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Processo n.º 775/03
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – IEP-INSTITUTO DAS ESTRADAS DE PORTUGAL, A. e marido B. e C. e mulher D. recorreram para o Tribunal Judicial de Braga da decisão arbitral que, por unanimidade, fixou em € 33. 112,07 o valor da indemnização devida pela expropriação por utilidade pública, para construção da obra A---IP--
[----------, A---IP--, sub-lanço -----(----)], de uma parcela de terreno designada por parcela n.º ---, a destacar do prédio misto, sito no lugar de
--------, freguesia de --------, concelho de ------, inscrito na matriz urbana sob o artigo ---- e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º
00-----.
2 – Por sentença de 30 de Maio de 2003, aquele Tribunal revogou a decisão arbitral recorrida e condenou o Instituto das Estradas de Portugal a pagar aos expropriados a indemnização de € 36.127,25, acrescida do valor que resultar da aplicação do índice de preços ao consumidor, com exclusão da habitação, de 4,4%-96,58 (2001), 3,6%-100,00 (2002), 3,6% (Jan. 2003), 3,7%
(Fev. 2003) e 3,7% (Março, 2003), sem prejuízo de outros que, de abrangência anual ou mensal, até integral pagamento, venham a ser conhecidos, sobre o montante de € 36.127,25, a partir da publicação da declaração de utilidade pública até 12.07.2002 e sobre o montante de € 23 907,37, a partir de 13.07.
2002 até ao trânsito em julgado da sentença.
3 – Arguida a nulidade desta sentença por omissão de pronúncia sobre a questão de inconstitucionalidade do art.º 23º, n.º 4 do Código das Expropriações, que havia sido suscitada pelos expropriados, foi ela suprida por decisão de 2 de Julho de 2002, tendo-se aqui concluído pela não aplicação de tal preceito em virtude de estar ferido de inconstitucionalidade, mantendo-se o montante de indemnização anteriormente fixado, com base na seguinte argumentação:
«Dispõe o art. 23°/4 da Lei 168/99 de 18/09 que 'ao montante indemnizatório, determinado de acordo com os critérios previsto no C.E. deverá ser deduzido o valor correspondente à diferença entre as quantias efectivamente pagas a título de contribuição autárquica e aquelas que o expropriado teria pago com base na avaliação efectuada para efeitos de expropriação nos últimos cinco anos.' Sobre o âmbito de aplicação da citada norma, Alves Correia defende que a norma
'só poderá aplicar-se ás expropriações cuja entidade beneficiária seja um município e que tenham como objecto prédios localizados na respectiva circunscrição territorial.' Entende que sendo a contribuição autárquica um imposto de natureza local, no sentido de que constitui uma receita municipal que incide sobre o valor patrimonial dos prédios rústicos e urbano, não faria sentido que o Estado, um instituto público ou empresa privada, enquanto beneficiários de uma expropriação, deduzissem na indemnização a pagar ao expropriado a diferença apontada (Revista Legislação e Jurisprudência Ano 133, 2000-2001, pág. 116). Alípio Guedes no seu estudo 'Valorização dos Bens Expropriados', pág. 79 e Pedro Elias da Costa em 'Guia das Expropriações por Utilidade Pública', pág. 257 não estabelecem qualquer distinção no âmbito de aplicação do preceito. Pedro Elias da Costa refere, aliás: 'nem sequer se pode afirmar que é um pagamento retroactivo da contribuição autárquica, dado que o montante deduzido não será entregue à entidade que legitimamente tem o direito de arrecadar o imposto (autarquia), beneficiando, pelo contrário, única e exclusivamente a entidade expropriante que, pode até nem estar integrada na Administração estadual.' (ob. cit., pág. 257). Entendemos, com efeito, que na aplicação do preceito não cumpre proceder a qualquer distinção, pois o legislador não o fez e atenta a inserção sistemática do preceito, norma que determina os princípios orientadores para obter a justa indemnização, entendemos que tem aplicação sem distinção da natureza ou qualidade da entidade expropriante, responsável pela promoção do processo de expropriação. Por outro lado, entendemos que ao deduzir tal valor o mesmo deve ser remetido ao município respectivo. Desta forma, a previsão da norma abrange a indemnização atribuída aos expropriados em expropriação promovida pelo I.E.P.. Contudo, não se aplica o preceito em causa, por se considerar inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da igualdade e da justa indemnização, bem como do princípio da não retroactividade em matéria fiscal, consagrados nos art. 13°, 62°, 103°/3 CRP. A Constituição prevê no art. 62°/2 que a expropriação só pode ser efectuada mediante o pagamento da justa indemnização. A justa indemnização corresponde ao valor real e corrente de mercado. Ao efectuar-se a dedução apontada não se atribui a justa indemnização, porque o valor da indemnização não corresponde ao valor real e corrente de mercado. Acresce o facto dos expropriados ficarem numa situação de desigualdade injustificada perante os encargos públicos, em confronto com os proprietários de prédios urbanos ou rústicos que não suportaram qualquer expropriação. O art. 103°/3 da CRP dispõe que ' ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei.' O art. 23°/4 tem subjacente a actualização retroactiva da matéria colectável da contribuição autárquica e a liquidação e cobrança retroactivas do acréscimo do mesmo imposto, no período correspondente aos cinco anos anteriores à data da declaração de utilidade pública. Nessa medida é inconstitucional. Por outro lado, como emanação do princípio da igualdade, previsto no art. 13° da CRP, consagra-se, em sede fiscal, o princípio da igualdade fiscal em sentido material ou substancial. O significado deste princípio é o de que a lei deve garantir que todos os cidadãos com igual nível de rendimentos ou de património suportem idêntica carga tributária, contribuindo, assim, em igual medida, para as despesas ou encargos públicos. Como refere Alves Correia: 'O princípio da igualdade fiscal em sentido material não apenas veda ao legislador a adopção de desigualdades de tratamento, no
âmbito fiscal, que não sejam autorizadas pela Constituição ou que sejam materialmente infundadas, desprovidas de fundamento razoável ou arbitrárias, como impõe que a lei garanta que todos os cidadãos com igual capacidade contributiva estejam sujeitos à mesma carga tributária, contribuindo, assim, em igual medida, para as despesas ou encargos públicos' (ob supra citada, pág. 118
) A norma do art. 23°/4 permite que pessoas em condições iguais paguem impostos desiguais. Por esse motivo está também ferida de inconstitucionalidade. Convém referir que a respeito desta questão seguimos de perto o estudo de Alves Correia, publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 133–2000-2001, pág. 116 e não conhecemos jurisprudência sobre matéria, nomeadamente do Tribunal Constitucional. Pelo exposto, considera-se suprida a nulidade, por omissão de pronúncia e mantém-se o valor arbitrado a título de indemnização, conforme decidido na sentença de fls. 260, não se aplicando o art. 23°/4 do Código das Expropriações
– Lei 168/99 de 18/09. ».
4 – O Ministério Público interpôs, então, recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional sob invocação do disposto no art.º 280º, n.ºs 2, alínea a), e 3, da Constituição da República Portuguesa e dos art.ºs 70º, n.º 1, alínea a), 71º, n.º 1 e 72º, n.ºs 1, alínea a), e 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, para “apreciação da (in)constitucionalidade da norma do art.º 23º, n.º
4 da Lei n.º 168/99, de 18/09 (Código das Expropriações de 1999) cuja aplicação foi recusada com fundamento em inconstitucionalidade (material) por violação dos princípios constitucionais da igualdade e da justa indemnização, bem como do princípio da não retroactividade em matéria fiscal, consagrados nos artigos 13º,
62º e 103º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa”.
5 – No Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público apresentou alegações, concluindo:
«1 - A norma constante do artigo 23°, n° 4, do Código das Expropriações de 1999, ao prever a compensação entre o montante da indemnização devida ao expropriado e resultante da avaliação efectuada em tal processo e o direito da Fazenda Pública
à correcção e revisão oficiosa da liquidação da contribuição autárquica, resultante da actualização dos valores matriciais – e devida no período temporal em que não ocorreu ainda caducidade do direito à liquidação – não viola os princípios da não retroactividade da lei fiscal e da igualdade, confiança, segurança jurídica e justa indemnização.
2 - Na verdade – e face ao regime instituído nos artigos 20° e 21 ° do Código da Contribuição Autárquica – a liquidação desta com base nos valores constantes de matrizes não actualizadas reveste natureza provisória até ao momento da caducidade do direito à liquidação e revisão oficiosa, podendo ser corrigida pela Administração Fiscal sempre que uma superveniente avaliação dos bens revele um valor patrimonial superior ao que constava da matriz.
3 - E inexistindo, deste modo, qualquer expectativa minimamente fundada do contribuinte na estabilidade dos valores liquidados com base na matriz, sendo os mesmos oficiosamente revisíveis sempre que uma avaliação ulterior dos bens mostre que os valores patrimoniais não estavam actualizados.
4 - Termos em que deverá proceder o presente recurso.».
6 – Não foram apresentadas contra-alegações.
B – Fundamentação
7 – A questão que constitui objecto do presente recurso foi recentemente apreciada pelo Plenário do Tribunal Constitucional, tendo este decidido, conquanto com alguns votos de vencido, não julgar inconstitucional a norma do artigo 23º, n.º 4, do Código das Expropriações de 1999. Fê-lo no Acórdão n.º 422/2004, publicado no Diário da República II Série, de 4 de Novembro de 2004 e disponível também em www.tribunalconstitucional.pt. Considerou-se aí que a norma posta em causa não violava nem o princípio da igualdade nem o direito a justa indemnização consagrados nos art.ºs 13º e 62º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Como se diz no Acórdão n.º 625/2004, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, proferido em caso em tudo idêntico ao presente –
“visando a intervenção do Plenário a prevenção (artigo 79º-A) ou a solução
(artigo 79º-B) de divergências jurisprudenciais, compreende-se que, apesar da inexistência de preceito expresso a atribuir-lhe carácter vinculativo, a orientação que fez vencimento passe a ser seguida pelo Tribunal, enquanto não for objecto de revisão pelo próprio Plenário”.
Deste modo é de acolher a orientação seguida naquele Acórdão n.º
422/2004, considerando-se, tal como aí se ajuizou, que a norma posta em causa não viola nem o princípio da igualdade nem o direito a justa indemnização, consagrados nos artigos 13º e 62º, n.º 2, da CRP.
Verifica-se, porém, que a sentença recorrida considerou inconstitucional a mesma norma do Código das Expropriações também com base no princípio da não retroactividade em matéria fiscal consagrado no art.º 103º, n.º
3, da CRP, por “[ter] subjacente a actualização retroactiva da matéria colectável da contribuição autárquica e a liquidação e cobrança retroactivas do acréscimo do mesmo imposto, no período correspondente aos cinco anos anteriores
à data da declaração de utilidade pública”.
Mas, não obstante esta questão não haver sido explicitamente tratada de modo autónomo, é de concluir, como, aliás, se afirma no referido Acórdão
625/2004 que “o acolhimento [da] dessa orientação implica não apenas o acatamento do sentido das decisões das questões de inconstitucionalidade expressamente tratadas pelo acórdão do Plenário, mas também o respeito pela projecção que, relativamente a questões nele não explicitamente apreciadas, há que atribuir aos juízos em que se fundamentaram tais decisões, pelo menos quando constituam seu pressuposto lógico necessário” e que, sendo assim, «considerações neste [acórdão do Plenário] tecidas a propósito da não violação dos princípios da justa indemnização e da igualdade implicam necessariamente que, no entendimento da maioria, também não se verifica violação do princípio da não retroactividade fiscal, seja na perspectiva da “retroacção das avaliações”, seja tendo em conta a não coincidência formal do prazo de caducidade do direito de liquidação de tributos, que a Lei Geral Tributária encurtou de 5 para 4 anos, e do prazo de 5 anos referido no n.º 4 do artigo 23º do Código das Expropriações de 1999».
Estão nesta linha de ponderação as seguintes considerações que se fazem no Acórdão n.º 422/2004 e cujo realce é também acentuado no Acórdão n.º
625/2004:
«[...]
Com efeito, a determinação do valor dos bens expropriados que, nos termos do n.º
5 do preceito, 'deve corresponder ao valor real e corrente dos mesmos, numa situação normal de mercado', é feita de acordo com os critérios referenciais constantes dos artigos 26º e segs. do Código, tendo ainda em conta o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 23º e 24º do mesmo diploma. Em bom rigor, é, pois, através desses comandos, tomando em consideração características intrínsecas do bem expropriado, que se determina o valor da
'justa indemnização'. Já não assim no caso em apreço: o valor real e corrente do bem, num mercado não especulativo, foi já apurado e é representado pelo montante de uma parcela a que se vai abater a diferença entre o montante da contribuição autárquica que se considera devida e a que foi efectivamente paga nos últimos quatro anos. Resultando, ao menos tendencialmente, da avaliação efectuada, no âmbito do processo expropriativo, o valor patrimonial do bem e sendo este o valor tributável sobre que incide a contribuição autárquica, aquela acaba por funcionar, também, como uma avaliação “ad hoc”, para efeitos fiscais. Nesta medida, a norma assume uma natureza essencialmente tributária; o processo expropriativo e o pagamento da indemnização devida representam a oportunidade para a liquidação e cobrança (adicionais) de um tributo que, incidindo sobre o valor patrimonial do imóvel expropriado, fora liquidado e cobrado, por montante inferior ao devido, o que só a avaliação no processo expropriativo acabou por revelar.
[...]
É nesta situação de profunda disfunção tributária que vamos encontrar o fundamento (a razão de ser) de uma norma com as características do artigo 23.º, n.º 4 do CE. Trata-se, disse-se já, de um mecanismo de correcção da base de cálculo da CA, em situações de desactualização das matrizes (que se sabe serem quantitativamente significativas). Partindo-se do princípio de que a determinação do valor do prédio para efeitos indemnizatórios no processo expropriativo, expressando o real valor deste, também evidenciará – quando isso ocorrer – a desactualização da base tributária, o legislador entendeu que nestes casos, ao fazer repercutir no montante indemnizatório essa desactualização, estaria de alguma forma a corrigir a disfunção resultante da disparidade de valores pagos a título de CA pelos detentores de prédios com matrizes actualizadas e por aqueles cujas matrizes se mostrem desactualizadas. Do que se deixa dito resulta, desde logo, que, visando a Contribuição Autárquica a tributação do valor patrimonial, real, dos imóveis - valor esse naturalmente sujeito à situação conjuntural da economia em geral e do mercado imobiliário em particular -, o regime instituído pelo artigo 23º n.º 4 do CE acaba por ser, em si mesmo considerado, um meio adequado para atingir aquele fim: a avaliação reporta-se ao momento actual e obedece a regras criteriosas de determinação do valor patrimonial do imóvel, com o que o valor tributável na contribuição autárquica, previsto como base da liquidação do imposto (artigo 7º n.º 1 do CCA) se acaba por ajustar, com rigor e actualidade, ao valor patrimonial do bem.
[...]
O artigo 7º do CCA estabelecia no seu n.º 1 que o valor dos prédios era o seu valor patrimonial, sendo este determinado nos termos do Código das Avaliações. Prevenindo, contudo, situações que ocorressem antes da entrada em vigor daquele Código (e ele nunca vigorou), o Decreto-Lei n.º 442/88, de 30 de Novembro, estabeleceu, para além da actualização automática do rendimento colectável dos prédios rústicos e urbanos (artigos 6º n.º 2 e 7º n.º 2), regras sobre o valor tributável e avaliação desses prédios. Assim, o valor tributável dos prédios urbanos e rústicos seria o que resultasse da capitalização do rendimento colectável, actualizado com referência a 31 de Dezembro de 1988, com a aplicação do factor 15 (para os prédios urbanos) e 20
(para os prédios rústicos); no que concerne a avaliações, o artigo 8º n.º 1 determinava que elas seriam efectuadas segundo as correspondentes regras do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola. Constituindo as matrizes prediais os registos de que consta o valor tributável dos prédios, importa ainda considerar que a administração fiscal procede oficiosamente à actualização das matrizes quando se verificarem novas avaliações
(artigo 14º n.º 3 do CCA). De importância decisiva para a resolução da questão que nos ocupa é, no entanto, o que se dispõe no artigo 20º n.º 1 alínea a) e 21º do CCA. Por força destes preceitos, a administração fiscal procede oficiosamente à revisão das liquidações em resultado de nova avaliação, efectuando uma liquidação referente ao período da omissão; esta liquidação, correctiva, só poderá, porém, fazer-se nos prazos e termos previstos nos artigos 45º e 46º da LGT, ou seja com observância do prazo geral de caducidade do respectivo direito
(4 anos).».
Reflectindo sobre a ponderação aqui levada a cabo é de concluir pelo modo como fez o Acórdão n.º 625/2004.
De tudo resulta que a norma do art.º 23º, n.º 4, do Código das Expropriações de 1999 não afronta as normas e princípios constitucionais cuja violação a decisão recorrida lhe imputou.
C – Decisão
8 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 23º, n.º 4, do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro; b) Conceder provimento ao recurso; c) Determinar a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de constitucionalidade.
Sem custas. Lisboa, 17 de Novembro de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos