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Processo n.º 901/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. e outros reclamam para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no n.º 4 do art.º 76º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do despacho do relator no Supremo Tribunal de Justiça
(STJ), de 15 de Julho de 2004, que não admitiu o recurso por eles interposto para o Tribunal Constitucional do acórdão do mesmo Supremo, de 24 de Junho de
2004, alegando, em síntese, o seguinte:
«1° O mencionado recurso foi tempestivamente interposto em obediência escrupulosa ao vertido nos artsº 70°-1-b), 75° e 75°-A da Lei do TC.
2° Todavia, o despacho de fls. 400 dos autos não admitiu tal recurso por, alegadamente, não existir a oposição de acórdãos e, por isso, não existir fundamento para a aplicação do artº 732°-A, nº 2 do CPC.
3° Sucede que nos termos estritamente previstos no art. 76° da Lei do TC e no que para o efeito releva: '(...) 2. O requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional deve ser indeferido quando não satisfaça os requisitos do art. 75°-A, do mesmo após o suprimento previsto no seu nº 5, quando a decisão o não admita, quando o recurso haja sido interposto fora do prazo, quando o requerente careça de legitimidade ou ainda, no caso dos recursos previstos nas alíneas b) e f) do nº 1 do art. 70°, quando forem manifestamente infundados
(sublinhado nosso).
4º Ou seja, parece ser claro na lei que estão precisadas com rigor as circunstâncias em que deva, efectivamente. haver indeferimento da interposição do recurso, e tal situação, contrariamente ao prolatado a fls. 400, não se verifica nos presentes autos, pelo que deveria, como deve, o mencionado recurso ser admitido.
5° O interposto recurso satisfaz os requisitos do art. 75°-A, pois indica-se claramente a alínea do nº 1 do art. 70° ao abrigo da qual é feita a interposição e a norma em concreto cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie, como se indica, igualmente, as normas do texto fundamental violadas naquele vertido entendimento de aplicação da norma suscitada, indicação feita no requerimento onde foi alegada a nulidade do Acórdão proferido pelo STJ, que, inequivocamente, constituiu uma decisão surpresa, não previsível.
6°
É possível interpor o presente recurso de constitucionalidade. pelo que o processo em si e a decisão o admitem, sendo ele possível.
7° O recurso foi interposto tempestivamente, porque dentro do prazo legal.
8º Os requerentes não carecem de legitimidade, na verdade foram afrontados nos seus interesses pela decisão proferida pelo STJ.
9º Tratando-se, de facto, de recurso previsto na alínea b) do nº 1 do art 70° da Lei do TC, não é o mesmo manifestamente infundado, antes deverá ser declarada a inconstitucionalidade da norma e entendimento feitos do art. 732°-A do CPC por ofensa ao art. 20°-1 e 4 da CRP.
10º Em suma, verifica-se a existência dos requisitos que motivam a admissão do recurso e mesmo o seu deferimento final, contrariamente aos fundamentos alinhavados pelo STJ, que o não admitem - salvo o devido respeito - de forma errónea.
11° Na verdade, estriba-se o despacho proferido e agora reclamado na reiterada convicção de inexistência de oposição de julgados, o que na óptica dos reclamantes sobressai até com maior flagrância do teor do despacho antecedente ao ora reclamado, que apreciou a invocada nulidade, onde foi, logo que processualmente possível, suscitada a matéria da inconstitucionalidade.
12° Para que dúvidas não restem, existe, efectivamente, oposição de julgados, pelo que nem a justificação dada pelo STJ a fls. 400 ao não admitir o recurso deveria prevalecer. se acaso essa fosse directamente uma das circunstâncias motivadoras da decisão sobre a inadmissibilidade preceituada no art., como se disse, 76°-2 da Lei do TC.»
[...]
«A omissão da sugestão para julgamento alargado. pelo Exmo. Juiz Conselheiro Relator e pelos Exmos. Juizes Conselheiros Adjuntos, terá decorrido de se ter
'interpretado o n° 2 do artigo 732°-A, na parte que a tal respeita, no sentido de não existir um dever jurídico de fazer tal sugestão e antes um poder discricionário de a fazer ou não fazer.
A omissão da notificação às partes de que o processo de formação do acórdão permitia a verificação da possibilidade de vencimento de solução jurídica em oposição com jurisprudência anteriormente firmada, terá decorrido de se ter interpretado o n° 2 do artigo 732°-A, no segmento que refere o direito das partes a requerer o julgamento alargado, no sentido de que tal notificação nunca tem de ser feita, independentemente da circunstância de ter sido até aí pacífica e uniforme a jurisprudência, ou não o ter sido.
O preceito do n° 2 do artigo 732°-A do C.P.C. é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 20º, n° 1 e nº 4 da C.R.P., se interpretado no sentido em que o foi no acórdão ora questionado.
Não foi, por via do dito entendimento, dada às partes e concretamente aos recorrentes, o direito a requererem o julgamento alargado.
A norma do n° 2 do artigo 732º-A do C.P.C., se interpretada no sentido em que o foi no acórdão ora questionado, é inconstitucional, por violação dos nºs 1 e 4 do artigo 20º da C.R.P..
14° Eis, pois e em suma, as razões determinantes da necessidade de admissão do pretendido recurso sobre a constitucionalidade, que inadmitido pelos motivos decididos a fls. 400 motivaria, inclusivamente, fosse o próprio STJ - ao manter a inexistência de oposição de julgados - contrariada pelos recorrentes, que pudesse haver ou não apreciação em sede constitucional.
15° Em face do exposto se reclama para a Conferência desse altíssimo Tribunal, tendo em vista a revogação do despacho de indeferimento proferido pelo STJ, ora impugnado.»
2 – O despacho reclamado é do seguinte teor:
«Como expressamente referido no acórdão de 24/6/2004, a fls. 390 destes autos: a) não existe oposição de acórdãos em que se vem, agora, insistir; b) por isso sem cabimento nestes autos, não se aplicou o art.º 732º-A, n.º
2, do CPC. Não se admite, por isso, o recurso para o Tribunal Constitucional interposto pelo requerimento que antecede (fls. 395). Notifique.».
3 – Os reclamados B. e outros não responderam.
4 – O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional pronunciou-se, no seu parecer, pelo indeferimento da reclamação por ser manifestamente infundada, porquanto “é (...) ostensivo que o STJ não interpretou nem aplicou a norma constante do art.º 732º-A, n.º 2 do CPC com o sentido, alegadamente inconstitucional, referenciado pelo recorrente (e, aliás, não devidamente especificado no requerimento de interposição de recurso, de fls. 395)”.
5 – O acórdão do STJ do qual os ora reclamantes interpuseram recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, tendo em vista a apreciação da conformidade da norma constante do art.º 732º-A, n.º 2, do CPC com o disposto no art.º 20º, n.ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, conheceu da arguição de nulidade imputada pelos ora reclamantes ao acórdão anterior do mesmo Supremo, de 29 de Abril de 2004, acórdão este que, concedendo a revista pedida pelos reclamados, manteve a sentença da 1ª instância que julgara procedente a acção de preferência por eles intentada na venda de determinado prédio e ordenou o cancelamento do respectivo registo da venda. Os reclamantes alegaram que o acórdão havia incorrido em duas omissões, ambas consubstanciadoras de nulidade processual: uma traduzida em o Conselheiro relator e os Conselheiros adjuntos, perante a possibilidade de julgarem a causa de forma oposta à decidida em arestos anteriores do mesmo Supremo, referidos no acórdão reclamado, não terem oficiosamente sugerido o julgamento alargado de revista nos termos do n.º 2 do art.º 732º-A; a outra, traduzida em os mesmos juizes não terem, perante a mesma eventualidade, notificado as partes a fim de estas poderem requerer o julgamento alargado de revista. E coroando o mesmo articulado de suscitação de tais nulidades, os reclamantes alegaram que “a norma do n.º 2 do artigo 732º-A do CPC, se interpretada no sentido em que o foi no acórdão ora questionado, é inconstitucional, por violação dos n.ºs 1 e 4 do artigo 20º da CRP”.
O acórdão conheceu de tal arguição de nulidades, decidindo nos seguintes termos:
«A reclamação a fls. 368 ss centra-se na nota 3 do acórdão desta Secção proferido nestes autos, relativa à seguinte passagem do mesmo:
'Aos demandados incumbia, por sua vez, a prova da efectiva ocorrência de factos considerados pelo direito substantivo aplicável impeditivos, modificativos ou extintivos da pretensão da contra-parte, determinados de acordo com a norma em que assenta a excepção por ela invocada, que é a parte final da al. a) do art.1381°'.
É em abono dessa proposição - isto é, a respeito do ónus da prova - que na nota referida se citam os Acs. STJ de 18/1/94, CJSTJ, II, 1º, 48, de 21/6/94, CJSTJ, II, 2°, 155, 1ª col., 5° par., e 19/3/98, CJSTJ, VI, 1º, 143: que outra coisa não dizem. O fecho dessa nota é como segue: 'Sobre o ónus da prova neste caso, v., por último, Ac. STJ de 15/12/98, BMJ 482/238-2.2.'.
Com a finalidade evidente de pôr em destaque a diferença óbvia das hipóteses versadas nesses arestos e da debatida nestes autos, teve-se o cuidado de deixar registado que no primeiro deles estava em causa a edificação de casa de morada; que no segundo se tratava da exploração duma pedreira; e que também o terceiro era relativo à construção duma moradia.
Notou-se então, ainda, que o ponto III do sumário do segundo devia ser referido
à possibilidade de fraccionamento que os recorridos, precisamente, negam na contra-alegação respectiva, e à prevalência da predita afectação sobre a exploração agrícola tanto no aspecto económico como no funcional, então tidas, uma e outra, em consideração (loc. cit., 2ª col., 2° e 6° par.).
Flagrante, enfim, a inexistência da oposição de acórdãos arguida na reclamação em análise, desmerece mais demorada consideração: outrossim manifesta se revelando a falta de razão de ser da invocação, neste caso, do disposto nos arts
201º, nº 1º, e 732°-A, nºs 1° e 2°, CPC.
Sem cabimento na hipótese ocorrente, o nº 2 do art.732°-A CPC não foi interpretado, nem aplicado nestes autos, e nem, com inteira evidência, tal tinha que ser.
Acorda-se, por conseguinte, em conferência em indeferir a reclamação a fls.368 ss.»
B – Fundamentação
6 – A reclamação é ostensivamente infundada, como de seguida se demonstrará.
Nos termos da jurisprudência constante e uniforme do Tribunal Constitucional, que seria ocioso identificar, constitui pressuposto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade a que se refere a alínea b) do n.º 1 do art.º
70º da LTC, em cujo tipo de recurso se integra o interposto que não foi admitido, que a norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada tenha sido aplicada na decisão recorrida como ratio decidendi ou fundamento normativo da decisão aí proferida. Trata-se de um requisito que é um simples postulado lógico dos termos em que o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade foi conformado pela CRP (de controlo difuso de constitucionalidade de normas jurídicas efectuado a título instrumental) e da própria natureza da função jurisdicional de índole constitucional (de julgamento de questões concretas e não a título académico) que demanda que a decisão do recurso de constitucionalidade possa determinar a alteração ou reforma da decisão recorrida.
7 – Ora, no caso em apreço, verifica-se que a norma constante do n.º 2 do art.º
732º-A do CPC não foi aplicada como fundamento da decisão recorrida, como expressamente se afirma na decisão pretendida recorrer e no despacho reclamado. Na verdade, segundo o ali discreteado – sendo que esse juízo é insindicável pelo Tribunal Constitucional por respeitar à definição e aplicação da lei infraconstitucional - o julgado na decisão cuja nulidade se arguiu não está em oposição com o julgado em qualquer dos arestos mencionados. Desse modo, não estando desenhada, segundo o acórdão pretendido recorrer, situação que pudesse subsumir-se à hipótese regulada naquele preceito, não podia este, segundo o juízo expresso no mesmo acórdão, ser aplicado com o sentido de estar o relator dispensado de sugerir o julgamento alargado de revista ou de notificar as partes para o poderem requerer.
Consequentemente bem decidiu o despacho reclamado ao não admitir o recurso interposto.
C – Decisão
8 – Destarte, atento tudo o exposto, decide o Tribunal Constitucional indeferir a reclamação. Custas pelos reclamantes com taxa de justiça que se fixa em 20 UC.
Lisboa, 17 de Novembro de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos