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Processo n.º 1025/04 Plenário Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional
I.
1. Em 25 de Novembro de 2004, o Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 115º, nº 8, da Constituição e dos artigos
26º e 29º, nº 1, da Lei nº 15-A/98, de 3 de Abril, 'a fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo aprovada pela Resolução nº 74-A/2004 da Assembleia da República, publicada em Suplemento à 1ª Série do Diário da República, de 19 de Novembro de 2004, distribuído a 25 de Novembro'. Admitido o pedido, nos termos do artigo 29º, nº 3, da Lei Orgânica do Regime do Referendo, os autos foram de imediato distribuídos. Apresentado o Memorando, previsto no artigo 30º, nº 2, desta Lei, foi fixada a orientação do Tribunal.
2. A resolução em causa é do seguinte teor:
'Resolução da Assembleia da República nº 74-A/2004 Proposta de realização de referendo sobre a Constituição para a Europa
A Assembleia da República resolve, nos termos e para os efeitos do artigo 115º e da alínea j) do artigo 161º da Constituição, apresentar ao Presidente da República a proposta de realização de um referendo em que os cidadãos eleitores recenseados no território nacional e os cidadãos eleitores portugueses recenseados nos Estados membros da União Europeia sejam chamados a pronunciar-se sobre a pergunta seguinte:
'Concorda com a Carta de Direitos Fundamentais, a regra das votações por maioria qualificada e o novo quadro institucional da União Europeia, nos termos constantes da Constituição para a Europa?'
Aprovada em 18 de Novembro de 2004. O Presidente da Assembleia da República, João Bosco Mota Amaral.'
3. Na origem desta Resolução da Assembleia da República estiveram os Projectos de Resolução nºs 290/IX (BE), 291/IX (PCP) e 292/IX (PSD, PS e CDS-PP), de 18 de Novembro de 2004 (Diário da Assembleia da República, II Série-A, de 20 de Novembro de 2004).
3.1. No Projecto de Resolução nº 290/IX – Referendo sobre as alterações introduzidas pelo Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa – foi proposta a pergunta 'Concorda com a alteração das instituições e das competências da União Europeia, nos termos do tratado que estabelece uma Constituição para a Europa?'.
3.2. No Projecto de Resolução nº 291/IX – Proposta de Referendo do novo tratado da União Europeia – foi formulada a pergunta 'Concorda com a vinculação de Portugal ao novo Tratado que institui uma Constituição da União Europeia?'.
3.3. No Projecto de Resolução nº 292/IX – Referendo sobre a Constituição para a Europa – foi proposta a pergunta 'Concorda com a Carta de Direitos Fundamentais, a regra das votações por maioria qualificada e o novo quadro institucional da União Europeia, nos termos constantes da Constituição para a Europa?', à qual deveriam responder 'todos os cidadãos eleitores regularmente recenseados, residentes no território nacional ou no estrangeiro'. Deste Projecto, que deu origem ao quesito referendário em análise, consta a seguinte fundamentação: 'Com a aprovação pelo Conselho Europeu do texto que institui uma Constituição para a Europa está hoje clara a relevância que a mesma assume no plano de ampliação e reforço dos direitos dos cidadãos, bem como no das novas regras que traz à arquitectura e ao próprio funcionamento da União Europeia. Sempre defendemos que se o conteúdo dessas alterações assumisse relevância suficiente proporíamos a realização de um referendo de âmbito nacional, com o objectivo de proporcionar ao povo português a oportunidade de directamente se pronunciar sobre a construção europeia e os rumos que nela queremos trilhar. É crucial, no entanto, que esse pronunciamento do povo português se faça de uma forma não parcial nem sectária, abrindo espaço ao debate transparente e profundo que se deve exigir nesta nova fase da União'.
3.4. Debatidos e submetidos a votação, o Projecto de Resolução nº 290/IX foi rejeitado, com votos contra do PSD, do PS e do CDS-PP e votos a favor do PCP, do BE e de Os Verdes; o Projecto de Resolução nº 291/IX foi rejeitado, com votos contra do PSD, do PS e do CDS-PP e votos a favor do PCP, do BE e de Os Verdes; o Projecto de Resolução nº 292/IX foi aprovado, com votos a favor do PSD, do PS e do CDS-PP e votos contra do PCP, do BE e de Os Verdes (Diário da Assembleia da República, I Série, de 19 de Novembro de 2004).
II.
4. Compete ao Tribunal Constitucional, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 115º, nº 8, e 223º, nº 2, alínea f), da Constituição da República Portuguesa (CRP), 26º da Lei nº 15-A/98, de 3 de Abril – Lei Orgânica do Regime do Referendo (LORR) e 11º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), proceder obrigatoriamente à prévia verificação da constitucionalidade e da legalidade das propostas de referendo, incluindo a apreciação dos requisitos relativos ao respectivo universo eleitoral.
5. A proposta referendária em análise cumpre as exigências constitucionais e legais constantes dos artigos 115º, nºs 1, 2, 7, 8 e 10, da CRP e 8º, 15º e 26º da LORR: provém da Assembleia da República, tendo sido aprovada pela Resolução nº 74-A/2004, de 19 de Novembro; foi submetida ao Tribunal Constitucional pelo Presidente da República, no dia 25 de Novembro de 2004; não se trata de proposta anteriormente recusada pelo Presidente da República ou que tenha sido já objecto de resposta negativa do eleitorado; e em causa está uma proposta aprovada no dia
18 de Novembro de 2004, não havendo então qualquer acto de convocação de eleições gerais para os órgãos de soberania, de governo próprio das regiões autónomas e do poder local, bem como de deputados ao Parlamento Europeu. Desde então e até à presente data, não foi publicado no Diário da República qualquer decreto do Presidente da República a marcar dia de eleições gerais (cf. artigos
113º, nº 6, 119º, nºs 1, alínea d), e 2, e 133º, alíneas b) e e), da CRP).
6. A presente proposta cumpre as exigências constitucionais e legais relativas ao objecto do referendo:
6.1. Segundo o disposto no artigo 115º, nº 3, da CRP e 2º da LORR, o referendo só pode ter por objecto questões de relevante interesse nacional que devam ser decididas pela Assembleia da República ou pelo Governo através da aprovação de convenção internacional ou de acto legislativo. Versando esta consulta referendária sobre a 'Constituição para a Europa' (cf. epígrafe da Resolução da Assembleia da República), inscrevendo-se no processo de construção da União Europeia, não há qualquer dúvida que se trata de uma questão de relevante interesse nacional. Uma questão de relevante interesse nacional que deve ser decidida pela Assembleia da República através da aprovação de convenção internacional, uma vez que se inclui na 'Competência política e legislativa' deste órgão de soberania, tal como está definida no artigo 161º da CRP: compete
à Assembleia da República aprovar os tratados de participação de Portugal em organizações internacionais, segundo o disposto na alínea i).
6.2. Os artigos 115º, nº 4, da CRP e 3º, nº 1, da LORR excluem do âmbito do referendo as alterações à Constituição, as questões e os actos de conteúdo orçamental, tributário ou financeiro, as matérias previstas no artigo 161º da Constituição e as matérias previstas no artigo 164º da Constituição, com excepção do disposto na alínea i). Não prejudicando o disposto nestes números a submissão a referendo das questões de relevante interesse nacional que devam ser objecto de convenção internacional, nos termos da alínea i) do artigo 161º da Constituição, excepto quando relativas à paz e à rectificação de fronteiras
(artigos 115º, nº 5, da CRP e 3º, nº 2, da LORR). Estes limites materiais do referendo devem considerar-se respeitados: a proposta referendária não visa alterar a Constituição, na interpretação que o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 288/98 (Diário da República, I Série-A, de 18 de Abril de 1998) faz da alínea a) do nº 4 do artigo 115º da CRP; a presente proposta não reveste conteúdo orçamental, tributário ou financeiro nem tão-pouco se enquadra na reserva absoluta de competência legislativa parlamentar; resulta das disposições conjugadas dos nºs 4, alínea c), e 5 do artigo 115º da CRP que o referendo pode incidir sobre 'questões que devam ser objecto de 'tratados de participação de Portugal em organizações internacionais', cuja competência pertença à Assembleia da República' (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº
531/98, Diário da República, I Série-A, de 30 de Julho de 1998, e toda a evolução legislativa aí traçada a propósito das alterações introduzidas pela Lei Constitucional nº 1/1997, de 20 de Setembro).
6.3. De acordo com o disposto no artigo 4º, nº 1, da LORR, as questões suscitadas por convenções internacionais em processo de apreciação podem constituir objecto de referendo, desde que estas não estejam definitivamente aprovadas. Apesar de o Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa já ter sido assinado pelos Chefes de Estado e de Governo da União Europeia, o referendo ainda pode ser realizado, já que não está definitivamente aprovado pela Assembleia da República para subsequente ratificação pelo Presidente da República. A proposta referendária integra o 'processo de decisão de acto futuro e normativo', respeitando-se a exigência de dever 'estar em causa um tratado ou convenção internacional ainda não definitivamente aprovado' (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 531/98).
6.4. A limitação constitucional e legal no sentido de o referendo recair sobre uma só matéria (artigos 115º, nº 6, da CRP e 6º da LORR) deve ser vista como uma exigência relativa ao objecto do referendo (e não relativa à pergunta), face à possibilidade, prevista expressamente na Constituição e na lei, de numa mesma consulta referendária haver mais do que uma pergunta. Este princípio de homogeneidade e unidade da matéria justifica-se, segundo M. Benedita M. Pires Urbano (O referendo. Perfil histórico-evolutivo do instituto. Configuração jurídica do referendo em Portugal, Coimbra Editora, 1998, p. 201 e s.), para evitar confusões no espírito dos cidadãos eleitores: 'confusões quer quanto ao próprio objecto da consulta (se uma mesma consulta versasse sobre várias matérias, isso poderia sem dúvida ocasionar uma imperfeita compreensão do que está em causa) e, ainda, confusões quanto às próprias respostas dos cidadãos eleitores (pois eles poderão não conseguir dissociar completamente as várias perguntas que lhes são colocadas num mesmo boletim de voto e que foram previamente explicadas numa mesma campanha referendária, sendo que a resposta a uma delas – porventura àquela em que estão mais seguros, mais esclarecidos ou mais motivados para responder – poderá influenciar a resposta às outras, de tal maneira que, se cada pergunta tivesse sido apresentada isoladamente, as respostas seriam outras)'. A proposta referendária em análise respeita a exigência de homogeneidade e unidade da matéria. Ainda que se entenda que a proposta contém três questões autónomas (cf. infra ponto 7.1.), respeitará sempre este princípio, uma vez que estas questões permitem recortar 'a matriz racionalmente unitária do referendo'
– a Constituição para a Europa (expressão, aquela, utilizada por Gomes Canotilho, 'A jurisprudência constitucional referendária de 1998. Anotação', Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 131º, nºs 3894 a 3896, p. 348). Neste sentido abonam a parte final da pergunta – nos termos constantes da Constituição para a Europa –, a epígrafe da Resolução da Assembleia da República
– Proposta de realização de referendo sobre a Constituição para a Europa – e os trabalhos preparatórios desta Resolução (Diário da Assembleia da República, I Série, de 19 de Novembro de 2004).
7. A presente proposta não comporta mais de três perguntas e o quesito referendário não é precedido de quaisquer considerandos, preâmbulos ou notas explicativas, em obediência ao disposto nos artigos 115º, nº 6, da CRP e 7º da LORR. Também de acordo com estas disposições, a pergunta deve ser formulada com objectividade, clareza e precisão e para respostas de sim ou não, sem sugerir, directa ou indirectamente, o sentido da resposta. Exigências em nome da
'genuinidade democrática do referendo' (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1993, p. 534), que devem ser verificadas tendo presente, por um lado, que 'ao Tribunal Constitucional não cabe averiguar se a pergunta se encontra formulada da melhor maneira, mas tão-só certificar-se que ela ainda satisfaz adequadamente as exigências constitucionais e legais' e, por outro, que 'a clareza da pergunta se há-de conjugar com a sua objectividade e precisão, o que implica uma maior complexidade na formulação e a utilização de terminologia rigorosa, para se evitar posteriormente a existência de equívocos quanto às soluções propugnadas, por a pergunta abranger situações não pretendidas ou consentir leituras ambíguas' (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 288/98).
