstitucional.
10. É, pois, com o devido respeito, mas também com muita mágoa - tanta é a estima e consideração que esse Venerando Tribunal sempre nos mereceu - que temos de dizer aqui que a posição assumida, relativamente ao leit-motif do recurso, assume foros, nestas circunstâncias, não apenas de verdadeira sonegação de Justiça, mas também de genuína descaracterização do caso julgado.
11. Tudo a apontar para a conclusão de que a interpretação que Vossas Excelências fazem dos normativos citados nos acórdãos sobre o mérito do agravo e dos requerimentos que se lhe seguiram, bem como a fundamentação que lhes serve de suporte, são inconstitucionais, por violarem as disposições combinadas nos arts. 202º-2, 204º e 205º-1 da C.R.P, na medida em que se afastaram claramente da lei processual civil que temos, designadamente dos arts. 156º-1, 158º,
646º-4, 660º-2, do CPC e, bem assim, do art. 3º-1 e 2 do EMJ.
12. A tal propósito, convirá ter bem presente que a 1ª instância apenas se pronunciou sobre a caducidade do direito de acção - e mal, porque supriu a inércia da parte - mas nem uma palavra disse sobre a força probatória dos documentos juntos aos autos, sobre a confissão irretratável de imensos factos e sobre as vertentes essenciais da causa de pedir, a saber:
- caducidade do contrato, com base na violação do 1038º- g) do CC
- direito à sua resolução, com base no art. 64º-1, b), d), f) e h), RAU.
13. Os autos forneciam, pois, todos os elementos necessários à alteração da matéria assente, cumprindo à Relação – rectius, a esse Supremo Tribunal, porque ali se fez, repetimos, uso indevido do art. 713º-5 do CPC – alterar a matéria de facto, como o impunha o Assento 14/94, a que todas as instâncias cíveis estão vinculadas.
14. O que tudo nos leva a insistir que o dever constitucional ínsito no art.
202º-2 da CRP nunca foi respeitado. Na verdade, a) Contrariando o disposto nos arts. 204º e 205º-1 da C.R.P., Vossas Excelências não fundamentaram, devida e correctamente – que é o mesmo que dizer, de acordo com a lei – os Acórdãos que antecedem, por manifesta inobservância da lei processual civil, designadamente do disposto nos arts. 156º-1, 158º-1, 2,
660º-2, 716º-1 e 2, 722º-1 e 2, 754º-3 e 755º-2, todos do CPC, deixando, ainda, de especificar os fundamentos de facto e de direito que serviram de base ao indeferimento da referida arguição de nulidades e do pedido de reforma (só assim se explicando que sobre tantas e tão candentes questões ali suscitadas, V. Ex.ª tenha apodado de prolixo o nosso requerimento e tenha matado o problema de raiz, com meia dúzia de palavras) incorrendo na prática das nulidades previstas no art. 668º-1, b) e d) do CPC. b) Contrariando o disposto nos arts. 204º e 205º-2 da cit. Lei, o art. 722º-2 do CPC, a letra e o espírito do cit. Acórdão Uniformizador 14/94 e desviando-se, dialelamente, do seu alcance teleológico, recusaram-se Vossas Excelências a lançar mão dessa privilegiada fonte do direito, com vista à requerida alteração da matéria de facto, como se o processo não estivesse inquinadíssimo de erros de análise, de apreciação e valoração da matéria de facto e, sobretudo, de indesmentíveis imprecisões.
15. Por outro lado, a recusa em aplicar o Assento 14/94 e em ver desrespeito pelo caso julgado formal integram violação dos preceitos constitucionais, designadamente dos consignados nos arts. 2º, 20º, 202º, 204º, 205º da C.R.P., todos com referência ao disposto no art. 755º do CPC, em cuja ratio Vossas Excelências fundamentaram a recusa em alterar a matéria de facto e a não aplicação do Ass. 14/94, quando, dos preceitos que aquele normativo se reporta
– e que são os arts. 712º-1, a), b); 713º-6; 646º-4; 716º-1, 2, 731º, 732º,
754º-2, 3 e 722º-2-2ª parte e 3 todos do CPC – resulta precisamente o contrário. B – DO RECURSO
1. Porque assim é, ainda subsidiariamente, para a hipótese de improceder a primeira parte deste requerimento e de não se anular o processado, decidindo-se, depois, em conformidade, vem a impetrante requerer que os autos subam ao Tribunal Constitucional, para o qual se interpõe o presente recurso, que subirá imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
2. Recurso este que vem interposto de todos os acórdãos proferidos nesta suprema instância – dada a relação de absoluta interdependência que apresentam entre si
– pelas razões acabadas de sumariar e nos termos dos arts. 72º-2 e 75º-1 da LTC, por os mesmos se mostrarem feridos de inconstitucionalidade, sobretudo face à fundamentação de que se socorreu, não consentânea com as normas do nosso direito processual civil, designadamente das prescritas nos arts. 156º-1, 158º-1, 2,
646º-4, 660º-2, 670º-3, 716º-1, 2, 722º-1 e 2, 754º-3, 755º-1 e 2, tudo com preterição dos princípios constitucionais consagrados nos arts. 204º e 205º, 1 e
2, da nossa Lei Fundamental.
3. O presente recurso é interposto ao abrigo do disposto no art. 70º-1, b), da LTC e, para os fins previstos no art. 75º-A, 1 e 2, a recorrente declara: a) Que considera particularmente inconstitucional a recusa desse STJ em aplicar o Ac. Un. 14/94, que se tem por violado, com base na fundamentação de que esse colendo Tribunal se socorreu e, sobretudo, violadas:
1) A norma prescrita no art. 670º-3, na medida em que o termo “ou”, na economia desse dispositivo, não assume a força de conjunção disjuntiva, mas sim de coordenada copulativa, nada impedindo, pois, a impetrante de, primeiro, arguir nulidades e, depois, requerer a reforma do acórdão ou vice-versa.
2) A norma do art. 678º-2, relativamente ao que deve entender-se por caso julgado.
3) E, ainda, a dos arts. 755º-1, 2 e 722º-2 do CPC, com referência aos arts.
35º, 2º, 355º-1, 356º, 356º [sic] e 393º, todos do C. Civil. b) E, para os fins previstos no n.º 2 do cit. art. 75º-A, reitera que a inconstitucionalidade em mérito já fora suscitada no requerimento onde pugnara pela reforma do acórdão que julgara o agravo improcedente. E só aí, porque foi só no douto acórdão que se pronunciou sobre a arguição da sua nulidade que vimos plasmadas, concretamente, as razões por que entendera esse Venerando Tribunal não reapreciar a matéria de facto.» Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3. O presente recurso foi admitido no tribunal a quo, mas, como dispõe o n.º 3 do artigo 76.º da Lei do Tribunal Constitucional, essa decisão não vincula este Tribunal, e, entendendo-se que não é de conhecer do recurso, é caso de proferir decisão sumária, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A do mesmo diploma.
4. Com efeito, são requisitos específicos para se poder tomar conhecimento do presente recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, que se tenha impugnado durante o processo a constitucionalidade de uma norma, que essa norma tenha sido aplicada na decisão recorrida como ratio decidendi, e que tenham sido esgotados os recursos ordinários dessa decisão. Aquele primeiro requisito deve ser entendido, segundo a jurisprudência constante deste Tribunal (veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 352/94, in Diário da República, II série, de 6 de Setembro de 1994), “não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal modo “que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão”, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que
(a mesma questão de constitucionalidade) respeita”, por ser este o sentido que é exigido pelo facto de a intervenção do Tribunal Constitucional se efectuar em via de recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma questão que o tribunal recorrido pudesse e devesse ter apreciado (ver ainda, por exemplo, o Acórdão n.º 560/94, Diário da República, II, de 10 de Janeiro de 1995 e ainda o Acórdão n.º 155/95, in Diário da República, II, de 20 de Junho de 1995). Por outro lado, recorde-se que no direito constitucional português vigente, apenas as normas são objecto de fiscalização de constitucionalidade concentrada em via de recurso (cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
18/96, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 1998, p. 821), com exclusão dos actos de outra natureza, designadamente, das decisões judiciais em si mesmas.
5. Ora, no caso vertente, falha logo o primeiro requisito referido, por a inconstitucionalidade ser assacada, não a uma norma, mas à decisão. Como se viu pelas transcrições efectuadas, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo nenhuma questão de constitucionalidade normativa foi enunciada. A desconformidade com a Constituição foi, apenas, invocada já no pedido de reforma do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Fevereiro de
2004 (fls. 184-185), ele próprio já proferido sobre arguição de nulidade do Acórdão daquele Supremo Tribunal de 20 de Novembro de 2003 (fls. 165-169), que decidiu não ter lugar recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo dos invocados n.ºs 2 e 6 do artigo 678º do Código de Processo Civil. Ou seja, a questão de constitucionalidade foi suscitada num momento em que já se encontrava esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo para sobre ela se pronunciar. O que, só por si, seria suficiente para se não poder tomar conhecimento do recurso. Acresce que, mesmo nesse momento, não foi suscitada de forma clara e perceptível qualquer questão de constitucionalidade de norma(s), pois a inconstitucionalidade vem referida, não a qualquer norma, mas à decisão (de
“recusa em aplicar o Assento 14/94 e em ver desrespeito pelo caso julgado”). E mesmo no requerimento de interposição de recurso, de novo se imputa a inconstitucionalidade às decisões – por violação de normas constitucionais e de direito infra-constitucional, e, em particular, por recusa de aplicação de um Acórdão de Uniformização (aliás, em termos diversos dos que a recorrente usara no dito pedido de reforma, para que expressamente remete a suscitação da questão). Não tendo a questão de constitucionalidade normativa sido suscitada perante o tribunal recorrido, não pode, agora, o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do presente recurso.»
2. Diz-se na reclamação apresentada:
«I – Do recurso para o TC e seus antecedentes Excelências,
1. Esta acção improcedeu na 1ª instância, por absoluta falta de apreciação e valoração de alguns dos documentos não impugnados e da força emanada de vários factos confessados pela própria Ré e de outros que vieram a apurar-se em audiência de julgamento. Apelando da sentença, pugnou a recorrente pela sua revogação, não apenas com base nesses fundamentos, mas também porque - como fez constar das conclusões 1ª,
2ª, 3ª, 9ª, 10ª, 11ª, 12ª, 15ª, 16ª, 17ª e 24ª - para além de algumas das respostas dadas aos quesitos não poderem manter-se.
2. A Relação não atendeu a nenhum deles - deixando de se debruçar sobre toda a problemática levada às conclusões 18ª, 19ª, 20ª, 21ª, 22ª, 23ª, 24ª, 28ª e 29ª - limitando-se a referir que lhe estava vedado alterar a matéria de facto, com o fundamento de que (citamos): “o Juiz seleccionara. dos factos alegados os que eram relevantes para a decisão da causa... O mandatário da recorrente foi notificado para reclamar ... tendo o mesmo, porque nada veio reclamar, aceitado a B.I. tal como fora organizada. Daí que não se compreenda que venha agora dizer que as obras referidas nesses quesitos estão expressamente confessadas...”
3. É, pois, apodíctico que a RP se recusou a reapreciar a matéria de facto, com o fundamento de que o despacho a fixar a base instrutória já havia transitado, integrando tal recusa, inquestionavelmente, violação do caso julgado formal, pelo que a impetrante logo agravou dessa decisão para o STJ, ao abrigo do art.º
678°-2, do CPC, com base em violação do art.º 646°-4, do CPC e da jurisprudência uniforme do STJ, designadamente do Ac Un. 14/64.
4. Decisão de que a recorrente logo agravou para o STJ, não para ali se rever toda a matéria de facto e se julgar, desde logo, a acção procedente - sendo
óbvio que, a ter sido essa a sua intenção, não interporia recurso de Agravo, mas sim de Revista - mas para que ali se constatassem as irregularidades processuais que infelizmente ainda continuam por sanar e se determinasse que a 2ª instância procedesse àquela operação ex vi do cit. Ac. Un. 14 94.
5. De facto, ao apelar da sentença proferida no Tribunal de comarca, a Autora arguiu expressamente a nulidade emergente da falta de conhecimento e valoração das respostas negativas aos quesitos 24°, 25°, 26° e 27°, mas, ali, o Sr. Juiz nem uma palavra disse relativamente a ela, pelo que deveria a Relação ter-se pronunciado sobre o mérito dessa arguição. E também não o fez.
6. Cumpria, pois, ao STJ saná-la, ou mandá-la sanar, pelo que, não o tendo feito, resta a mesma incólume e sempre subsistirá no processo, enquanto não houver pronúncia nos autos sobre tal desiderato, daí se almejando, ainda, a ilação de que estava vedado à Relação fazer uso, como fez, da faculdade prevista no art.º 713°-5, do CPC.
7. Por tudo isso é que, pese embora a muita consideração que temos pelos Excelentíssimos Conselheiros do STJ, não deixaremos passar em claro esta chocante sonegação de justiça, e que consistiu em ter julgado o Agravo improcedente, quando o seu escopo fundamental era apenas o de se pugnar pela revogação do Ac. RP que, por seu turno, se recusara a reapreciar a matéria de facto com o fundamento de que o despacho saneador já transitara, que é o mesmo que dizer, já fizera caso julgado formal, limitando-se, depois, a confirmar a decisão da 1ª instância, no uso indevido do 713°-5.
8. E isso à revelia de toda a unânime jurisprudência sobre a matéria, citando-se, v.g. o Ac. STJ de 6.10.1981, in BMJ, 310.º-259, que já então entendia que “a fixação da especificação e do questionário, com ou sem reclamação, com ou sem recurso do despacho proferido sobre a reclamação, não conduz a caso julgado formal, podendo a selecção da matéria de facto, então feita, ser posteriormente modificada”. Mas também e, sobretudo, à revelia da jurisprudência já uniformizada no Assento
(Ac. Un.) 14/94, onde se decidiu que “...a especificação, tenha ou não havido reclamações, tenha ou não havido impugnação do despacho que as decidiu, pode sempre ser alterada, mesmo na ausência de causas supervenientes, ATÉ AO TRÂNSITO EM JULGADO DA DECISÃO FINAL DO LITÍGIO”.
9. Estes, Excelências, os motivos essenciais que levaram a impetrante, mau grado a decisão ser irrecorrível, em virtude do reduzido valor processual desta acção, a interpor Agravo desse acórdão para o STJ. Não porque a decisão em si fosse inconstitucional - porque o facto de atentar contra a doutrina do Assento não faz inquinar, desde logo o acórdão de inconstitucionalidade, de contrário, bem o sabemos, teria a mesma de ser arguida logo naquela instância - mas antes e apenas porque estava em causa saber se tal decisão violava - como ali se sustenta - ou não violava, o caso julgado formal que fizera o despacho saneador e, ainda porque a mesma atentava contra a jurisprudência uniformemente fixada pelo STJ.
10. Efectivamente, é aí, nesse limiar diferencial que reside a inconstitucionalidade da decisão e das normas que lhe serviram de suporte jurídico. Não são portanto essas normas que são inconstitucionais, mas antes a interpretação que delas se fez. II - DA RECLAMAÇÃO PROPRIAMENTE DITA
1. Despida a causa da sua complexidade e de alguma confusão que a tem rodeado - nem sempre por culpa do signatário, embora devamos assumir que, para tanto, terá também contribuído alguma incontinência verbal da nossa parte - espera a recorrente, desta feita, sintetizar as linhas essenciais do seu raciocínio, em ordem a poder fazer-se entender melhor.
2. Assim, não se recorreu para esse Venerando Tribunal, para aí se decidir da bondade ou da injustiça de que enfermam as decisões já proferidas - por, reconhecidamente, não ser essa a função do TC, de contrário, como bem observou o Excelentíssimo Conselheiro-Relator, estaria este a funcionar como uma 4ª instância de recurso - mas apenas no sentido de se julgarem inconstitucionais, por violadas, as normas que serviram de fundamentação jurídica ao STJ para não ter revogado o Ac. RP .
3. É claro que quem recorre reage e funciona, por vezes, como quem pede. Pede quase sempre mais, para levar, ao menos, o essencial. In casu, a recorrente pediu que o STJ revogasse o Ac RP e por razões de economia e de celeridade processuais reapreciasse logo ali a matéria de facto. Pretensão algo exagerada, convimos por estarmos em presença de um Agravo, mas não tão peregrina como parece à primeira vista...
4. Fosse como fosse - porque, do ponto de vista da interpretação e aplicação das leis, não estão os senhores Juizes sujeitos à alegação das partes – o facto de se indeferir o mais não quer dizer que haja de se recusar o menos. E a esse minus bastava, não nos cansamos de repetir, a simples revogação do Ac. RP e mandar baixar os autos, para ali se conhecer da matéria de facto.
5. Eis porque nos parece, Venerandos Conselheiros, ser flagrante a inconstitucionalidade da decisão recorrida. Não por ser injusta, como é - mas apenas porque A ARGUMENTAÇÃO ADUZIDA PARA A RECUSA DO STJ EM REVOGAR O AC. RP É QUE SE MOSTRA FERIDA DE INCONSTITUCIONALIDADE já que, para tanto não tem o STJ que reapreciar a matéria de facto - argumento que se colhe da prolação do acórdão que julgou o Agravo improcedente mas antes determinar que seja a Relação a fazê-lo uma vez que o revogando aresto atentou contra a força e doutrina do Ac. Un.14/94.
6. Foi, também, por isso que se recorreu para o Tribunal Constitucional. Na verdade, embora admitindo que nos tenha faltado inspiração e poder de síntese para dizermos melhor em menos tempo, não se pede a Vossas Excelências que se substituam ao STJ e decidam aqui o que ali não se quis decidir, mas apenas e tão só repetimos que se pronunciem sobre a parte em que se recusa a apreciar as questões suscitadas.
7. Só agora vem a recorrente suscitar a questão e não antes, pela singela razão de que o fundamento que servira de base à não revogação do acórdão proferido pela Relação do Porto, qual seja o de que (citamos) “o deferimento da pretensão redundaria na apreciação, no agravo, de matéria de facto decidida pelas instâncias...” revelou-se-nos DE TODO IMPREVISÍVEL, do mesmo só tendo conhecimento a recorrente com a prolação do acórdão que se pronunciou sobre o mérito do pedido da sua reforma.
8. E é precisamente neste especial vector, que assentam, podemos dizer, as razões que levaram a recorrente a discordar da decisão do STJ, segundo a qual, na economia do art.º 678°-2 do CPC, apenas estaria contemplada a hipótese de recurso quando ocorresse violação do caso julgado material. Tal normativo processual foi, assim, manifestamente violado, pelo que a interpretação que do mesmo vem fazer o STJ é, pelo que já se disse, inconstitucional. Tiraria com uma mão aquilo que o legislador quis dar com a outra.
9. Efectivamente, ubi lex non distinguit non distinguire debemus, tanto mais que a ratio que subjaz ao disposto no art.º 678°-2 do CPC assenta no carácter ontológico da própria decisão, quer ela seja do foro interno do processo quer se refira à sua força externa, à sua eficácia erga omnes, digamos assim, uma vez que a mesma, dentro ou fora do processo, faz caso julgado. Quer dizer, independentemente do seu acerto e dentro de certos limites, não pode voltar a discutir-se. Foi, de resto, por estar aí em causa uma decisão que pode afectar os direitos das partes para sempre, que o legislador quis que tal desiderato pudesse ser analisado e supervisionado até à última instância.
10. Assim, é irrecusável que a prescrição contida no art.º 872°-2 do CPC tanto abrange o caso julgado formal como o caso julgado matéria [sic], não se distinguindo aí as situações previstas nos art.s 671° e 672°, pelo que não podia o STJ recusar-se a apreciar as questões que lhe eram colocadas no recurso - as questões pertinentes, é claro, porque outras haveria. já o reconhecemos, que excederiam as legítimas expectativas de quem apenas recorre de Agravo - com a dupla fundamentação que lhe serviu de base, ou seja: a) Num primeiro momento - mais precisamente, no acórdão que conheceu directamente do recurso de Agravo - para não ter de se pronunciar sobre o respectivo mérito, socorreu-se do já referido argumento, ou seja, que só o caso julgado material estaria abrangido na previsão do 678°-2. b) Mas, depois, perante a demonstração aduzida no requerimento que se lhe seguiu
- onde a impetrante, julgamos que bem, rebateu aquele argumento, pela forma acabada de expor em II. 9°, 10º - aquele Tribunal, agora, a quo, avançou com um outro fundamento - o referido em II.7 (“o deferimento da pretensão da recorrente redundaria na apreciação, no agravo, de matéria de facto decidida pelas instâncias...” que, dizemo-lo com respeito, constituiria uma verdadeira afronta a qualquer iniciado nestas lides, quanto mais a quem já abandonou Coimbra há tantos anos. Infelizmente, como sói dizer-se, preso por ter cão e preso por o não ter!... Como assim, se dos art.s 754° e 755° do CPC, longe de obstar a que o STJ conhecesse do Agravo, antes exigia que o revogasse imediatamente e determinasse a baixa dos autos à RP, para os referidos fins?
11. Efectivamente, a não aplicação dos Assentos (Acs Un.) não constitui, hoje, violação da CRP, não significa que em sede de direito processual comum possam as instâncias esquivar-se como sucedeu ao cumprimento das prescrições contidas no CPC in casu no art.678°-2 e 5 e Ac. Un. 14/94. Eis, pois, Excelências, porque se defendeu e continuamos a defender - sem prejuízo, claro está, de admitirmos que haja uma forma mais correcta e mais rigorosa, do ponto de vista jurídico, de formular o mesmo raciocínio - que também aquele segundo argumento está ferido de inconstitucionalidade, violando frontalmente a ratio daqueles dois normativos.»
3. A entidade recorrida não respondeu à reclamação. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3. A presente reclamação é claramente improcedente, uma vez que, apesar da sua extensão, não chega a pôr em causa os fundamentos em que se esteou a decisão reclamada. Na verdade, a recorrente começa a sua “reclamação propriamente dita” por assumir que na presente causa, para “alguma confusão que a tem rodeado” “terá também contribuído alguma incontinência verbal da [sua] parte”, dizendo, mais à frente, que lhe poderia ter “faltado inspiração e poder de síntese para dizermos melhor em menos tempo”. Mas, apesar destas afirmações, e do extenso requerimento da reclamação, não se chega nele a pôr em causa o fundamento essencial da decisão reclamada: isto é, que a inconstitucionalidade assacada nos autos, quer “durante o processo”, quer no próprio requerimento de recurso, o foi, não a uma (ou mais) norma(s), mas à própria decisão. Tal fundamento permanece válido, sem nada que o infirme: antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo nenhuma questão de constitucionalidade normativa foi enunciada (a inconstitucionalidade só foi invocada já no pedido de reforma do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Fevereiro de 2004, a fls. 184-185), isto, é, quando já se encontrava esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo para sobre ela se pronunciar; mesmo nesse momento, a inconstitucionalidade foi reportada, não a qualquer norma, mas à decisão (de “recusa em aplicar o Assento 14/94 e em ver desrespeito pelo caso julgado”); e foi isto que de novo se efectuou no requerimento de interposição de recurso, de novo se imputa a inconstitucionalidade às decisões. Estes fundamentos permanecem intocados por todo o extenso requisitório da reclamante, que, aliás, se reporta várias vezes a “normas que são inconstitucionais”, e à “interpretação que delas se fez” (“as normas que serviram de fundamentação jurídica ao STJ para não ter revogado o Ac. RP”), mas apenas em parte enuncia, agora, a dimensão normativa que, ao que parece, estaria em causa (aparentemente, o “já referido argumento, ou seja, que só o caso julgado material estaria abrangido na previsão do 678°-2”). E, evidentemente, mesmo que tal enunciado pudesse ser considerado claro e perceptível, já não seria agora, na presente reclamação para a conferência, tempestivo. Todo o restante argumentário da reclamante carece de relevância, por não se referir ao fundamento da decisão reclamada para o não conhecimento do recurso. Por tudo isto, a presente reclamação tem de ser indeferida, III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se desatender a presente reclamação e confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso, bem como condenar a reclamante em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 2 de Dezembro de 2004 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos