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Processo n.º 765/04
3.ª Secção Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A fls. 255 e ss., o relator proferiu a seguinte decisão sumária:
“1. A. e mulher B., identificados nos autos, instauraram no Tribunal Judicial da Comarca de Monção acção declarativa, com processo sumário, contra C. e marido D., também ali identificados, pedindo que fosse declarada a caducidade do contrato de arrendamento em causa nos autos, por morte do primitivo arrendatário, pai da ré, ou, subsidiariamente, para o caso de se entender existir o direito à transmissão do arrendamento, que os réus fossem condenados a reconhecerem a recusa legítima dos autores em aceitarem essa transmissão e a entregarem o prédio, recebendo em contrapartida, a indemnização devida, ou, ainda, que fosse julgado procedente o pedido de denúncia do contrato de arrendamento com fundamento na necessidade do locado para habitação dos autores. Realizada a audiência de discussão e julgamento veio a ser proferida sentença, em 5 de Agosto de 2003, que julgou a acção procedente e declarou a caducidade do contrato de arrendamento em causa, condenando os réus a entregarem o prédio aos autores.
2. Inconformados com esta decisão interpuseram os réus recurso de apelação, pedindo a anulação da decisão para ampliação da matéria de facto ou a sua revogação, concluindo do seguinte modo as alegações apresentadas:
“A - O Tribunal 'a quo' deu como provada a matéria de facto que não pode conduzir à excepção prevista no Art.º 86º, do RAU, mas, sim, no sentido de que teria que improceder, na sua totalidade, o pedido dos AA./Recorridos, por se verificar o disposto na al. b), do n° 1, do Art.º 85º do RAU. B - Não foi alegada, nem se provou que a casa arrendada, onde tiveram residência, os apelantes, satisfazia as respectivas necessidades habitacionais imediatas, de que fala o insigne conselheiro, actual Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. C - Para proceder 'in casu' tal interpretação, teria que ser ampliada a matéria de facto, para prova de tais requisitos; pois, sem tal, não procederia a excepção do Art.º 86º do RAU. D - A sentença recorrida, além de resultar de uma interpretação extensiva da lei, é contrária à prova produzida: decretando um despejo, e pondo em causa um direito fundamental consignado em Constituição, no seu Art.º 65º.
E- A sentença de que se recorre violou o disposto no Art.º 85º, n° 1, al. b), do RAU, Art.º 668º, n° 1, al. b), do C.P.C., Art.º 9° do C.C. e Art.º 65º, n° 1, da Constituição da República Portuguesa.”
3. O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 24 de Março de 2004, julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida. Notificados deste aresto os recorrentes requereram a sua aclaração e reforma invocando que o mesmo padecia de “ambiguidades”, bem como de “lapso na qualificação jurídica dos factos e determinação da norma aplicável”, o que veio a ser indeferido por acórdão de 26 de Maio de 2004.
4. Através do requerimento de fls. 246, vieram os recorrentes C. e marido D. interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do nº1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo “ver apreciada a inconstitucionalidade da norma com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida e a ilegalidade conducente a tal interpretação”, acrescentando que a questão de inconstitucionalidade foi suscitada nos autos nas alegações de recurso e no requerimento de reforma do acórdão.
5. Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu o recurso (cfr. n.º3 do artigo 76.º da Lei n.º 28/82), entende-se não poder conhecer do objecto do recurso, sendo caso de proferir decisão sumária, nos termos dos n.º 1 do artigo 78.º-A do mesmo diploma, como se passa a fundamentar sumariamente.
6. Apesar das deficiências do requerimento de interposição de recurso, nomeadamente por falta de indicação da norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada e dos preceitos constitucionais que se considera terem sido violados, é inútil convidar os recorrentes a completá-lo (artigo 75.º-A, n.ºs 5 e 6 da LTC), porque o recurso nunca poderia prosseguir, fosse qual fosse a resposta. Com efeito, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.ºda LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Não cabe tal recurso, como o Tribunal tem repetida e pacificamente afirmado, quando a violação de normas ou princípios constitucionais seja dirigida à decisão judicial, em si mesmo considerada e não uma norma (na sua totalidade, em dado segmento, ou em certa interpretação mediatizada pela decisão recorrida). O nosso sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade não é do tipo do recurso de amparo espanhol ou da queixa constitucional alemã. Ora, os recorrentes não suscitaram perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida (seja ela o acórdão de 24 de Março de 2004, seja o de 26 de Maio do mesmo ano, que indeferiu o pedido de reforma do primeiro, ou ambos) qualquer questão de constitucionalidade normativa. No que respeita à contrariedade com a Lei Fundamental, limitaram-se a censurar a decisão recorrida, por violação do artigo 65.º, n.º1, da Constituição, como resulta inequivocamente das conclusões
“D” e “E” das alegações do recurso de apelação acima transcritas. Nestes termos, e nada mais havendo nos autos que, nesta vertente, possa aproveitar aos recorrentes, impõe-se a conclusão de que não foi suscitada, e muito menos de modo processualmente adequado, qualquer questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida (artigo 72.º, n.º 2 da LTC), o que legitima que se profira decisão sumária, nos termos do artigo 78.º-A da LTC.
7. Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso Custas a cargo dos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 8 (oito) unidades de conta.”
2. Os recorrentes reclamam para a conferência, nos seguintes termos:
“1. Salvo o devido respeito, por opinião contrária, os recorrentes suscitaram perante o Tribunal da Relação que proferiu a decisão recorrida, a questão da constitucionalidade normativa, pela aplicação do Art.º 86.º da RAU com a interpretação que, ‘in casu’, põem em causa um direito fundamental consignado no Art.º 65.ºda Constituição.
2. No recurso para o Tribunal da Relação (vide conclusões C, D, e E) os recorrentes não se limitaram a censurar a decisão recorrida, por violação do Art.º 65.º, n.º 1 da Constituição, mas alegaram que a decisão aplicou o Art.º
68.º do RAU, com uma interpretação extensiva, ilegal e totalmente inconstitucional, por ofender o disposto no n.º 1, do Art.º 65.º da Constituição.
3. Assim, estamos perante um recurso de uma decisão do Tribunal da Relação de Guimarães que aplicou norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada no recurso, por via da decisão em 1ª instância que aplica a norma com interpretação totalmente ilegal e inconstitucional, como supra ficou demonstrado.”
Os recorridos respondem que a reclamação é manifestamente infundada.
3. A reclamação é manifestamente improcedente, mantendo-se os fundamentos da decisão sumária.
Com efeito, a afirmação dos recorrentes de que suscitaram a inconstitucionalidade do artigo 86.º do RAU (no n.º 2 da reclamação referem o artigo 68.º, por lapso manifesto) e não da sentença, em si mesma, como acto concreto de julgamento, esbarra nos termos das próprias conclusões das alegações de recurso para o Tribunal da Relação que eles mesmos invocam para sustentar essa afirmação e que a decisão sumária transcreve (cf. n.º 2 da decisão sumária sob reclamação).
Acrescentar-se-á, apenas, que não se trata de deficiência na formulação dessas conclusões que possa ter traído o pensamento dos recorrentes, como se torna evidente pela transcrição da seguinte passagem do corpo das alegações, que lhes corresponde:
“(...) III. A sentença de que se recorre, viola, além do mais, normas de direito constitucional, quer na interpretação, quer pondo em causa o direito fundamental
à habitação. Assim, dispõe a Constituição da República Portuguesa, no Art.º 65.º:
‘n.º 1 - Todos têm direito, par si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que prescreve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.’ Apenas apurada, em sede de discussão da matéria de facto, que os recorrentes têm uma casa arrendada, sem se apurar sobre se tal satisfazia as necessidades habitacionais imediatas, para, tendo que abandonar a casa onde residem, possam nela instalar a sua residência, decidindo, como ficou na sentença de que se recorre, estamos perante a violação do direito à habitação, pois retira-se este direito em detrimento do mesmo direito; estando o Tribunal ‘a quo’ sujeito ao princípio da legalidade, viola também este princípio; não atendendo ao direito à habitação consagrada na Lei Fundamental. Por outro lado, a interpretação feita pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal ‘a quo’, e que determinou a decisão recorrida, põe em causa o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da força conformadora da Lei Fundamental, ao arrepio do disposto no Art.º 9.º do Código Civil. As limitações, pela lei, de direitos constitucionalmente consagrados têm de ser expressas, não sendo possíveis através de interpretação extensiva ou restritiva da lei.”
Não há aqui imputação de inconstitucionalidade à norma do artigo
86.º do RAU, ainda que em determinada interpretação mediatizada pela sentença recorrida, a que nem sequer se faz referência.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a reclamação, confirmando a decisão de não conhecimento do objecto do recurso, e em condenar os recorrentes nas custas, fixando a taxa de justiça em vinte UC.
Lisboa, 19 de Novembro de 2004
Vítor Gomes Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Artur Maurício