7.1. Tal como está formulada a pergunta – Concorda com a Carta de Direitos Fundamentais, a regra das votações por maioria qualificada e o novo quadro institucional da União Europeia, nos termos constantes da Constituição para a Europa? – podemos retirar dela que há a junção de três questões numa só fórmula de resposta única. Do ponto de vista sintáctico, são destacáveis três segmentos que correspondem a três complementos directos diferenciados, sendo que quer o verbo ('Concorda') quer a preposição ('com') se encontram omissos a anteceder os dois últimos complementos. Uma construção da frase equivalente à hipótese de a mesma haver sido construída da seguinte forma: 'Concorda com a Carta de Direitos Fundamentais, concorda com a regra das votações por maioria qualificada e concorda com o novo quadro institucional da União Europeia, nos termos constantes da Constituição para a Europa?'. Trata-se de uma formulação do quesito referendário que não é clara, atenta a exigência constitucional e legal de o mesmo dever ser formulado de modo unívoco e explícito, sem ambiguidades (cf. Luís Barbosa Rodrigues, O referendo português a nível nacional, Coimbra Editora, 1994, p. 208). Falta de clareza que decorre, de imediato, do facto de uma mesma pergunta conter três questões. Seguindo o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 398/99 (Diário da República, II Série, de
11 de Outubro de 1999), diga-se que 'a formulação da pergunta a submeter aos eleitores (...) não deixa de suscitar algumas perplexidades. Desde logo, trata-se de uma pergunta na qual se concentram três questões, o que, manifestamente, torna a pergunta complexa'. Com efeito, começa-se por questionar a Carta de Direitos Fundamentais, para, de seguida, se referir a regra das votações por maioria qualificada e finalmente se aludir ao novo quadro institucional. Tendo em conta a parte final do quesito referendário – nos termos constantes da Constituição para a Europa – a epígrafe da Resolução da Assembleia da República
– Proposta de realização de referendo sobre a Constituição para a Europa – e os trabalhos preparatórios desta Resolução, somos porém confrontados com a possibilidade de a Assembleia da República ter querido seleccionar três aspectos do Tratado para dar conteúdo à proposta referendária, para ilustrar e clarificar a proposta de um referendo sobre a Constituição para a Europa, remetendo a pergunta, afinal, para um juízo de ponderação global. Mas se é assim, podemos afirmar, à semelhança do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 93/2000 (Diário da República, II Série, de 30 de Março de 2000), 'que, tal como formulada está, a pergunta em causa escamoteia ou faz um «encapotamento» da finalidade que nela se contém, ou seja, questionar, e só, se concorda' com a Constituição para a Europa. Tal como formulada está, a pergunta não é clara no sentido de que a finalidade que nela se contém é questionar o cidadão eleitor se concorda com a Constituição para a Europa. A formulação da pergunta autoriza também, como já vimos, que se diga que a finalidade que nela se contém é questionar o cidadão eleitor se concorda com a Carta de Direitos Fundamentais, se concorda com a regra das votações por maioria qualificada e se concorda com o novo quadro institucional da União Europeia, cada um destes três pontos nos termos da Constituição para a Europa. Ora, como tem vindo a ser repetido por este Tribunal, 'a mera possibilidade de se atribuir mais do que um sentido à pergunta denota o seu carácter equívoco e a consequente falta de clareza' (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 531/98 e, entre os que o seguiram, os Acórdãos nº 93/2000 e nº 94/2000, este último publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Março de 2000). A mera possibilidade de se atribuir mais do que um sentido à pergunta põe em causa a exigência de intelegibilidade ou compreensibilidade e clareza dos quesitos referendários, cuja razão de ser é 'evitar que a vontade expressa dos eleitores seja falsificada pela errónea representação das questões' (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 534).
7.2. Para além de a pergunta globalmente considerada não ter sido formulada de modo unívoco e explícito, sem ambiguidades, também cada uma das questões contidas no quesito não respeita a exigência de clareza, já que podemos atribuir mais do que um sentido a cada uma delas. Asserções que têm presente que uma coisa é a clareza da pergunta e outra diferente o nível de conhecimentos dos eleitores, servindo o período de campanha para esclarecer a matéria perguntada e não para clarificar a pergunta. De resto, a clareza da pergunta é mesmo condição para que se possam cumprir os objectivos da campanha para o referendo: justificação e esclarecimento das questões submetidas a referendo e promoção das correspondentes opções, segundo o disposto no artigo 39º da LORR. Quando se pergunta ao cidadão eleitor se concorda com a Carta de Direitos Fundamentais, nos termos constantes da Constituição para a Europa, estamos a perguntar-lhe se concorda com o conteúdo da Carta ou antes se concorda com a dignidade constitucional e o carácter vinculativo da Carta? Tenha-se presente que na Resolução da Assembleia da República nº 85/2003, de 23 de Dezembro, sobre o Projecto de tratado constitucional para a União Europeia, o que mereceu destaque foi a integração da Carta dos Direitos Fundamentais adquirindo força vinculativa. No mesmo sentido apontando a discussão parlamentar dos projectos de resolução apresentados, tendo um dos Deputados que subscreveu o projecto aprovado afirmado que 'queremos perguntar aos portugueses qual a sua opinião sobre as matérias em que este Tratado inova. Do nosso ponto de vista, inova
(...) também em relação à integração num Tratado da Carta dos Direitos Fundamentais' (cf. Diário da Assembleia da República, I Série, de 19 de Novembro de 2004, p. 1029, itálico nosso).
Quando se pergunta ao cidadão eleitor se concorda com a regra das votações por maioria qualificada, nos termos constantes da Constituição para a Europa, estamos a perguntar-lhe se concorda que, em regra, as votações sejam por maioria qualificada (não por unanimidade ou por maioria simples), se concorda com a definição da maioria qualificada ou antes se concorda com os casos em que as deliberações são tomadas por maioria qualificada? Há que ter presente a evolução que tem havido quanto à forma de definir a maioria qualificada, representando a redacção do artigo I-25º da Constituição para a Europa uma alteração relativamente ao consagrado a este propósito no Tratado de Nice e uma alteração relativamente a redacções anteriores da mesma disposição. Importa até interrogarmo-nos se a compreensão da pergunta não exige mesmo conhecimentos especializados de direito comunitário, o que, por si só, redundaria numa pergunta não clara para o eleitor normal, segundo o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 531/98, de 29 de Julho. Conhecimentos especializados, por exemplo, quanto à forma de apuramento da maioria qualificada (duplo critério ou não?). Quando se pergunta ao cidadão eleitor se concorda com o novo quadro institucional da União Europeia, nos termos constantes da Constituição para a Europa, estamos a perguntar-lhe, afinal, o quê, depois de lhe ter perguntado se concorda com a regra das votações por maioria qualificada, nos termos constantes da Constituição para a Europa, sendo certo que este é um dos aspectos integrantes do novo quadro institucional? Com efeito, o artigo I-25º (Definição da maioria qualificada no Conselho Europeu e no Conselho) integra o Capítulo I – Quadro Institucional – do Título IV (Instituições e órgãos da União), o que nos leva também a equacionar se, afinal, estamos a perguntar ao cidadão eleitor se concorda com o quadro institucional que compreende o Parlamento Europeu, o Conselho Europeu, o Conselho de Ministros, a Comissão Europeia e o Tribunal de Justiça da União Europeia (artigo I-19º), sem ter em conta as instituições e os
órgãos consultivos previstos no Capítulo II (Outras instituições e órgãos consultivos da União). A autonomização da regra das votações por maioria qualificada, leva-nos, ainda, integrando tal regra aquele Capítulo I, a equacionar se, afinal, estamos a perguntar ao cidadão eleitor se concorda com as novas regras de funcionamento da União, previstas no artigo III-330º e ss., no Capítulo I (Disposições institucionais), do Título VI (Funcionamento da União), as quais abrangem todas as instituições e órgãos da União Europeia. Destaque-se, aliás, que quando perguntamos ao cidadão eleitor se concorda com o novo quadro institucional, nos termos constantes da Constituição para a Europa, podemos estar afinal a perguntar-lhe se concorda com aspectos muito específicos, como, por exemplo, o princípio da representação degressivamente proporcional no Parlamento Europeu (artigo I-20º, nº 2), a existência de um Presidente do Conselho Europeu, eleito por maioria qualificada para um mandato de dois anos e meio renovável uma vez (artigo I-22º), a criação do Ministro dos Negócios Estrangeiros (artigo I-28º), as diferentes formações do Conselho de Ministros
(artigo I-24º), a modificação do apuramento da maioria qualificada (artigo I-25º) e a composição da Comissão (artigo I-26º) – aspectos destacados por Ana Maria Guerra Martins (O Projecto de Constituição Europeia. Contributo para o Debate sobre o Futuro da União, 2ª edição, Almedina, p. 71 e s.), quando considera as inovações do quadro institucional.
8. Interpretada a pergunta no sentido de nela se conterem três questões autónomas – interpretação consentida pela falta de clareza da mesma – o cidadão eleitor não é levado a formular um juízo de ponderação global do conteúdo da Constituição para a Europa, apontando também nesta direcção a circunstância de estarmos perante três questões que não têm entre si qualquer relação de dependência, podendo subsistir cada uma delas e fazer sentido sem a(s) outra(s), sem que, portanto, a concordância ou não concordância do cidadão eleitor quanto a uma das questões se repercuta na concordância ou não concordância quanto às demais. O cidadão eleitor pode concordar com a regra das votações por maioria qualificada e não concordar com a Carta de Direitos Fundamentais; o cidadão eleitor pode concordar com a regra das votações por maioria qualificada e não concordar com o novo quadro institucional da União Europeia; o cidadão eleitor pode concordar com a Carta de Direitos Fundamentais e não concordar com o novo quadro institucional da União Europeia... A interpretação da pergunta no sentido de nela se conterem três questões autónomas compromete a exigência constitucional e legal de que seja formulada para uma resposta de sim ou de não (artigos 115º, nº 6, da CRP e 7º, nº 2, da LORR). Que seja formulada para uma resposta de sim ou de não, em nome do princípio da bipolaridade ou dilematicidade do quesito referendário, o qual
'proíbe em termos absolutos a formulação de perguntas referendárias que preconizem respostas diferenciadas, intermédias e condicionais. A resposta dos eleitores terá que traduzir-se na aceitação, numa adesão a uma solução, ou inversamente na recusa, na rejeição dessa mesma solução' (M. Benedita M. Pires Urbano, ob. cit., p. 204). Diferentemente do que sucederia com uma pergunta que levasse o cidadão eleitor a formular um juízo de ponderação global, um juízo que conduziria a uma resposta de sim ou de não, uma pergunta que permita a interpretação de que foram destacadas (seleccionadas) três específicas questões incluídas no Tratado que estabelece a Constituição para a Europa, apresentadas como questões em si mesmas consideradas e não enquanto exemplificativas do conteúdo de um todo homogéneo, não está formulada para uma resposta de sim ou de não. E não está assim formulada, porque cada uma das questões, por si só, pode conduzir quer a uma resposta de sim quer a uma resposta de não, colocando o cidadão eleitor perante a dificuldade de saber como votar quando a resposta não for a mesma para todas as questões que lhe são postas. Hipótese em que somos levados a concluir que a pergunta abre espaço para soluções matizadas, quando o princípio da bipolaridade ou dilematicidade impõe que a pergunta, devendo ser respondida por uma afirmativa ou uma negativa, não abra espaço para soluções matizadas (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 288/98), quando este princípio quer evitar que 'a vontade popular se exprima de uma forma intermédia, por exemplo por adesão parcial ou condicionada a uma das duas soluções opostas propostas' (Giulio M. Salerno, Il referendum, CEDAM, 1992, p. 88). No fundo, o que se pretende assegurar com uma formulação bipolar ou dilemática é que o sentido do voto coincida, em toda a sua extensão, com o conteúdo desse mesmo voto, transpondo para aqui uma distinção da doutrina italiana (cf. Giulio M. Salerno, 'Referendum', Enciclopedia del Diritto, XXXIX, p. 225), que expressivamente chama a atenção para o 'efeito de arrastamento' – effetto di trascinamento (Rosangela de Bellis, 'Il referendum nella giurisprudenza costituzionale', Rivista trimestrale di diritto pubblico, 1990, p. 371 e s.). Ou seja, o cidadão eleitor poderá ser 'arrastado' para uma determinada resposta, em face do peso particular que para ele assume uma das questões, caso em que o sentido do seu voto poderá não coincidir, em toda a sua extensão, com o conteúdo do mesmo. É perfeitamente admissível que um cidadão eleitor, quando perguntado sobre se concorda com a Carta de Direitos Fundamentais, a regra das votações por maioria qualificada e o novo quadro institucional da União Europeia, nos termos constantes da Constituição para a Europa?, responda sim ou não pela grande importância que atribui a uma das questões, sendo certo que a resposta seria a inversa se perguntado de forma autónoma sobre cada uma das outras. Caso em que, repita-se, o sentido do voto não seria coincidente, em toda a sua extensão, com o seu conteúdo, prejudicando o apuramento da vontade efectivamente maioritária do universo de cidadãos eleitores consultados. Por outras palavras, ainda que não estejamos perante uma 'formulação simultânea, concorrente e não subsidiária', tal como ocorreu com as perguntas objecto dos Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 360/91 e 495/99 (Diário da República, II Série, de 10 de Janeiro de 1992 e de 7 de Outubro de 1999), é possível equacionar, perante uma das interpretações consentidas pelo quesito em análise, a hipótese de chegarmos a um resultado em que o sentido positivo do voto pode ter tradução num número igual ou inferior à soma das respostas negativas que seriam dadas caso fosse oferecida aos eleitores a possibilidade de respostas autónomas; ou a um resultado em que o sentido negativo do voto pode ter tradução num número igual ou inferior à soma das respostas positivas que seriam dadas caso fosse oferecida aos eleitores a possibilidade de respostas autónomas.
9. Perante o exposto, conclui-se que a pergunta constante da Proposta de realização de referendo sobre a Constituição para a Europa, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 74-A/2004, de 19 de Novembro, não foi formulada com clareza e para respostas de sim ou não, requisitos exigidos pelos artigos 115º, nº 6, da Constituição da República Portuguesa e 7º, nº 2, da Lei Orgânica do Regime do Referendo, ficando prejudicada a verificação dos outros requisitos de constitucionalidade e de legalidade.
III.
10. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Considerar que a Proposta de realização de referendo sobre a Constituição para a Europa, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 74-A/2004, de 19 de Novembro, não respeita os requisitos de clareza e de formulação da pergunta para respostas de sim ou não exigidos pelos artigos 115º, nº 6, da Constituição da República Portuguesa e 7º, nº 2, da Lei Orgânica do Regime do Referendo; b) Consequentemente, ter por não verificada a constitucionalidade e a legalidade do referendo proposto na Resolução da Assembleia da República nº 74-A/2004, de
19 de Novembro.
Lisboa, 17 de Dezembro de 2004
Maria João Antunes Rui Manuel Moura Ramos Gil Galvão Mário José de Araújo Torres Carlos Pamplona de Oliveira Paulo Mota Pinto Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Helena Brito Benjamim Rodrigues Vítor Gomes Bravo Serra (Voto a decisão unicamente pelos fundamentos aduzidos no ponto 7.2. do presente aresto – no que concerne à nele apurada falta de clareza de cada uma das questões ínsitas na pergunta referendanda – à excepção do que, em tal ponto,
é referido no seu último período) Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta). Artur Maurício
Declaração de voto
Votei vencida o presente Acórdão por discordar, no essencial, da fundamentação e da decisão, tendo apenas dúvidas quanto à (falta de) clareza de uma parte da pergunta. As razões da minha discordância são basicamente as seguintes: divirjo da linha de raciocínio que conduz, simultaneamente, à conclusão da falta de clareza da pergunta por equivocidade do seu sentido e por insusceptibilidade de ela conduzir a uma resposta unitária de sim ou não, violando a exigência de bipolaridade ou dilematicidade; e não subscrevo também o entendimento sufragado acerca do próprio requisito da clareza.
1. Em primeiro lugar, não me parece que o facto de a pergunta conter três questões, correspondentes a três aspectos da Constituição para a Europa que a Assembleia da República considerou dever submeter a referendo, implique a equivocidade. Com efeito, o Tribunal Constitucional apresenta como duplo sentido a autonomia relativa das três questões (respeitantes à Carta dos Direitos Fundamentais, à regra de votação por maioria qualificada e ao novo quadro institucional) em contraposição com a utilização dessas questões como meros exemplos de uma pergunta global (implícita) sobre a Constituição no seu todo. Assim, o Tribunal parece entender que, através da formulação da pergunta, não se fica a saber se se questiona o eleitorado sobre o todo ou apenas sobre os referidos três aspectos, o que seria equívoco. Porém, a formulação da pergunta não autoriza a interpretação segundo a qual se pede aos destinatários uma ponderação global sobre a Constituição para a Europa. Diferentemente, foi a própria Assembleia da República, e só ela, que realizou uma ponderação global sobre a importância das três questões, segundo critérios que não cabe ao Tribunal Constitucional julgar, visto que não é obrigatório sujeitar a referendo aquela Constituição. Feita a ponderação, a Assembleia da República pede aos eleitores que se pronunciem sobre as três questões, remetendo para os termos em que elas estão tratadas na Constituição para a Europa. De modo nenhum a pergunta remete para essa Constituição no seu conjunto. Por outro lado, também não resulta dos trabalhos preparatórios desenrolados na Assembleia da República e da discussão jurídica envolvente que se tenha pretendido questionar algo para além de tais aspectos. Em apoio da ideia contrária milita até a circunstância de não se ter querido “plebiscitar” a Constituição para a Europa. Não pode, por conseguinte, o Tribunal intuir um sentido oculto na pergunta formulada, abstraindo “olimpicamente” da génese da opção por uma pergunta não global e das dificuldades inerentes, na nossa tradição e no próprio texto constitucional, a essa pergunta global. Aliás, uma pergunta global em que se pedisse directamente aos cidadãos que fizessem uma ponderação abstraindo de quaisquer questões concretas não seria, de modo algum, mais clara do que a pergunta sub judicio. Eventualmente simples no seu enunciado linguístico, a referida pergunta global pecaria, todavia, por excesso de conteúdo – excesso de compreensão do conceito objecto da pergunta. O duplo sentido detectado pelo Acórdão resulta, simplesmente, de uma pré-compreensão pelo intérprete do que deveria ser referendado, que o texto da pergunta não autoriza e até pretende evitar.
2. Também não creio que a coexistência de três questões no âmbito da pergunta prejudique a exigência de bipolaridade ou dilematicidade. Como se sublinhou antes, a circunstância de se admitir que a Assembleia da República pretende, a partir das três questões concretas, encontrar um sinal seguro da vontade do eleitorado no sentido da aprovação ou não aprovação do Tratado não impede a autonomização de tais questões (e não obsta ao silêncio quanto à Constituição no seu todo, o qual só seria ilegítimo se ela estivesse sujeita a referendo). Efectivamente, a Assembleia da República não pretende questionar os cidadãos sobre a Constituição para a Europa no seu todo e, por isso, não pode estar em causa uma adulteração da resposta a algo que não se perguntou. Para além disso, quando se conjugam três aspectos diversos numa mesma pergunta, a resposta lógica
é de sim para quem concorde com todos os aspectos e de não para quem não concordar com apenas um, com dois ou com os três aspectos. Exemplificando: em termos de raciocínio prático, quando se pergunta a uma pessoa se concorda com a inclusão, num curso de licenciatura em Direito, das disciplinas de Direito Canónico, Direito das Mulheres e Direito do Mar, com os programas constantes de um determinado plano curricular, essa pessoa só responderá positivamente se concordar com a inclusão de todas as disciplinas no curso; se discordar da inclusão de uma (ainda que apoie a inclusão das duas restantes, por hipótese) responderá, em princípio, negativamente – tal como sucederá se discordar da inclusão de duas ou de três disciplinas. O resultado só será diferente se a pessoa valorizar de tal modo uma questão que sacrifique à preferência por ela a rejeição das restantes questões. Assim, o destinatário da pergunta pode dar tanta importância ao Direito das Mulheres, por exemplo, que está disposto a suportar, como contrapartida, um curso que compreenda as disciplinas indesejadas de Direito Canónico e Direito do Mar (sobre outras disciplinas do curso nada diz porque nada lhe foi perguntado...). De todo o modo, a pessoa que assim responder não está equivocada. Resolve um dilema de acordo um critério racional, que deve ser integralmente respeitado, em nome do princípio democrático. E se a pergunta questionasse apenas, em abstracto, todo o plano de curso, nem por isso o destinatário deixaria de se confrontar com o mesmo dilema. Estas ponderações são inerentes ao raciocínio prático, ocorrem no dia a dia e, quer queiramos quer não, uma avaliação da Constituição Europeia não se pode furtar a realizá-las.
3. Quanto à clareza de cada uma das questões, não me parece que o Acórdão tenha seguido a orientação da compreensibilidade para o destinatário normal que a anterior jurisprudência deste Tribunal delineou. Com efeito, o Acórdão afere a falta de clareza de cada questão em face dos sentidos jurídicos possíveis de uma questão essencialmente não jurídica. Porém, a clareza da pergunta deverá ser aferida ante os sentidos comuns de cada questão, em articulação com a possibilidade de elucidar o seu sentido último através da campanha do referendo. Ora, as questões suscitadas permitem já compreender em termos leigos o que está em causa e são compatíveis com um esclarecimento mais preciso a prestar aos cidadãos no decurso da campanha do referendo. A questão relativa à Carta dos Direitos Fundamentais é, quanto a mim, claríssima. Quem concorda com o conteúdo da Carta também concorda com a sua dignidade constitucional e vinculatividade. Não me parece viável outro entendimento, tendo em conta, aliás, que a pergunta do referendo remete expressamente para os “termos constantes da Constituição para a Europa”. Por seu turno, a questão relativa à maioria qualificada é também suficientemente sugestiva do problema que se coloca, cabendo à campanha do referendo explicitar o seu alcance inovatório. Finalmente, a pergunta sobre o quadro institucional é, quanto a mim, a menos clara, não por possibilitar diversos sentidos jurídicos, que sempre seriam susceptíveis de esclarecimento, mas porque, à partida, não permite uma fácil representação leiga do que se pergunta, dado o excesso de complexidade do que está em causa. No entanto, de toda a análise antecedente resulta que uma só pergunta global sobre a Constituição Europeia compartilharia todos problemas de “clareza” que o Tribunal Constitucional equaciona no caso em apreço (e até em versão agravada), acrescentando ainda a enorme complexidade de uma pergunta inteiramente abstracta referente a um conjunto de centenas de questões concretas (correspondentes a outras tantas normas da Constituição para a Europa) não explicitadas e insusceptíveis de esclarecimento através de discussão pública.
4. Em suma, discordo, no essencial, do presente Acórdão. E penso que o entendimento juridicista quanto à clareza da pergunta, se for coerentemente mantido, tenderá a impedir qualquer referendo sobre questão tão complexa e com tanta incidência jurídica como é a da Constituição para a Europa.
Maria Fernanda Palma