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Processo n.º 917/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A Freguesia de Manhente vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da decisão sumária do relator, de 9 de Novembro de 2004, que decidira, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não conhecer do objecto do presente recurso.
1.1. A decisão sumária reclamada é do seguinte teor:
“1. A Freguesia de Manhente, notificada do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 12 de Maio de 2004 – que negou provimento a apelação por ela interposta contra a sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Barcelos, de 24 de Abril de 2003, que, julgando parcialmente procedente quer a acção proposta contra os herdeiros de A. e B. quer a reconvenção deduzida por estes, condenou os réus «a reconhecerem o domínio público da área de terreno com
5 m2 dentro da área que os réus pretendem vedar, mais precisamente ao nível da concordância entre o caminho vicinal e o caminho de consortes», declarou que os réus «são donos e legítimos possuidores do lote de terreno de construção com o n.º -----, com a configuração que lhe é assinalada no alvará de loteamento n.º
------», que «da área de 47 m2 que os réus pretendem vedar, 42 m2 são parte componente do lote -----» e condenou a autora «a tal reconhecer, abstendo-se da prática de quaisquer actos impeditivos da demarcação ou delimitação, através de muros, da faixa de terreno em causa ou de condutas violadoras do direito de propriedade dos réus» –, arguiu a nulidade do mesmo, aduzindo, em síntese final:
«8. Em suma, Vossas Excelências consideraram que o disposto no artigo 712.º do CPC impede o Tribunal da Relação de apreciar a maior ou menor credibilidade a dar aos depoimentos das testemunhas, no entendimento de que nenhuma censura pode exercer sobre o tribunal a quo e que a Relação não pode censurar a forma como este tribunal fez uso da prerrogativa legal de livre apreciação da prova.
9. Mas, salvo o devido respeito, o artigo 712.º do CPC assim interpretado viola o princípio constitucional do acesso à justiça e da administração da justiça, eliminando o essencial de um grau de recurso que, tendo cobertura constitucional, não pode ser denegado.
10. Aliás, a eliminação do recurso da matéria de facto quando obrigue a um juízo sobre a credibilidade de uma testemunha constitui nulidade processual, nos termos previstos nos artigos 201.º, n.º 1, e 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC.»
Esta arguição foi desatendida pelo acórdão de 30 de Junho de 2004, com a seguinte fundamentação:
«Do acórdão de fls. 465 a 485 dos presentes autos, proferido em 12 de Maio de 2004, no recurso de apelação em que é apelante a Freguesia de Manhente e apelados B. e outros, veio aquela arguir a nulidade do mesmo nos termos dos artigos 201.º e 668.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil
(CPC).
Isto porque, segundo a apelante, tendo-se considerado, no dito acórdão, que o disposto no artigo 712.° do CPC impede o Tribunal da Relação de apreciar a maior ou menor credibilidade a dar aos depoimentos das testemunhas, no entendimento de que nenhuma censura pode exercer sobre o Tribunal a quo e de que a Relação não pode censurar a forma como este tribunal fez uso da prerrogativa legal da livre apreciação da prova, tal interpretação viola o princípio constitucional do acesso à justiça e da administração da justiça.
E eliminando, assim, um grau de recurso da matéria de facto quando obrigue a um juízo sobre a credibilidade de uma testemunha, constitui ainda nulidade processual, nos termos do citado artigo 201.º, n.º 1.
Na sua resposta, os agravados sustentaram a improcedência da invocada nulidade.
Dispõe o artigo 668.°, n.º 1, alínea d), do CPC que é nula a sentença ‘Quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento’.
Este vício, conforme jurisprudência unânime, traduz-se no incumprimento, por parte do juiz, do dever prescrito no n.º 2 do artigo 660.° do mesmo diploma e que é, por um lado, o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão estiver prejudicada pela solução dada a outras.
E, por outro, o dever de ocupar-se tão-somente das questões suscitadas pelas partes e/ou daquelas que a lei lhe impuser o conhecimento oficioso.
A respeito da pretendida alteração da decisão sobre a matéria de facto, afirmou-se no acórdão sob censura que:
‘(...) a M.ma Juíza a quo explicou de forma racional e lógica as razões pelas quais deu como provados os factos supra descritos e considerou como não provados todos os demais factos, indicando a razão de ciência de cada uma das testemunhas bem como os motivos pelos quais os depoimentos das testemunhas oferecidas pelos réus lhe mereceram maior credibilidade.
E, em nosso entender, a prova produzida em audiência de julgamento
(por nós ouvida e que não se resume aos depoimentos parcialmente transcritos pela autora) legitima a convicção formada pelo Tribunal a quo sobre tal matéria, sendo certo que os depoimentos das testemunhas que serviram de base à formação da convicção do Tribunal a quo não foram infirmados por quaisquer documentos dotados de força probatória plena, revelando-se coerentes com o resultado da perícia colegial de fls. 261 a 264 e com a planta de síntese do loteamento de 1976.
No fundo, está essencialmente em causa a maior ou menor credibilidade a dar aos depoimentos das testemunhas oferecidas pela autora ou aos depoimentos das testemunhas arroladas pelos réus, pois que umas e outras testemunhas, no essencial, reflectem cada uma das versões trazidas pela autora e pelos réus quanto ao presente litígio.
Daí a autora sustentar a pretendida alteração da decisão sobre a matéria de facto essencialmente nos depoimentos das testemunhas por si arroladas.
Todavia, a este respeito cumpre referir que o Tribunal da Relação nenhuma sindicância pode exercer sobre o Tribunal a quo.
A Relação não pode censurar a forma como este tribunal fez uso da prerrogativa legal da livre apreciação da prova.
E isto porque a possibilidade de modificação da matéria de facto, por parte do Tribunal da Relação, visa apenas a correcção de pontuais, concretos e excepcionais erros de julgamento.
Doutro modo, o recurso em matéria de facto resultaria numa repetição ainda que parcial do julgamento, o que não é consentido por lei.’
E mais adiante, rebatendo-se os argumentos avançados pela autora/apelante no sentido de colocar em crise a maior credibilidade atribuída
às referidas testemunhas arroladas pelos réus, escreveu-se que:
‘(...) a circunstância de se viver perto do local da questão ou de se ter tido intervenção na execução das obras em causa não constitui, por si só, garantia da veracidade e imparcialidade dos depoimentos feitos.
Acresce que, para além de não existirem nos autos elementos indiciadores da dita zanga, pois que a testemunha C. afirmou nunca tal ter acontecido (cfr. transcrição de fls. 415), a verdade é que, sendo autora nos presentes autos a Freguesia de Manhente e não o seu presidente de Junta, não se vê que relevância possa assumir uma eventual zanga entre este e aquela testemunha.
Ora, de tudo o que se deixou dito, há que concluir não haver fundamento para este Tribunal alterar as respostas dadas sob os n.ºs 1.5; 1.11;
1.23; 1.24; 2.4; 2.3; 2.5; 2.12; 2.2; 2.9; 2.10 e 2.11.
E isto porque há que ter em atenção, por um lado, que o julgamento deve guiar-se por padrões de probabilidade e nunca de certezas absolutas e que foi a M.ma Juíza a quo quem teve oportunidade de apreciar os depoimentos de todas as referidas testemunhas, com recurso aos instrumentos que lhe foram proporcionados pelos princípios da imediação e da oralidade. E, por outro, que nos presentes autos inexiste qualquer elemento objectivo que permita pôr em causa a convicção por ela adquirida.’
Vê-se, assim, que o Acórdão não deixou de se pronunciar-se sobre a questão suscitada pela autora no seu recurso.
E nem tão-pouco interpretou a norma do artigo 712.° do CPC por forma a eliminar a possibilidade de recurso da matéria de facto quando obrigue a um juízo sobre a credibilidade das testemunhas.
Na verdade, só o recurso à técnica incorrecta, utilizada pela autora, de citar as afirmações feitas fora do seu contexto, poderá inculcar nos
‘espíritos menos atentos’ os apontados vícios.
Daí impor-se concluir pela inexistência da alegada nulidade prevista nos artigos 201.°, n.º 1, e 668.°, n.º 1, alínea d), ambos do CPC, ou de qualquer outra e, muito menos, pela violação de qualquer princípio constitucional.
Pelo exposto, indefere-se a reclamação e mantém-se o acórdão proferido.»
Notificada deste segundo acórdão, a recorrente apresentou o seguinte requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade:
«Não se conformando com os doutos acórdãos de 12 de Maio de 2004 e de 30 de Junho de 2004 (este em arguição de nulidade daquele),
Requer a V. Ex.a se digne admitir a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, nos termos e ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.° e nos artigos 75.° e 75.°-A da Lei n.º 28/82,
por considerar que o entendimento perfilhado
– no 3.º parágrafo de fls. 12 do acórdão de 12 de Maio de 2004 no sentido de que ‘o sistema de gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos é insuficiente para fixar todos os elementos susceptíveis de condicionar ou de influenciar a convicção do Juiz perante quem são prestados’,
– e nos parágrafos 2.º e seguintes de fls. 14 do mesmo acórdão, no sentido de que:
‘(...) está essencialmente em causa a maior ou menor credibilidade a dar aos depoimentos das testemunhas (...)
Todavia, a esse respeito, cumpre referir que o Tribunal da Relação nenhuma censura pode exercer sobre o tribunal a quo.
A Relação não pode censurar a forma como este tribunal fez uso da prerrogativa legal da livre apreciação da prova.
E isto porque a possibilidade de modificação da matéria de facto, por parte do Tribunal da Relação, visa apenas a correcção de pontuais, concretos e excepcionais erros de julgamento.
Doutro modo, o recurso em matéria de facto resultaria numa repetição ainda que parcial do julgamento, o que não é consentido por lei.’
– por considerar que tal entendimento – repete-se – constitui uma interpretação do disposto no artigo 712.º do CPC que viola o principio constitucional do acesso à justiça e da administração da justiça, eliminando o essencial de um grau de recurso que, tendo cobertura constitucional, não pode ser denegado (artigos 20.º, 202.º, 205.°, 209.º e 210.º da Constituição da República Portuguesa).
A questão da constitucionalidade [foi suscitada] no requerimento de arguição de nulidade de 27 de Maio de 2004.»
O recurso foi admitido por despacho do Desembargador Relator, de 15 de Setembro de 2004, decisão que, como é sabido, não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro – doravante designada por LTC).
E, de facto, entende-se que o recurso, no caso, era inadmissível, o que permite a prolação de decisão sumária de não conhecimento do respectivo objecto, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas (como acontece com o recurso de amparo espanhol ou a queixa constitucional alemã), ou a condutas ou omissões processuais. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional que o primeiro requisito mencionado (suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada) só se pode considerar preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve «lapso manifesto» do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas respectivas alegações. Só assim não será nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
No presente caso, é desde logo sustentável que a questão de constitucionalidade não foi suscitada em tempo e por modo processualmente adequados, pois, como se referiu, a arguição de nulidade de decisão judicial não constitui, em regra, momento adequado para o efeito, atendendo a que então já se mostra esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, que a eventual aplicação de normas inconstitucionais não é causa de nulidade da decisão e que a orientação seguida pelo acórdão recorrido nada tem de anómalo, imprevisto ou inesperado.
Depois, a questão de inconstitucionalidade, nos termos em que vem suscitada pela recorrente, surge como indissociavelmente ligada às especificidades do caso concreto, pelo que, em rigor, não se está a questionar a conformidade constitucional de uma norma (ou interpretação normativa), mas antes a eventual violação da Constituição directamente imputada à própria decisão judicial, em si mesma considerada.
Por último – e decisivamente – é patente que as decisões impugnadas não aplicaram, como ratio decidendi, a dimensão normativa que a recorrente identificou no seu requerimento de interposição de recurso como padecendo de inconstitucionalidade. A confirmação da decisão da matéria de facto radicou, antes de mais, na audição, a que o Tribunal da Relação procedeu, de toda a prova produzida em audiência de julgamento, «e que não se resume aos depoimentos parcialmente transcritos pela autora», acrescendo que «os depoimentos das testemunhas [dos réus] que serviram de base à formação da convicção do tribunal a quo não foram infirmados por quaisquer documentos dotados de força probatória plena, revelando-se coerentes com o resultado da perícia colegial de fls. 261 a 264 e com a planta de síntese do loteamento de 1976». E embora reconhecendo as limitações óbvias quanto ao controlo do juízo sobre a credibilidade das diferentes testemunhas feito pelo juiz de julgamento, derivadas da falta, por parte da Relação, de imediação com esse meio de prova oralmente produzido em audiência de julgamento, não deixaram os acórdãos ora recorridos de ponderar e procurar rebater os argumentos aduzidos pela autora quanto à maior ou menor credibilidade das diversas testemunhas, com base em razões de proximidade de residência, intervenção na execução das obras e alegado mau relacionamento com o Presidente da Junta de Freguesia.
Falta, assim, o apontado requisito de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, consistente na efectiva aplicação, pela decisão recorrida, da dimensão normativa arguida de inconstitucional pela recorrente.”
1.2. A reclamação apresentada pela recorrente contra a decisão sumária do relator desenvolve a seguinte argumentação:
“Resulta do requerimento de interposição que a recorrente pretende ver declarada a inconstitucionalidade da norma do artigo 712.º do CPC na interpretação segundo a qual «o Tribunal da Relação nenhuma censura pode exercer sobre o Tribunal de 1.ª instância quanto ao juízo de maior ou menor credibilidade dos depoimentos das testemunhas», [que] viola o principio constitucional do Acesso à Justiça e da Administração da Justiça, eliminando o essencial de um grau de recurso que, tendo cobertura constitucional, não pode ser denegado (artigos 20.°, 202.º, 205.°, 209.° e 210.º da Constituição da República Portuguesa).
I – Em primeiro lugar, a decisão sumária considera que, no presente caso, é desde logo sustentável que a questão de constitucionalidade não foi suscitada em tempo e por modo processualmente adequados, pois a arguição de nulidade de decisão judicial não constitui, em regra, momento adequado para o efeito, atendendo a que então já se mostra esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido.
Todavia, entende a reclamante que aqui ocorre uma situação excepcional, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida, pois que só nesta foi reportada a aplicação da referida norma do artigo 712.º com a interpretação inconstitucional – não sendo exigível à reclamante que o adivinhasse.
Aliás, não se admitir o recurso de constitucionalidade com tal fundamento, significa adoptar o princípio que nunca é admissível o recurso de inconstitucionalidade das normas reportadas nas decisões de última instância, pois será inexequível exigir às partes que, nas suas alegações, configurem toda a panóplia de normas e toda a panóplia das suas interpretações que eventualmente possam vir a ser reportadas para fundamento da decisão em tal instância. (Com o risco de, mesmo assim, o Tribunal poder esquivar-se ao juízo de inconstitucionalidade, pelo uso da técnica, cada vez mais frequente, de omitir a referência à especificação das normas legais aplicadas).
II – Em segundo lugar, a decisão sumária considerou que a questão de inconstitucionalidade, nos termos em que vem suscitada pela recorrente, surge como indissociavelmente ligada às especificidades do caso concreto, pelo que, em rigor, não se está a questionar a conformidade constitucional de uma norma (ou interpretação normativa), mas antes a eventual violação da Constituição directamente imputada à própria decisão judicial, em si mesma considerada.
Decidiu a Relação, relativamente à credibilidade dos depoimentos das testemunhas:
«(...) o Tribunal da Relação nenhuma censura pode exercer sobre o Tribunal a quo.
A Relação não pode censurar a forma como este tribunal fez uso da prerrogativa legal da livre apreciação da prova.
E isto porque a possibilidade de modificação da matéria de facto, por parte do Tribunal da Relação, visa apenas correcções pontuais, concretos e excepcionais erros de julgamento.
Doutro modo, o recurso em matéria de facto resultaria numa repetição ainda que parcial do julgamento, o que não é consentido por lei.»
Ora, este juízo do Tribunal da Relação constitui uma interpretação de princípio, geral e abstracta do dispositivo do artigo 712.º do CPC – em lógica é a premissa maior do silogismo.
O facto de se ter partido daquela premissa maior para a menor (no caso dos autos, a modificação da matéria de facto exigia que o Tribunal da Relação censurasse o juízo de credibilidade das testemunhas dos réus), não pode impedir o recurso de inconstitucionalidade daquela interpretação da premissa maior.
É da natureza deste tipo de recursos que os mesmos decorram de uma aplicação concreta da norma inconstitucional.
III – Por último, considerou a Decisão Sumária que as decisões impugnadas não aplicaram, como ratio decidendi, a dimensão normativa que a recorrente identificou no seu requerimento de interposição de recurso como padecendo de inconstitucionalidade.
Considera a Decisão Sumária que a confirmação da decisão da matéria de facto «radicou, antes de mais, na audição, a que o Tribunal da Relação procedeu, de toda a prova produzida em audiência de julgamento», «e que não se resume aos depoimentos parcialmente transcritos pela autora», acrescendo que «os depoimentos das testemunhas [dos réus] que serviram de base à formação da convicção do tribunal a quo não foram infirmados por quaisquer documentos dotados de força probatória plena, revelando-se coerentes com o resultado da perícia colegial de fs. 261 a 264 e com a planta de síntese do loteamento de
1976».
Mas não:
A Relação, em cumprimento da interpretação (inconstitucional) que fizera do disposto no artigo 712.º do CPC, segundo a qual nenhuma censura podia exercer sobre o Tribunal de 1.ª instância quanto ao juízo de maior ou menor credibilidade dos depoimentos das testemunhas, omitiu o juízo de censura
(ou não censura) sobre a (in)credibilidade das testemunhas dos réus, em especial da testemunha C., que, na fundamentação da decisão da matéria de facto, é a primeira referida pela Meritíssima Juíza como depoimento particularmente relevante, e que, de acordo com a 4.ª conclusão das alegações para a Relação, alicerçada no relatório no depoimentos das próprias testemunhas dos réus, fora o próprio mentor ou autor moral da obra de que emergem os autos.
Ou seja, tendo-se considerado impedida de censurar a credibilidade das testemunhas, a Relação ateve-se a um juízo de contabilidade dos depoimentos, em si, considerando que, para cada um deles, tinha, ela Relação, de acatar o grau de credibilidade que a Meritíssima Juíza lhe atribuíra.
Ou seja, a Relação pode ter ajuizado o que as testemunhas declararam, mas entendeu que não podia apreciar se depuseram com a isenção e imparcialidade exigíveis à validação do respectivo depoimento.
Face ao exposto, solicita a V. Ex.as que, revendo a decisão sumária, deliberem admitir o recurso.”
1.3. Notificados da apresentação desta reclamação, os recorridos B. e outros apresentaram a seguinte resposta:
“A douta decisão sumária proferida pelo Excelentíssimo Senhor Juiz Conselheiro Relator, em 9 de Novembro de 2004, apreciou criteriosamente a base ou raiz da confirmação da decisão da matéria de facto pela Relação recorrida e aplicou correctamente a LTC (Lei n.º 13-A/98, de 15 de Novembro). E, por isso, bem andou este ilustríssimo Magistrado ao julgar liminarmente inadmissível o recurso, determinando o não conhecimento do respectivo objecto.
Na realidade, cingindo-se a competência da fiscalização de constitucionalidade, atribuída ao TC, ao controlo da inconstitucionalidade normativa – «e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas ou a condutas ou omissões processuais», como argutamente se escreve na decisão sumária sob apreciação – é óbvio estar fora do seu poder de apreciação a questão de inconstitucionalidade levantada pela recorrente, em virtude de a mesma ter sido arguida como umbilicalmente ligada às especificidades do caso concreto.
Com efeito, aquilo que a recorrente verdadeiramente questiona não é
«a conformidade constitucional de uma norma (ou interpretação normativa), mas antes a eventual violação da Constituição directamente imputada à própria decisão judicial, em si mesmo considerada», como também se afirma na decisão sub judice.
E de nada vale o uso pela recorrente da ardilosa técnica da descontextualização de várias passagens da decisão da Relação na vã tentativa de demonstrar o contrário, na sequência, aliás, da censurável táctica de truncagem dos depoimentos das testemunhas debalde utilizada nas alegações de recurso para a segunda instância ...
Conforme se extrai do texto da decisão sumária em análise, o Excelentíssimo Conselheiro Relator transcreveu significativos excertos do acórdão recorrido para ilustrar que a ratio decidendi da confirmação da matéria de facto radicou, antes de mais, na audição, a que o Tribunal da Relação procedeu, de toda a prova produzida em audiência de julgamento, prova esta que não se resumiu aos depoimentos transcritos pela autora (ora recorrente).
De resto, como bem salienta aquele ilustríssimo Conselheiro, utilizando expressões constantes da sentença de primeira instância, «os depoimentos das testemunhas [dos réus] que serviram de base à formação da convicção do Tribunal a quo não foram infirmados por quaisquer documentos dotados de força probatória plena, revelando-se coerentes com o resultado da perícia colegial de fls. 261 a 264 e com a planta de síntese do loteamento de
1976».
Por isso e porque as instâncias não deixaram de ponderar e rebater nas respectivas sentenças cada um dos argumentos aduzidos pela autora quanto à maior ou menor credibilidade das diversas testemunhas (v. g., proximidade de residência, intervenção na execução de obras e alegado mau relacionamento com o Presidente da ré, Junta de Freguesia), concluiu – e bem – o Ex.mo Senhor Conselheiro Relator pela não verificação, in casu, do requisito de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.° 1 do artigo 70.° da LTC.
Por outro lado, nos termos desse mesmo dispositivo, sempre a admissibilidade do recurso interposto ao seu abrigo dependeria da verificação cumulativa do requisito de a questão de insconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (cf. n.° 2 do artigo 72.° da LTC).
Para não maçar Vossas Excelências com a repetição da brilhante argumentação aduzida a tal propósito pelo Senhor Conselheiro Relator na sua douta decisão sumária, que aqui se dá como reproduzida, limitamo-nos a sublinhar que a eventual aplicação de norma «inconstitucional» pela Relação recorrida não
é causa de nulidade da decisão e que a orientação seguida pelo acórdão não é anómala, imprevista ou inesperada, antes constituindo jurisprudência assente, tanto da Relação recorrida e das demais Relações como do Supremo Tribunal de Justiça, conforme os recorridos tiveram oportunidade de afirmar numa das duas notas prévias que, a propósito da «questão de facto», incluíram na sua minuta de contra-alegações apresentada naquela Relação. Ora, a recorrente não só não sentiu necessidade de contestar esta tese, como entendeu não tomar a iniciativa de, nas suas alegações, prever a eventualidade de a Relação seguir a sua bem conhecida orientação.
Termos em que deve ser mantida a decisão sumária de inadmissibilidade do recurso, julgando-se improcedente a reclamação da recorrente.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. A decisão de não conhecimento do objecto do recurso, ora reclamada, assentou num triplo fundamento – (i) não suscitação da questão de inconstitucionalidade em tempo e por modo processualmente adequados; (ii) carência de natureza normativa da questão de inconstitucionalidade suscitada; e
(iii) não aplicação pela decisão recorrida da dimensão normativa identificada no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade –, embora com atribuição a este último de carácter determinante, por mais inequívoco.
A argumentação desenvolvida pela reclamante não se mostra susceptível de abalar qualquer um desses fundamentos.
A arguição de nulidade do acórdão da Relação não é modo processual e temporalmente adequado para a suscitação da questão de inconstitucionalidade, pois – contrariamente ao que a reclamante afirma – o entendimento seguido pela Relação quanto à extensão e às naturais limitações do seu poder de sindicância da decisão da matéria de facto nada tem de inesperado ou insólito, que tornasse intoleravelmente desproporcionada a imposição à parte do ónus de suscitar a questão da inconstitucionalidade desse entendimento antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido.
Depois, os termos em que a questão da inconstitucionalidade foi suscitada pela recorrente, centrada na discordância quanto à credibilidade dada a determinada testemunha (C.), em detrimento das testemunhas por ela oferecidas, determina que tal questão surja como indissociavelmente ligada às peculiaridades do caso concreto e, assim, desprovida de natureza normativa.
Finalmente, a recorrente isolou uma ou duas frases constantes de um dos acórdãos da Relação para ver nelas a adopção de um critério normativo. Ora, o dito acórdão tem de ser considerado globalmente e, como se evidenciou na decisão sumária ora reclamada, é patente que nele não se aplicou o critério normativo que a recorrente apoda de inconstitucional, e que consistiria em a Relação ter entendido que não lhe seria legalmente admissível censurar, em circunstância alguma, o juízo sobre a credibilidade dos depoimentos das diversas testemunhas. O que a Relação entendeu, em sede de reexame da decisão de facto, foi que a prova produzida em audiência de julgamento (cuja gravação a Relação ouviu), que não se resumia aos depoimentos parcialmente transcritos pela recorrente, “legitima a convicção formada pelo Tribunal a quo sobre tal matéria, sendo certo que os depoimentos das testemunhas que serviram de base à formação da convicção do Tribunal a quo não foram infirmados por quaisquer documentos dotados de força probatória plena, revelando-se coerentes com o resultado da perícia colegial de fls. 261 a 264 e com a planta de síntese do loteamento de 1976”. Por outro lado, embora o poder de sindicância sobre o juízo de credibilidade das diversas testemunhas estivesse limitado pela circunstância, inerente à “natureza das coisas”, de não se encontrar o tribunal de recurso na mesma situação do tribunal de 1.ª instância, que beneficia da imediação com essa prova oral, não deixou o Tribunal da Relação de ponderar, justamente a respeito da credibilidade das testemunhas, que “a circunstância de se viver perto do local da questão ou de se ter tido intervenção na execução das obras em causa não constitui, por si só, garantia da veracidade e imparcialidade dos depoimentos feitos” e que não existiam nos autos elementos indiciadores de alegada “zanga” entre a testemunha C. e o Presidente da Junta de Freguesia, nem se via qual a relevância da mesma para a ponderação em causa. Conclui-se, assim, tal como na decisão sumária ora reclamada, que a interpretação normativa do artigo 712.º do CPC quanto aos poderes de cognição da Relação em sede de decisão da matéria de facto efectivamente aplicada, como ratio decidendi, nas decisões recorridas não foi aquela cuja conformidade constitucional a recorrente pretendia ver apreciada. Também por este motivo, o recurso interposto surge como inadmissível.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Sem custas, atenta a isenção da recorrente (artigo 2.º, n.º 1, alínea e), do Código das Custas Judiciais, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, redacção essa ainda aplicável ao presente caso – cf. artigo 14.º, n.º 1, deste último diploma).
Lisboa, 15 de Dezembro de 2004
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos