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Processo n.º 956/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.º 76º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão
(LTC), do despacho da Vara Mista (2ª Secção) do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra que não lhe admitiu o recurso interposto do despacho do mesmo Tribunal que ordenou a penhora dos bens nomeados pela exequente B., na acção executiva instaurada contra o ora reclamante, alegando, em síntese, que “a interpretação dada à norma na decisão recorrida foi de todo imprevisível, não podendo contar com a sua aplicação”, pelo que não lhe era exigível que previsse que a mesma fosse adoptada pela decisão pretendida recorrer.
2 – A decisão reclamada assentou na consideração de que “a questão de inconstitucionalidade nunca foi suscitada neste tribunal a quo, apenas sendo suscitada, pela 1ª e única vez, no próprio requerimento de fls. 33 e 34”, pelo que não se mostrava satisfeito o requisito do recurso estabelecido no art.º 70º, n.º 1, al. b), da LTC.
3 – O Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação, “já que o ora reclamante não tratou de delinear qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de integrar objecto idóneo de um recurso de fiscalização concreta – limitando-se, de forma clara e inquestionável, a imputar a inconstitucionalidade pretensamente cometida à concreta decisão judicial, determinativa da penhora”.
B – Fundamentação
4 – Constitui requisito do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (doravante designada por LTC), em cuja categoria se insere o interposto pelo ora reclamante, e como decorre quer do art.º 280º, n.º 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa quer daquele mesmo preceito, quando falam da aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, mas que encontra igualmente tradução no n.º 2 do art.º 75º-A da LTC, que a questão de inconstitucionalidade da norma efectivamente aplicada como ratio decidendi da decisão recorrida tenha sido suscitada durante o processo. O sentido deste conceito tem sido esclarecido, por várias vezes, por este Tribunal Constitucional. Assim, por exemplo, no Acórdão n.º 352/94, publicado no Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, disse-se que esse requisito deve ser entendido “não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas
“num sentido funcional”, de tal modo que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”. Por seu lado, afirma-se, igualmente, no Acórdão n.º 560/94, publicado no Diário da República II Série, de 10 de Janeiro de 1995, que «a exigência de um cabal cumprimento do ónus de suscitação atempada - e processualmente adequada - da questão de constitucionalidade não é [...] “uma mera questão de forma secundária”. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame da questão (e não a um primeiro julgamento de tal questão». Neste domínio há que acentuar que, nos processos de fiscalização concreta, a intervenção do Tribunal Constitucional se limita ao reexame ou reapreciação da questão de (in)constitucionalidade que o tribunal a quo apreciou ou devesse ter apreciado. Ainda na mesma linha de pensamento podem ver-se, entre outros, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II Série, de 20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o Acórdão n.º
192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de 2000 - sobre o sentido de um tal requisito, cfr. José Manuel Cardoso da Costa, « A jurisdição constitucional em Portugal», separata dos Estudos em Homenagem ao Prof. Afonso Queiró, 2ª edição, Coimbra, 1992, pp. 51). Mas tal doutrina sofre restrições, como se salientou naquele Acórdão n.º 354/94. Acontece isso nas situações excepcionais ou anómalas, nas quais o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes proferida ou não era exigível que o fizesse, designadamente por o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação de todo insólita e imprevisível. Usando os termos do recente Acórdão n.º 192/2000, dir-se-á, ainda, que “quem pretenda recorrer para o Tribunal Constitucional com fundamento na aplicação de uma norma que reputa inconstitucional tem, porém, a oportunidade de suscitar a questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferido o acórdão da conferência de que recorre...”. E é claro que não poderá deixar de entender-se que o recorrente tem essa oportunidade quando a apreensão do sentido com que a norma é aplicada numa decisão posteriormente proferida poderá/deverá ser perscrutado no(s) articulado(s) processual(ais) funcionalmente previsto(s) para discretear juridicamente sobre as questões cuja resolução essa decisão tem de ditar, por antecedentemente colocadas, e em que aquele sentido, cuja constitucionalidade se poderá questionar, se apresenta como sendo um dos plausíveis a ser aplicados pelo juiz. Ao encararem ou equacionarem na defesa das suas posições a aplicação das normas, as partes não estão dispensadas de entrar em linha de conta com o facto de estas poderem ser entendidas segundo sentidos divergentes e de os considerar na defesa das suas posições, aí prevenindo a possibilidade da (in)validade da norma em face da lei fundamental. Digamos que as partes têm um dever de prudência técnica na antevisão do direito plausível de ser aplicado e, nessa perspectiva, quanto à sua conformidade constitucional. O dever de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo e pela forma adequada enquadra-se dentro destes parâmetros acabados de definir.
5 – A situação delineada nos autos integra-se exactamente naquela excepção em que o recorrente se deve considerar dispensado do ónus de suscitação da questão de inconstitucionalidade por não ter disposto de oportunidade para tal. Senão vejamos o quadro processual em que o despacho pretendido recorrer foi proferido. O ora reclamante foi citado, na referida acção executiva movida contra si, para no prazo de 20 dias pagar ao exequente, deduzir oposição à execução ou nomear bens à penhora. Não tendo tomado qualquer destas posições, veio a exequente proceder à nomeação à penhora dos bens que fossem encontrados no domicílio profissional do executado, como computadores, centrais telefónicas, mesas, veículos automóveis e outros de valor suficiente para o pagamento da dívida exequenda. Pelo despacho pretendido recorrer, o Tribunal a quo ordenou a penhora desses bens, nos termos seguintes : “Ordeno a penhora a efectuar no dia
15/07/03, pelas 11,30 horas. Dil. nec. (cumprindo-se o artigo 69º, n.º 2, do E. O. Advogados)”. O reclamante não foi ouvido sobre o requerimento de nomeação de bens à penhora.
Como é bom de prever, num quadro processual destes, o reclamante não disfrutou da oportunidade de poder antecipar a questão de inconstitucionalidade de qualquer norma aplicável à penhora dos bens cuja nomeação à penhora fora feita pela exequente.
Sendo assim, o despacho reclamado não poderia ser mantido com base nos fundamentos em que se abonou.
6 – Acontece, todavia, que o recurso não poderá ser admitido por outras razões, razões essas que podem, desde já, ser conhecidas pelo Tribunal Constitucional em face do disposto no n.º 3 do art.º 76º da LTC e porque a sua vinculação ao pedido não importa a sua vinculação aos fundamentos jurídicos aduzidos pela decisão pretendida recorrer.
Segundo a jurisprudência constante e uniforme deste Tribunal, expendida a propósito do disposto das mesmas disposições dos art.ºs 280º, nº 1, al. b), da CRP, e do art.º 70º, n.º 1, al. b), da LTC, só podem constituir objecto do recurso constitucional de fiscalização concreta normas jurídicas que tenham constituído ratio decidendi da decisão (cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96, publicado no DR, II Série, de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra,
1998, p. 821). O recurso de consitucionalidade tal como foi gizado pelo legislador constitucional – com natureza instrumental e relativamente a normas jurídicas - tem em vista o controlo da conformidade com a Constituição (as normas e princípios constitucionais) das normas jurídicas que tenham sido convocadas como suporte normativo da concreta decisão proferida. Sendo assim estão arredados do objecto do recurso os outros actos admitidos na ordem jurídica, embora estes façam aplicação directa das normas e princípios constitucionais, como acontece com as decisões judiciais (sentenças e despachos), os actos administrativos e os actos políticos. Deste modo, não pode no recurso de constitucionalidade sindicar-se a correcção jurídica da sentença, no que concerne à aplicação que a mesma faça directamente das normas de direito infraconstitucional e/ou das normas e princípios constitucionais. A violação directa das normas e princípios constitucionais pela decisão judicial, atenta a circunstância de não vigorar entre nós o meio constitucional do recurso de amparo, apenas pode ser conhecida no plano dos recursos de instância previstos na respectiva ordem de tribunais. Não obstante o recurso de constitucionalidade respeitar a uma decisão judicial e a decisão naquele proferida no sentido da inconstitucionalidade ou da constitucionalidade da(s) norma(s) jurídica(s) nele sindicadas poder afectar a manutenção da decisão, na medida em que um juízo nele tirado sobre a questão de constitucionalidade em sentido desconforme com o efectuado na decisão proferida pelo tribunal recorrido obrigará à reforma desta, o objecto do recurso é tão só a norma jurídica que constitua a ratio decidendi da decisão. Nesse recurso apenas cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre se a norma jurídica concretamente aplicada é ou não constitucionalmente válida.
7 – Ora, no caso em apreço, verifica-se que o reclamante imputa a inconstitucionalidade – e pretende a apreciação da mesma – não a qualquer norma jurídica que haja sido aplicada pelo despacho pretendido recorrer, mas ao despacho judicial em si mesmo, como decorre, “de forma clara e inquestionável”
(usando as palavras do Ministério Público), do requerimento em que interpôs o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, não admitido, e que constituiu o primeiro momento em que pôde suscitar a questão de inconstitucionalidade.
Na verdade, diz ele, aí, o seguinte:
«A. - Não se conformando com o despacho proferido que ordenou a penhora a concretizar no próximo dia 15 de Julho de 2003, vem dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional por o mesmo se encontrar ferido de inconstitucionalidade, o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
1 - O senhor Juiz a quo ordenou a penhora dos bens constantes de fls. 26 dos autos, para consumação já a dia 15/07/03.
2 - Fê-lo, rigorosamente, nos termos do despacho de fls. 27, após conclusão de 9 de Julho de 2003 (!)
3 - Ora, tal despacho violou, de forma grosseira, o artigo 208° Constituição da República Portuguesa.
4 - Senão vejamos, comina o artigo 208° da C.R.P. o seguinte: 'A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça'.
5 - Este é, de facto, um direito consagrado na C.R. P. após a Revisão Constitucional de 1997.
6 - O seu texto e conteúdo são claros e inequívocos - a lei portuguesa, em vigor, garante aos advogados que sejam absolutamente imunes a tudo aquilo que possa obviar, impedir, obstaculizar ao cumprimento e prossecução do seu mandato.
7- Mas mais ainda ...
A C.R.P. reconhece o mandato forense como sendo um factor essencial à administração da justiça.
8 - Ora, consumando-se, eventualmente, a penhora pretendida o mandato do ora requerente - advogado em causa própria - fica irremediavelmente comprometido.
9 - Melhor dizendo, no caso de se concretizar a penhora tão urgente e pressurosamente ordenada, o mandato do requerente fica gravemente abalado e mesmo irremediavelmente comprometido.
10- Como aliás é óbvio ...
11 - Na verdade, em caso de penhora dos bens enunciados e com a brevidade designada - dois dias úteis - a possibilidade de defesa do requerente - no caso vertente - sai grave e inexoravelmente comprometida.
12 - A suceder, violar-se-ia de forma grosseira o normativo constitucional mobilizado - o 208º da C.R.P.
13 - Realce-se que outras formas processuais existem que permitam de forma mais serena e justa garantir as pretensões da exequente. No caso de estas se esgotarem, se dissiparem ou não existirem é que a questão se colocaria de uma maneira mais drástica. Mas até lá, a 'sanha' penhoratícia da exequente apenas se limita a pressionar de forma ínvia e psicológica a cobrança de créditos; existam eles ou não.
14 - O carácter imperativo da sujeição da lei à Constituição decorre de forma inequívoca do teor do artigo 204° da C.R.P.
15 - Em face da violência e da intempestividade desta decisão tão inconstitucional como injustificada –
16 - não resta senão ao requerente invocar a sua grosseira inconstitucionalidade;
nos termos e de acordo com o disposto nos artigos 277º e ss. da C.R.P. e 6° da Lei do Tribunal Constitucional.
17 - O ora recorrente vem por ora interpor recurso de inconstitucionalidade do despacho proferido a quo e identificado supra, de acordo com o disposto no artigo 70º nº 1 b) da L.T.C.; e em consonância com o teor dos artigos 71º e ss. do mesmo diploma legal.
18 - Cumpridas que estão todas as exigências processuais exigidas por via do cominado no artigo 75°-A da L.T.C. - mormente o que concerne ao disposto nas suas alíneas 1, 2 bem como à indicação da peça processual em que se invoca a questão da inconstitucionalidade - que é a presente (peça processual) –
19 - deve o presente recurso de inconstitucionalidade ser julgado interposto, por oportuno e tempestivo e deve, em consequência, subir ao TRIBUNAL CONSTITUCIONAL com efeito suspensivo, imediatamente e nos próprios autos.
20 - ASSIM SENDO E EM FACE DO EFEITO SUSPENSIVO DO RECURSO, DEVE EM CONSEQUÊNCIA SER JULGADA SEM EFEITO A DILIGÊNCIA PARA PENHORA ORDENADA; COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS DECORRENTES.
EM SUMA - O DESPACHO PROFERIDO A QUO É INCONSTTUCIONAL
VIOLA O TEOR DO ARTIGO 208° DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
A INCONSTITUCIONALIADE QUE A PRESENTE PEÇA PROCESSUAL INVOCA, ESTÁ CONFORME COM O TEOR DO ARTIGO 70° nº 1 b) DA L.T.C. (e seguintes).
O PRESENTE RECURSO É OPORTUNO, TEMPESTIVO E SOBE COM EFEITO SUSPENSIVO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL; com todas as consequências decorrentes.».
Como se disse, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade apenas pode ter por objecto normas jurídicas e não decisões judiciais que porventura façam aplicação directa de disposições ou princípios constitucionais.
Assim sendo, o recurso não poderá ser admitido. Consequentemente, a reclamação improcede, se bem que por fundamentação diferente.
C – Decisão
8 – Destarte, atento tudo o exposto, decide o Tribunal Constitucional indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 UC.
Lisboa, 30 de Novembro de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos