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Processo n.º 946/04
1.ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., advogado e professor do ensino secundário público, identificado nos autos, deduziu reclamação do despacho do Conselheiro Relator que, no Supremo Tribunal Administrativo, não admitiu o recurso que pretendia interpor para o Tribunal Constitucional.
2. Resulta dos autos que:
2.1. Em Junho de 2002, o ora reclamante, A., interpôs, junto do Tribunal Central Administrativo, recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário de Estado da Administração Educativa que indeferiu o recurso hierárquico necessário do despacho do Presidente do Conselho Executivo da Escola Secundária de -------------, que lhe não justificou as faltas ao serviço quando se encontrava presente em audiências de julgamento, realizadas na comarca de Vila Franca de Xira, em momento coincidente com o horário das aulas que lhe estavam distribuídas naquele estabelecimento de ensino.
Invocou então “vício de forma por falta de fundamentação” do acto impugnado (cfr. petição constante de fls. 2 e seguintes do processo principal).
Nas alegações que produziu (fls. 35 e seguintes), A. sustentou, entre o mais, que:
“[...]
2ª - O Despacho nega o direito a acumular as funções de docente com as funções liberais.
3ª - Na sua fundamentação o Despacho, ainda que de forma pouco clara, põe em causa anterior autorização para acumulação de funções concedida ao recorrente.
4ª - O Despacho re-analisa as condições de acumulação constituindo, na prática, uma modificação da autorização para acumular funções;
5ª - Para tanto, invoca a violação pelo recorrente de um princípio geral do regime geral mas que não identifica.
6ª - Invoca igualmente a existência de um prejuízo para as actividades docentes, como resultado de estas estarem acumuladas com funções liberais, mas não pormenoriza as circunstâncias em que o mesmo ocorreu.
7ª - Foram violados os Princípios da Participação e da Boa Fé,
[...]
9ª - A interpretação do artigo 63° do Decreto-Lei n.º 100/99, de 31 de Março, no sentido restritivo, vago e incongruente, viola os Princípios da Igualdade e da Proporcionalidade e os Princípios da Justiça e da Imparcialidade.
10ª - O Despacho de 25 de Março de 2002, do Senhor Secretário de Estado da Administração Educativa, carece de fundamentação clara, suficiente e congruente, pelo que foi violado o n.º 3 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa e as alíneas a), b), c), d) e e) do n.º 1 do artigo 124° do Código do Procedimento Administrativo.
11ª - Deve ser anulado o Despacho de que ora se recorre por o mesmo estar ferido de vício de forma por falta de fundamentação.
2.2. Por acórdão de 8 de Janeiro de 2004, o Tribunal Central Administrativo decidiu negar provimento ao recurso contencioso de anulação (fls. 45 e seguintes).
Lê-se nesse acórdão, a propósito da delimitação do âmbito do recurso:
“[...] Atenta a posição assumida na petição inicial e nas alegações, impõe-se antes de tudo delimitar a verdadeira causa de pedir do recurso contencioso. A ilegalidade inicialmente invocada foi o vício de forma, por falta de fundamentação. Todavia, nas alegações finais, a esse vício o recorrente acrescentou a violação dos princípios da participação, boa fé, igualdade, proporcionalidade, justiça e imparcialidade. Apesar de haver razões substanciais para a improcedência de tais ilegalidades, desde a falta de concretização suficiente até à natureza vinculada do acto, os mesmos não podem ser apreciados nesta decisão pelo facto de o recorrente não ter o direito de os invocar.
[...].”.
2.3. Interposto novo recurso, o Supremo Tribunal Administrativo negou-lhe provimento, por acórdão proferido em 1 de Julho de 2004 (fls. 92 e seguintes).
Relativamente à delimitação do âmbito do recurso constante do acórdão do Tribunal Central Administrativo, disse o Supremo Tribunal Administrativo:
“[...] A invocação, tardia, de novos vícios, nomeadamente a violação dos princípios da Participação, da Boa Fé, da Igualdade, da Proporcionalidade, da Justiça e da Imparcialidade não se fundou no conhecimento posterior à interposição do recurso contencioso de quaisquer factos novos que os pudessem sustentar, de modo que o tribunal recorrido, tal como decidiu, estava impedido de os apreciar. Com efeito, «É na petição de recurso que devem ser suscitados os vícios que afectem o acto administrativo impugnado no recurso contencioso. Novos vícios geradores de anulabilidade só podem ser invocados posteriormente se os factos que os integrarem forem de conhecimento superveniente» (acórdão STA de 4.7.02, no recurso 48133). Haverá, assim, de concluir-se que o acórdão recorrido, ao apreciar apenas o vício de forma por falta de fundamentação, o único que foi alegado na petição de recurso, não só não cometeu qualquer ilegalidade como também não incorreu em nulidade por omissão de pronúncia.
[...].”.
Quanto à questão da suficiência ou insuficiência da fundamentação contida no acto impugnado, decidiu o Supremo Tribunal Administrativo, depois de transcrever a parte relevante do acórdão então recorrido:
“[...] De forma sucinta, mas bem explícita, estão aqui referenciadas todas as razões que levaram a autoridade recorrida a indeferir o recurso hierárquico e manter a decisão que injustificou as faltas: por um lado, a Portaria n.º 652/99 não permite autorização de exercício de advocacia em horários incompatíveis com o serviço docente e, por outro, o artigo 63° do Decreto-Lei n.° 100/99 não é de aplicar porque as obrigações legais aí previstas são as exigidas enquanto cidadão e não enquanto funcionário. Há, assim, clareza, congruência e suficiência: as expressões e argumentos utilizados são inteligíveis; o indeferimento do recurso é uma consequência lógica dos pressupostos declarados nessa informação; e a informação contém elementos bastantes, com capacidade e aptidão para servirem de base àquela decisão. Trata-se, pois, de uma fundamentação que cumpre todos os requisitos do artigo 125° do CPA e que, desse modo, possibilita o «esclarecimento concreto» de um destinatário normal ou razoável das razões que levaram a autoridade recorrida a indeferir o recurso hierárquico e a manter a injustificação das faltas. Outra coisa, bem diferente, como acima referimos, é a veracidade e correcção dos pressupostos e motivos que sustentam o acto, questão substancial que respeita já ao conteúdo do acto e não ao seu aspecto formal, mas que não foi arvorada nos presentes autos. Este conjunto de considerações são inatacáveis tanto no plano conceptual como no plano jurídico, aqui se reiterando sem reticências. Fica, assim, patente que o recorrente ficou a saber o que se decidiu (a injustificação de faltas) e por que se decidiu assim (por um lado, a Portaria n.° 652/99 não permite autorização de exercício de advocacia em horários incompatíveis com o serviço docente e, por outro, o artigo 63° do Decreto-Lei n.° 100/99 não é de aplicar porque as obrigações legais aí previstas são as exigidas enquanto cidadão e não enquanto funcionário). É certo que o recorrente não aceita essa solução só que essa não aceitação nada tem a ver com falta ou insuficiente fundamentação ou com quaisquer aspectos exteriores do acto, com vício de forma, antes contendendo com aspectos internos, com a sua própria legalidade. A fundamentação, como se viu, visa dar a conhecer aos destinatários do acto o que se decidiu e por que se decidiu, mas já não visa convencê-los da bondade ou da verdade do que se decidiu. Alguma irregularidade a esse nível tem que ser vista no âmbito de outros vícios. Por outras palavras, uma coisa é ter compreendido inteiramente o teor do acto e as razões que o suportam, aspectos que contendem com a fundamentação, outra, bem distinta, é aceitá-las, o que já poderá ter a ver com outro tipo de ilegalidade. Improcedem, assim, todas as conclusões da alegação do recorrente.
[...].”.
2.4. Notificado do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, A. pretendeu interpor recurso para o Tribunal Constitucional, através do requerimento de fls.
107, nos seguintes termos:
“[...] vem interpor recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea f) do n.°1 do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional, tendo em vista a apreciação da interpretação da Portaria n.° 652/99, de 14 de Agosto, maxime o n.º 3 da mesma, consagrada no douto Acórdão ora recorrido, a fls. 100 e 101, por violação do artigo 111º do Decreto-Lei n.º 1/98, de 2 de Janeiro, e da alínea i) do n.º 1 do artigo 69º do Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de Março, do n.º 2 do artigo 205° da Constituição da República Portuguesa e ainda do artigo 3° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Foi, pelo ora recorrente, suscitada a questão da inconstitucionalidade a fls. 72 a 78 das alegações em recurso ordinário dos presentes autos, maxime a fls. 75,
76 e 78”.
2.5. O Conselheiro Relator decidiu não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional (despacho de 28 de Setembro de 2004, a fls. 110 e seguinte), com os seguintes fundamentos:
“[...]
[...] o recorrente vem imputar ao acórdão recorrido ilegalidades por violação da Constituição, por nele se terem feito interpretações violadoras da Lei Fundamental de diversas normas de alguns diplomas legais. Todavia, a simples leitura do acórdão mostra à evidência que ali apenas se aprecia o vício de forma por falta de fundamentação – o que, de resto, já ocorrera no acórdão do TCA – explicando-se, igualmente, as razões por que se entendia que tal acórdão não incorria na nulidade por omissão de pronúncia que lhe vinha atribuída. As referências feitas, no acórdão recorrido, a preceitos e diplomas legais, a págs.
100/101, estão contidas numa transcrição do acórdão do TCA e, mesmo na origem, não visavam interpretar, nem interpretaram, nenhum dos preceitos aí referidos, mas apenas demonstrar a fundamentação do acto pela indicação das razões de facto e de direito que o suportam. O acórdão recorrido só conheceu do vício de forma decidido no acórdão do TCA – e quanto a essa matéria nenhuma inconstitucionalidade é apontada – de modo que não apreciou nenhum dos preceitos ou princípios jurídicos referidos pelo recorrente. De resto, também lhe não foi imputada nenhuma nulidade por omissão de pronúncia. Ora, os recursos para o Tribunal Constitucional, quando não sejam puramente dilatórios, têm que se fundar ou na recusa em aplicar normas com fundamento na sua inconstitucionalidade ou na aplicação de preceitos que violem a CRP. O recorrente invoca como fundamento do seu recurso a alínea f) do n.° 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, segundo a qual cabe recurso para o TC das decisões que «Apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c) d) e e)». Como se não aplicou nenhuma das normas e princípios referidos pelo recorrente o recurso para o Tribunal Constitucional não é admissível. Assim, nos termos do art. 76º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 28/82, de 15.11 (Lei do TC) não admito o recurso.”.
2.6. Notificado deste despacho, A. veio, ao abrigo do disposto no artigo
76º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional, deduzir reclamação do despacho de não admissão do recurso para o Tribunal Constitucional, através de requerimento em que disse, entre o mais (fls. 2 e seguintes dos presentes autos de reclamação):
“[...]
1 - Do doutíssimo despacho do Excelentíssimo Conselheiro-Relator extrai-se que o Acórdão recorrido – a fls. 92 a 102 – não aplicou norma que, pese embora suscitada a respectiva inconstitucionalidade no decurso do processo, viole a Constituição. O ora reclamante/recorrente interpôs recurso tendo em vista a interpretação do n.º 3 da Portaria n.º 652/99, de 14 de Agosto, a qual consta desde logo do despacho de Sua Exa. o Senhor Secretário de Estado da Administração Educativa, de 25 de Março de 2002. Transcreve-se, com a devida vénia o passo seguinte do referido despacho: «Em bom rigor, o exercício da advocacia em regime público integrado na figura da Assistência Judiciária não se compagina com a existência de um horário de trabalho. Porém, em nossa opinião o que o legislador consagrou foi a impossibilidade do exercício de uma actividade cumulativa que coincida, ainda que parcial ou esporadicamente, com a actividade de docência».
É esta interpretação feita ao n.° 3 da Portaria n.º 652/99, de 14 de Agosto, que veio a ser transcrita quer para o Acórdão do Tribunal Central Administrativo quer para o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo e que sustenta as respectivas decisões, pese embora com o fundamento em clareza, suficiência e congruência da decisão.
2 - Salvo melhor entendimento, e no respeito pelas pertinentes considerações constantes do despacho de que ora se reclama, parece ao ora reclamante que [...] não se coloca diante de Vossas Excelências qualquer expediente dilatório ao solicitar a apreciação da conformidade com a Constituição da interpretação dada nos referidos termos à norma em questão. Por outro lado, e sempre salvo diferente entendimento, as referências feitas, por transcrição, ao n.° 3 da Portaria n.º 652/99, de 14 de Agosto, e constantes do Acórdão de que se pretende recorrer, são aquelas que, tal como supra transcritas, consistem na aplicação da norma mas nos termos interpretados e evidenciados e com os quais se não discorda, por isso se solicitando a apreciação da respectiva constitucionalidade. Colendos Conselheiros Na expectativa de não ter criado a ideia de tão-só propor a Vossas Excelências uma tarefa dilatória mas sim a ideia de ser idónea e pertinente a análise da interpretação dada à norma constante do n.° 3 da Portaria n.° 652/99, de 14 de Agosto, e, assim, admitindo a presente reclamação, farão Vossas Excelências Justiça!”
3. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer (fls.
7 v.º), nos seguintes termos:
“A presente reclamação carece ostensivamente de fundamento, já que se não mostra suscitada qualquer questão de ilegalidade «qualificada», susceptível de apreciação por este Tribunal Constitucional, no âmbito do recurso interposto, com base na al. f) do n.º 1 do art. 70º da Lei n.º 28/82.”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. O ora reclamante pretendia interpor recurso para este Tribunal, ao abrigo do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 1 de Julho de
2004, que negou provimento ao recurso da decisão proferida pelo Tribunal Central Administrativo, em 8 de Janeiro de 2004.
O Conselheiro Relator no Supremo Tribunal Administrativo não admitiu o recurso por entender que não estavam verificados no caso os pressupostos processuais exigidos pela disposição invocada pelo então recorrente, designadamente por a decisão de que se pretendia recorrer não ter aplicado
“nenhuma das normas e princípios referidos pelo recorrente” (supra, 2.5.).
5. Não merece censura o despacho reclamado.
O recurso previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional é o recurso que cabe “das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e)”.
Ora, é manifesto que o aqui reclamante não suscitou perante o Supremo Tribunal Administrativo qualquer questão de ilegalidade “qualificada” susceptível de ser submetida à apreciação do Tribunal Constitucional no âmbito do recurso de fiscalização concreta previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC.
No processo que deu origem ao presente recurso não foi suscitada a ilegalidade de qualquer norma com um dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) ou e) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82.
Ou, dito de outro modo, não foi aplicada nos autos norma constante de acto legislativo cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com fundamento na violação de lei com valor reforçado (alínea c)); não foi aplicada norma constante de diploma regional cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com fundamento na violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República (alínea d)); nem foi aplicada norma emanada de um órgão de soberania cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com fundamento na violação do estatuto de uma região autónoma (alínea e)).
6. Não estando verificados, no caso em apreço, os pressupostos processuais estabelecidos na alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 – a alínea invocada como fundamento do recurso pelo ora reclamante – não é admissível o recurso interposto.
Tanto basta para concluir que a reclamação tem de ser indeferida.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 23 de Novembro de 2004
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos