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Processo n.º 968/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
acordam, em conferência, na 2.ª secção do tribunal constitucional
I. Relatório
1. Por acórdão datado de 15 de Julho de 2004, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu, em conferência, julgar procedente a questão prévia levantada pelo Ministério Público e acompanhada pelo Conselheiro Relator do processo, no sentido da irrecorribilidade da decisão de 1ª instância, confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que havia condenado A. na pena única de 3 anos e
6 meses de prisão, bem como na pena de expulsão do território nacional pelo período de cinco anos, com interdição de entrada por igual período, pela prática, em concurso, de um crime de roubo e de um crime de falsidade de declaração. Consequentemente, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu rejeitar o recurso interposto pelo arguido. Pode ler-se no referido acórdão:
«(...)
9. Como se viu, o recorrente foi condenado pela prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo art.º 210º, n.º 1, do [Código Penal – CP] e ao qual corresponde a pena de 1 a 8 anos de prisão, e ainda por um crime de falsidade de declaração, do art.º 359º, n.º 1, do CP, punível com pena de prisão até 3 anos, ou com pena de multa. O Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a decisão da 1ª instância no tocante ao crime de falsidade de declaração e, no referente ao crime de roubo, reduziu a pena em 6 meses, o que equivale também a uma confirmação, embora in melius
(Acórdãos de 18/4/02, proc. n.º 223/02, de 16/1/03, proc. n.º 41908/02 e de
30/10/03, proc. n.º 2921/03, todos da 5ª Secção). Por outro lado e em consequência, reformulou o cúmulo, também em sentido favorável ao recorrente, aplicando-lhe a pena única de 3 anos e 6 meses de prisão. Ora, nos termos do art.º 400º, n.º 1, alínea f), não é admissível recurso “de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções”. O sistema, designado de dupla conforme, visa restringir a possibilidade de recurso para o STJ, em casos de média gravidade, quando, tendo havido recurso da decisão de 1ª instância para a Relação, esta tenha confirmado a condenação. Por outro lado, não é admissível recurso de acórdãos (condenatórios ou absolutórios) proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções (art.º 400º, n.º 1, alínea e), do CPP). Aqui, trata-se de restringir o recurso para o STJ relativamente a casos de pequena gravidade, quando tenha havido recurso para a Relação e quer esta tenha confirmado, quer não tenha confirmado a decisão de 1ª instância. Deste modo, é inegável que a decisão é irrecorrível relativamente aos dois crimes, não relevando o facto de ambos estarem em concurso, como se depreende imediatamente da expressão legal, usada em ambas as alíneas referidas - mesmo em caso de concurso de infracções.» O recorrente, inconformado, tentou interpor recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade das normas dos artigos 412º, n.º 1 e n.º 3,
420º e 165º do Código de Processo Penal, na interpretação que delas foi feita na decisão recorrida, por entender que essa interpretação “conflitua de uma forma clara com as garantias de defesa do arguido ao limitar intoleravelmente o direito ao recurso”, e ainda das normas dos artigos 432º, alínea b), 400º, n.º
1, alíneas e) e f), 414º, n.º 2 e 420º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, na interpretação restritiva que deles foi feita pelo Supremo Tribunal de Justiça, por violação do artigo 18º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, interpretação essa que entende como “inesperada”. O recurso não foi admitido, por despacho do Conselheiro Relator de turno, datado de 29 de Julho de 2004, com as razões que se transcrevem:
“(...)
- as questões relacionadas com a constitucionalidade dos art.ºs 412º, n.º 3,
420º e 165º do CPP não foram apreciadas pelo acórdão recorrido, deste STJ, pois que foi decidido não tomar conhecimento do recurso, rejeitando-o por inadmissível;
- as restantes questões [dos artigos 432º, alínea b), 400º, n.º 1, alínea e) e f), 414º, n.º 2, e 420º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal] não foram objecto de decisão surpresa por parte do STJ no acórdão agora recorrido. Com efeito, traduz a jurisprudência repetida deste Tribunal, disponível em
www.stj.pt, www.djsi.mj.pt e www.verbojuridico.net, mesmo no que se refere a considerar como confirmativa a decisão da Relação que reafirma a condenação da
1ª instância, mesmo alterando a medida da pena em benefício do arguido.
- finalmente, essa mesma questão da admissibilidade do recurso foi suscitada previamente pelo M.º P.º a fls. 548 e 549 e cumprido o n.º 2 do art.º 417º do CPP (notificação desse parecer ao recorrente), o agora recorrente nada disse, designadamente não colocou a questão da eventual interpretação inconstitucional dos normativos interessados a que conduziria a adopção da propugnada solução da questão prévia. Daí que nenhuma surpresa possa agora ser invocada.” Notificado deste despacho, o recorrente veio dele reclamar para a conferência, por entender que:
«(...) as inconstitucionalidades suscitadas foram-no durante o processo, independentemente de a decisão ter sido julgada irrecorrível, como, mesmo não a tendo sido, este Venerando Tribunal delas (interpretações normativas inconstitucionais) poderia não as ter conhecido, com argumentos vários!... Ou seja, na nossa modesta opinião, a irrecorribilidade da decisão não obsta a que o Tribunal Constitucional delas não possa vir a tomar conhecimento, desde que para tanto a mesma tenha sido suscitada de “modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (art.º 72º, n.° 2, da LTC). Aliás, se nos socorrermos do disposto no n.º 75º, n.° 2, da mesma Lei, facilmente percebemos que a “irrecorribilidade da decisão”, não influi na apreciação de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional. Por coerência e conhecimento da jurisprudência do Tribunal Constitucional, aceitamos que o recorrente ora reclamante deveria ter respondido à questão prévia suscitada no douto parecer do M.P. proferido no Supremo Tribunal de Justiça, e aí ter suscitado a inconstitucionalidade do art.º 400°, n° 1, al. e), do C.P.P. Em todo o caso, entendemos que deverá ser o Tribunal Constitucional a decidir pela tempestividade ou não dessa alegada interpretação normativa inconstitucional.» Por despacho de 19 de Agosto de 2004, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça:
“(...)
5. Ora, entendendo-se que, ao reclamar para a conferência, o recorrente impugna a decisão por meio de recurso (em termos latos), pois é a única maneira que tem, no STJ, de impugnar a decisão do relator, há que, em obediência ao disposto no referido n.º 5, mandar seguir os termos próprios da reclamação.
6. Nesta conformidade, autue por apenso o requerimento em que o reclamante pede a intervenção da conferência, juntamente com este despacho, devendo posteriormente seguir-se os trâmites do art.º 688º do CPC.” Recebidos os autos de reclamação no Tribunal Constitucional, foram os mesmos com vista ao Ministério Público, que se pronunciou do seguinte modo:
«Mesmo que se admita a “conversão” da inadmissível reclamação para a conferência
- do despacho que, no STJ rejeitou o recurso de fiscalização concreta interposto
- em reclamação em processo constitucional, é manifesto que, pelas razões apontadas no tal despacho, a que inteiramente se adere, não se verificam os pressupostos de admissibilidade do recurso interposto.» Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
2. Mesmo aceitando a convolação, decidida pelo Supremo Tribunal de Justiça, da reclamação para a conferência do despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade numa reclamação do mesmo despacho para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 77º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, pode desde já adiantar-se que esta reclamação carece de fundamento. Na verdade, o reclamante pretendeu recorrer do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º, da Lei do Tribunal Constitucional. Ora, são requisitos específicos de admissibilidade daquele tipo de recurso (artigos 70º, n.ºs 1, alínea b), e 2 e
72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional) que a norma impugnada tenha sido aplicada na decisão recorrida como ratio decidendi, que a sua inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, e que tenham sido esgotados os recursos ordinários dessa decisão. No caso em apreço, não se verificam os dois primeiro requisitos referidos. Como se pode verificar pelas transcrições efectuadas, o Supremo Tribunal de Justiça não chegou a conhecer do recurso, por entender que ele era inadmissível, pelo que não aplicou as normas dos artigos 412º, n.º 1 e n.º 3 (no sentido, impugnado pelo recorrente, “em que ‘pecando as conclusões do respectivo recurso por uma certa falta de precisão e concisão’ implica a rejeição do recurso” – sic) e 165º do Código de Processo Penal. Quanto às normas que, elas sim, foram aplicadas na decisão de que o recorrente pretendeu interpor recurso de constitucionalidade, elas prendem-se todas com a irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça dado o facto de o arguido ter sido condenado pela 1ª instância numa pena de 3 anos e 6 meses, confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa – artigos 432º, alínea b), 400º, n.º 1, alíneas e) e f), 414º, n.º 2 e 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Ora, como o próprio reclamante reconhece, não curou de suscitar a inconstitucionalidade destas normas “durante o processo”, isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, no que a essas questões respeita. É este o entendimento do referido requisito que corresponde à sua razão de ser – a intervenção do Tribunal Constitucional, em sede de recurso, com o sentido de uma reapreciação ou reexame de decisões sobre questões de constitucionalidade – e que tem sido afirmado em numerosa e constante jurisprudência do Tribunal Constitucional (cf., por exemplo, e por todos, o acórdão n.º Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República, II Série, de
20 de Junho de 1995). Como tem sido repetidamente afirmado por este Tribunal, o recorrente só pode ser dispensado do ónus de suscitar a inconstitucionalidade durante o processo em casos de todo em todo excepcionais ou anómalos, em que não tenha tido possibilidade de o fazer. Não é este certamente o caso. Com efeito, o entendimento das normas referidas que fundamentou a decisão de irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça, não pode ser considerado de modo algum imprevisível ou inesperado. Isto, não só por corresponder também ao entendimento corrente daquele Supremo Tribunal (cf., por exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Abril de 2002 e 16 de Janeiro de 2003, disponíveis em www.dgsi.pt), como por (como aliás, o próprio recorrente reconhece, ao dizer que “deveria ter respondido à questão prévia suscitada no douto parecer do Ministério Público”) o recorrente ter sido expressamente confrontado com essa questão da irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça no parecer do Ministério Público, não lhe tendo respondido. Conclui-se, portanto, que a questão de inconstitucionalidade trazida na presente reclamação não foi adequadamente suscitada no Tribunal recorrido, conforme impõe o n.º 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional. E impõe-se, assim, o indeferimento da reclamação contra a decisão de não admissão do recurso de constitucionalidade. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e, consequentemente, condenar o reclamante em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 30 de Novembro de 2004
Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos